Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0423549
Nº Convencional: JTRP00037098
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
SOCIEDADE IRREGULAR
CADUCIDADE
Nº do Documento: RP200407080423549
Data do Acordão: 07/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - O direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem ou que não lhe pertencem em regime de exclusividade.
II - Dispondo as sociedades irregulares de capacidade activa e passiva, qualquer dos seus sócios poderá exigir do sócio gerente, do mandatário social ou daquele que administrou bens da sociedade, a prestação de contas.
III - Não é do conhecimento oficioso a caducidade da prestação de contas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

B.... e mulher, C...., intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de....., a presente acção especial de prestação de contas contra:
- D.... e mulher, E....; e
- F...., pedindo a citação dos Réus para, no prazo legal, apresentarem as contas.
Alegaram, para tanto, em resumo, que o Autor marido constituiu, em 1980, com os Réus D.... e F.... uma sociedade irregular que se dedicava à construção civil; para poderem movimentar os dinheiros inerentes ao exercício dessa actividade, o Autor e os referidos Réus abriram uma conta junto do Banco....; desde a data da constituição da referida sociedade até que ela cessou a sua actividade, nunca ao Autor foram prestadas quaisquer contas, sendo certo que foram movimentados a débito e a crédito vários valores na referida conta.
Contestaram os Réus, alegando, também em resumo, que não administraram quaisquer bens próprios dos Autores, sendo certo que todos os movimentos efectuados na conta em questão eram do conhecimento de todos os interessados; e que as contas em questão estão a ser discutidas em dois outros processos que identificam; terminam, por isso, pedindo a improcedência da acção, por não estarem obrigados a prestar contas ou, quando assim não se entenda, pela verificação da excepção de litispendência.
Replicaram os Autores, concluindo como na petição inicial.
Proferiu-se o despacho saneador, no qual se julgou improcedente a arguida excepção de litispendência, despacho esse de que agravaram os Réus, mas que esta Relação confirmou.
No mesmo despacho, consignaram-se os factos tidos como assentes e organizou-se a base instrutória, sem reclamações.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, finda a qual se respondeu à matéria da base instrutória, por forma que não mereceu reparo a qualquer das partes.
Finalmente, foi vertida nos autos sentença que, julgando a acção procedente, decidiu que existe a obrigação de os Réus prestarem contas aos Autores, quanto aos movimentos a crédito e a débito por aqueles efectuados na conta em causa.
Inconformados com o assim decidido, interpuseram, sucessiva e separadamente, os Réus F...., por um lado, e D.... e mulher, por outro, recurso para este Tribunal, recursos esses que foram admitidos como de apelação e efeito suspensivo.
Alegaram, oportunamente, os apelantes, os quais finalizaram as suas alegações com a seguinte síntese conclusiva:

A – O F....

1.ª - “O recorrido, juntamente com os recorrentes, abriram uma conta conjunta no Banco.... para poderem movimentar os dinheiros inerentes ao exercício da actividade industrial que criaram;
2.ª - O recorrido tinha, podia e devia ter perfeito conhecimento dos movimentos produzidos nessa conta, e sempre teve acesso aos respectivos extractos bancários;
3.ª - A douta decisão é expressamente no sentido de que os réus, aqui recorrentes, têm obrigação de prestar contas ao autor, aqui recorrido, quanto aos movimentos a crédito e débito efectuados nessa conta;
4.ª - Sem necessidade de mais longas considerações, é patente, salvo o devido respeito, existir contradição ou oposição entre a fundamentação da sentença e a decisão, o que constitui a nulidade prevista no n.º 1, al. c), do art.º 668.º do Código de Processo Civil”.

B – O D.... e mulher

1.ª - “O prazo para exigir a prestação de contas por gestão de negócios alheios caduca no prazo de dois anos;
2.ª - Tendo a gestão terminado em 08/04/87 caducou em Abril de 1989 o direito a exigir a prestação de contas;
3.ª - Sendo que a caducidade é do conhecimento oficioso e pode ser alegada em qualquer fase do processo (artigo 333.º CC);
4.ª - Se o Requerente é sócio de uma sociedade irregular entre 3 sócios e se,
5.ª - Em conjunto abrem uma conta bancária para gestão de dinheiros comuns, o acesso aos movimentos é facultado a qualquer deles;
6.ª - Se o Requerente afirma e declara que teve acesso a alguns dos movimentos da conta, não pode alegar a impossibilidade de acesso aos demais, sem especificar qual ou quais lhe foram vedados, porquanto,
7.ª - O titular de qualquer conta tem livre acesso a todos os movimentos”.

Contra-alegaram os apelados, pugnando pela manutenção do julgado.
...............

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º3, e 690º, n.º 1, do C. de Proc. Civil.
De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber se a sentença recorrida enferma da arguida nulidade; se caducou o direito de os apelados exigirem aos apelantes a prestação de contas; e se é exigível tal prestação de contas.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
...............

OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1.º - O Autor constituiu com os Réus D.... e F.... uma sociedade irregular de construção civil;
2.º - Tal associação ocorreu em 1980;
3.º - Para poderem movimentar os dinheiros inerentes ao exercício dessa actividade, o Autor e os Réus abriram uma conta junto do Banco....;
4.º - Na conta referida no item 3.º foram movimentados a crédito e a débito vários montantes;
5.º - Alguns movimentos efectuados na conta referida no item 3.º eram do perfeito conhecimento do requerente, que sempre teve acesso aos extractos bancários;
6.º - Houve levantamentos que se destinaram ao requerente para que este pagasse os materiais que a sociedade ia adquirindo;
7.º - Os requeridos movimentavam a conta a crédito e a débito.
.........

Não se suscitando qualquer controvérsia a respeito da matéria de facto considerada provada na primeira instância e porque não ocorre qualquer das hipóteses previstas no artº 712º do C. de Proc. Civil que imponha a alteração das respostas aos quesitos, consideram-se os factos descritos como assentes.
...............

O DIREITO

A questão fundamental a decidir em ambas as apelações tem a ver com a exigibilidade de prestação de contas pelos Réus aos Autores, pelo que procederemos à análise conjunta dos interpostos recursos.

A nulidade da sentença

O apelante F.... arguiu a nulidade da sentença recorrida, por pretensa oposição entre os respectivos fundamentos e a decisão. Vejamos.
De acordo com o disposto no art.º 668.º, n.º 1, al. c), do C. de Proc. Civil, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Segundo o acórdão desta Relação de 13/11/74 (B.M.J. n.º 241º, 344), apenas ocorre a nulidade da sentença prevista na citada al. c), quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier expresso na sentença.
Por outra palavras, como ensinava o Prof. Alberto dos Reis (C.P.C. Anotado, vol. 5º, 141), ocorre esta nulidade quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
Ora, salvo o devido respeito, não enxergamos na decisão recorrida a apontada contradição, antes a mesma se mostra devidamente fundamentada e os respectivos fundamentos, tanto de facto como de direito, conduzem à decisão tomada, a qual, de resto, merece a nossa inteira concordância, como infra se verá.
Improcede, assim, a arguida nulidade da sentença.

A caducidade do direito de exigir a prestação de contas

Os apelantes D.... e mulher invocaram, nas conclusões da sua alegação de recurso, a excepção de caducidade do eventual direito dos Autores exigirem a prestação de contas aos Réus.
Nunca antes fora invocada nos autos tal excepção. Daí que a sentença recorrida não tenha apreciado e decidido tal questão.
E, se a não abordou a sentença recorrida, também dela não pode conhecer esta Relação.
Com efeito, os recursos são, como é sabido, meios de obter a reforma das decisões dos tribunais inferiores e não vias jurisdicionais para alcançar decisões novas, como resulta, entre outros, do disposto nos artºs 676º, n.º 1, 680º, n.º 1, e 690º, todos do C. de Proc. Civil (v., por todos, neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 4/10/95, B.M.J. n.º 450º, 492).
Só assim não seria se aquela excepção fosse de conhecimento oficioso, mas, ao invés do que defendem os apelantes, não o é.
A caducidade expressa-se num facto jurídico stricto sensu – o decurso do tempo, elemento de eficácia do direito, pelo que, tratando-se de um fenómeno natural, opera a extinção automática, ipso jure do mesmo.
Ora, um direito extinto é ininvocável cabendo, portanto, ao juiz recusar-lhe protecção mediante conhecimento oficioso (Aníbal de Castro, A Caducidade, 2.ª ed., 53).

O conhecimento oficioso da caducidade está, porém limitado aos direitos indisponíveis.
É o que linearmente se extrai do disposto no art.º 333.º do C. Civil, segundo o qual “a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes (n.º 1). Mas “se for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, é aplicável à caducidade o disposto no artigo 303.º” (n.º 2).
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (C.C. Anotado, 1.º, 4.ª ed., 298), a disposição contida naquele artigo “não é aplicável, se se tratar de matéria não excluída da disponibilidade das partes, visto ser então aplicável a doutrina do artigo 303.º do Código Civil, que não permite o conhecimento oficioso da prescrição (cfr. por ex., o acórdão da Rel. de Lisboa, de 24 de Fevereiro de 1971, e o acórdão do S.T.J., de 11 de Junho do mesmo ano, respectivamente no B.M.J., n.º 204, pág. 188, e no B.M.J., n.º 208, págs. 132 e segs.)”.
Mesmo que assim não fosse, isto é, que fosse de conhecimento oficioso a invocada excepção, nunca a mesma poderia proceder, já que não se mostra alegado em sede própria, ou seja, nos articulados, e muito menos provado, que a gestão em causa terminou em 08/04/87 ou em qualquer outra data. Como tal, tornar-se-ia impossível concluir que decorreu o prazo dentro do qual os Autores podiam exigir dos Réus a prestação de contas.
Improcede, pois, de igual modo, a suscitada excepção de caducidade.

A exigibilidade de prestação de contas em causa

A sentença recorrida concluiu e decidiu que existe a obrigação de os Réus prestarem contas aos Autores, o que estes, sem convencerem, pretendem contrariar.
Segundo o disposto no art.º 980.º do Código Civil , “contrato de sociedade é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade”.
Como se rediz na douta sentença recorrida, que, por merecer a nossa concordância, aqui seguimos de perto, a exclusão legal da actividade de mera fruição significa que não basta que existam interesses patrimoniais de todos os sócios em relação a certos bens. É necessário que os resultados obtidos sejam produto de uma actividade dos sócios, ou seja, à simples fruição deverá aliar-se um outro fim produtivo ou especulativo [Neste sentido, Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª edição, pág. 292.].
Tal como prescreve a disposição em análise, o fim lucrativo, e não meramente mutualista, é o que caracteriza as sociedades, sendo um elemento fundamental do contrato de sociedade.
De uma forma simplistas, que não ligeira, poder-se-á afirmar que as sociedades podem ser classificadas como comerciais ou civis.
Dispõe o art. 1.º, n.º 2, do Código das Sociedade Comerciais, que “são sociedades comerciais aquelas que tenham por objecto a prática de actos de comércio” e adoptem um dos tipos aí referidos.

Por seu turno, as sociedades civis caracterizam-se por não terem como objecto a prática de actos de comércio, nem o exercício de quaisquer das actividades previstas no art.º 230.º do Código Comercial, estando sujeitas ao regime legal previsto no Código Civil.
É, assim, elemento distintivo entre as sociedades civis e as sociedades comerciais a intenção de praticar ou não actos de comércio e não o seu fim lucrativo.
Da matéria de facto provada resulta que o Autor e os Réus associaram-se com o objectivo de exercer a actividade de construção civil.
Para a prossecução desta actividade, teriam de ser praticados actos que se encaixam naquilo que o art. 463.º do Código Comercial define como compra e venda comercial, pelo que se pode concluir que a sociedade estabelecida entre Autor e Réus se destinava a praticar, ainda que se não de forma exclusiva, pelo menos na sua grande maioria, actos de comércio, de acordo com a definição estabelecida pelo art. 2.º do mesmo diploma legal.
Como já se deixou dito, as sociedades civis não podem ter por objecto a prática de actos de comércio, na medida em que, de acordo com as regras imperativas constantes do C. das Soc. Comerciais, sempre que se pretenda constituir uma sociedade e se tencione praticar actos de comércio, aquela deverá revestir uma das formas legalmente previstas na lei comercial, não sendo permitido que se constitua uma sociedade de natureza não comercial e depois se pratiquem actos comerciais.
A sociedade constituída entre Autor e Réus tem por objecto o exercício da actividade de construção civil (item 1.º), compreendendo, por isso, a prática de actos comerciais, pelo que deveria a mesma ter respeitado o formalismo legal prescrito no Código das Sociedades Comerciais.
Segundo o art.º 7.º, n.º 1 deste código, “o contrato de sociedade deve ser celebrado por escritura pública”.
Desta forma, é requisito essencial para a constituição de uma sociedade comercial a existência de escritura pública.
De acordo com o preceituado no art.º 36.º, n.º 1, do referido diploma legal, “se dois ou mais indivíduos, quer pelo uso de uma firma comum quer por qualquer outro meio, criarem a falsa aparência de que existe entre eles um contrato de sociedade responderão solidária e ilimitadamente pelas obrigações contraídas nesses termos por qualquer deles”.
Como decidiu já esta Relação (Ac. de 27/9/96, www.dgsi.pt/jtrp), “todos os que contratem em nome de uma sociedade irregular ficam obrigados pelos respectivos actos, pessoal, ilimitada e solidariamente, em situação igual à dos sócios de uma sociedade em nome colectivo. Nas relações entre devedores solidários presume-se que eles comparticipam em partes iguais na dívida sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes”.
Aplicando-se às sociedades irregulares as normas das sociedades civis (v. art.º 36.º, n.º 2, do C.S.C. e Ac. da R. de Lisboa de 3/11/88, C.J., Ano 13.º, 5.º, 103), na falta de convenção em contrário, todos os sócios têm igual poder para administrar e pelas dívidas sociais respondem a sociedade e, pessoal e solidariamente, os sócios (art.º 985.º, n.º 1, e 997.º, n.º 1, do C.C.).
E o sócio não pode eximir-se à responsabilidade por determinada dívida a pretexto de esta ser anterior à sua entrada para a sociedade (n.º 4 daquele art.º 997.º).
Além disso, até mesmo depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação (art.º 1020.º do C.C.).
Ainda como resulta do mencionado art.º 36.º, e como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/95 (in www.dgsi.pt/jstj.nsf, com o n.º convencional jstj00027382) “é necessário para que se considere existente uma sociedade (ainda que irregular por a sua constituição não obedecer aos requisitos legais de forma) que as partes (sócios) tenham manifestado a chamada “affectio societatis”, isto é, a intenção de cada um se associar com outros, pondo em comum bens, valores e trabalho, com o fim de partilhar os lucros resultantes dessa actividade”.

Posto isto, vejamos, então, se os Réus estão obrigados a prestar as contas que os Autores exigem.
O objecto da acção de prestação de contas encontra-se definido no art. 1014.º do C. de Proc. Civil, segundo o qual “a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
Deste artigo resulta que o direito de exigir a prestação de contas está directamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem ou que não lhe pertencem em regime de exclusividade.
Essa actividade de administrador de bens alheios é susceptível de gerar receitas, podendo também impor a realização de despesas. Do confronto das receitas e despesas decorrerá ou não o apuramento de um saldo que aquele será condenado a pagar.
Este entendimento é pacífico na jurisprudência, como salienta o Acórdão da Relação de Lisboa, de 15/12/1994, publicado na C.J., tomo V, pág. 140, citando vários acórdãos, entre eles o do S.T.J. de 14/01/1975, (B.M.J. n.º 243.º, 204), no qual se afirmou que o que justifica o uso da acção com processo especial de prestação de contas “é a unilateralidade do dever de uma das partes prestar contas à outra, por imperativo da lei ou disposição do contrato, relativamente a bens ou interesses que lhe foram confiados”.
O mesmo entendimento tem a doutrina, como se constata dos ensinamentos de Alberto dos Reis, (Processos Especiais, vol. 1.º, pág. 302 e ss.), onde escreveu: “pode formular-se este princípio geral: quem administra bens alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses”. E, posteriormente, na R.L.J., ano 82.º, pág. 413, escreveu: “a prestação de contas pressupõe que a pessoa a quem são pedidas as contas exerceu gerência ou administração de interesses da pessoa que as pede”.
Importa, pois, determinar quando é que se pode afirmar que alguém está obrigado a prestar contas.
Não existe norma legal que genericamente responda a esta questão. O que há é um alargado leque de preceitos espalhados, designadamente, no Código Civil e Código Processo Civil que, casuisticamente, impõem essa obrigação (cfr. artigos 95.º, 662.º, 988.º, 1161.º al. d), 1944.º, 2202.º-A, 2093.º e 2332.º do Código Civil, 843.º e 1126.º do C. de Proc. Civil).
Temos, assim, que a obrigação de prestar contas decorre directamente da lei. Mas pode também derivar do negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa fé (cfr. neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 17/12/1994, CJ., tomo V, pag.99).
Como ensina Alberto dos Reis (ob. cit., 314), “na petição (do processo especial de prestação de contas) há-de o autor dizer a razão por que pede contas ao réu, ou por outras palavras, a razão por que se julga no direito de exigir a prestação de contas e por que entende que sobre o réu impende a obrigação de prestar contas”.
No caso vertente, os Autores invocam como fundamento para exigirem contas aos Réus o facto de com eles ter constituído uma sociedade irregular e com eles ter aberto uma conta no Banco...., onde eram movimentados os dinheiros provenientes do exercício dessa mesma sociedade.
Alega ainda o autor que naquela conta foram movimentados, a crédito e a débito, variados montantes, cujo saldo final desconhece.
No seguimento do que vem sendo entendido, segundo se crê de forma pacífica, pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, dispondo as sociedades irregulares de capacidade activa e passiva, qualquer dos seus sócios poderá exigir do sócio gerente, do mandatário social ou daquele que administrou bens da sociedade, a prestação de contas (cfr. Acórdãos da Relação de Lisboa de 6/10/1977, C.J., 1977, 4.º, 950; de 12/11/95, C.J., 1995, 5.º, 91, e de 15/02/2001, in www.dgsi.pt/jstj.nsf).
Importa, por isso, apreciar se foram alegados e provados factos suficientes de onde resulte a obrigação dos Réus prestarem contas aos Autores.
Da audiência de discussão e julgamento resultou provado que os Réus movimentavam a conta a crédito e a débito, sendo certo que alguns movimentos efectuados na referida conta eram do perfeito conhecimento do Autor, que sempre teve acesso aos extractos bancários e que houve levantamentos que se destinaram ao Autor para que este pagasse os materiais que a sociedade ia adquirindo.
Assim sendo, e ainda que não seja possível, por não ter sido alegado e provado, concluir de forma segura que eram os Réus quem exercia de facto a gerência da aludida sociedade, pelo menos um facto é incontroverso: os Réus movimentaram a crédito e a débito a conta em questão.
E fizeram-no na qualidade de sócios da sociedade irregular que constituíram com o Autor.
Ora, a obrigação de prestar contas tem lugar todas as vezes que alguém trata de negócios alheios ou de negócios simultaneamente alheios e próprios, como é o caso (v. Ac. desta Relação de 8/6/78, C.J., 1978, 3.º, 871).
E a circunstância de o Autor ter acesso aos extractos bancários da conta em questão e de alguns movimentos serem do seu conhecimento (item 5.º) não afasta a obrigação de os Réus prestarem contas, já que uma coisa é o acesso aos extractos bancários e outra coisa é a realidade subjacente aos movimentos a débito e a crédito efectuados na mesma conta.
Em suma, justifica-se cabalmente, no caso presente, a obrigação dos Réus prestarem contas aos Autores.
Improcedem, pois, as conclusões dos apelantes, pelo que a douta sentença recorrida terá de manter-se.
...............

DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar ambas as apelações improcedentes e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 08 de Julho de 2004
Emídio José da Costa
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso