Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2029/2003-5
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: SEGURANÇA SOCIAL
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
ABUSO DE CONFIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social tem legitimidade para se constituir assistente e, nessa qualidade, intervir nos autos requerendo a instrução em processo objecto de arquivamento e em que está em causa a eventual prática de abuso de confiança fiscal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
I
Pelo extinto Centro Regional de Segurança Social de Lisboa foi instaurado o inquérito contra “CES – COMÉRCIO DE EQUIPAMENTOS, S.A.”, com vista à averiguação da eventual prática do um crime  de abuso de confiança, p. e p. pelos artigos 27.º-B e 24.º do Regime Geral das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de Junho – e, actualmente, previsto e punível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 107.º e 105.º do Regime Jurídico das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Concluído o inquérito e remetidos os autos ao Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, veio a Exma Magistrada do Ministério Público a proferir despacho em que, considerando não estarem suficientemente indiciados os elementos integradores daquele ou doutro qualquer delito, determinou o arquivamento dos autos.
Notificado tal despacho ao Director do CRSSLVT – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, veio o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (doravante, abreviadamente, designado, também, por IGFSS) requerer a sua constituição como assistente e a abertura da instrução.
Sobre tais requerimentos incidiu despacho judicial, cujo teor, no que agora interessa, se transcreve:
(...)
Os presentes autos tiveram origem em comunicação apresentada pelo Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo, denunciando factos susceptíveis de integrar crime de abuso de confiança em relação à segurança social, p. e p. pelo art.º 27.º-B do RJINFA – fls. 2 a 8.
Por despacho de 12/4/02, foi admitida a intervenção como assistente por parte do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, na sequência de requerimento deste invocando a qualidade de “sucessor” dos Centros Regionais de Segurança Social, entretanto extintos – fls. 245 e 241.
Só ao citado Instituto assistirá assim legitimidade para intervir e prosseguir no âmbito deste processo na qualidade de assistente. Não se vendo motivo legal para – pelos mesmos factos, pelo mesmo ilícito criminal – aceitar a intervenção como assistentes de 2 Institutos Públicos, distintos.
A não perfilhar-se semelhante entendimento, sempre existiria obstáculo à aceitação da sua representação judiciária por vários Advogados, não comuns (v.g., as procurações forenses de fls. 242 e 271; e o art.º 70.º do CPP).
Termos em que, por carecer de legitimidade para o efeito, indefiro o requerimento de constituição de assistente formulado pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
(...)
O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social veio ainda requerer a abertura de instrução, nos termos e com os fundamentos de fls. 262 a 270.
Estatui o art.º 287.º, n.º 1, al. b), do CPP: A abertura de instrução pode ser requerida ... pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
O referido Instituto não foi admitido a intervir como assistente nos presentes autos, pelo que carece de legitimidade para peticionar a abertura da instrução.
Ocorre assim claro motivo de inadmissibilidade legal da pretendida instrução.
Termos em que, de harmonia com o disposto no art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P., decido rejeitar o requerimento de abertura de instrução.
(...)
Pedindo a revogação de tal despacho e a substituição por outro que o admita a intervir como assistente e defira a o requerimento de abertura de instrução, recorre o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, terminando a motivação com as seguintes conclusões:
1. O Instituto de Solidariedade e Segurança Social interveio nos autos de acordo como o previsto no n.º 4 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 316-A/2000, de 7 de Dezembro.
2. A legitimidade do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social para intervir e prosseguir no âmbito deste processo na qualidade de assistente advém do n.º 4 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 316-A/2000, de 7 de Dezembro ; do Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho e da respectiva Portaria n.º 409/2000, de 17 de Julho, nomeadamente na alínea k) do artigo 16.º.
3. O Instituto de Solidariedade e Segurança Social não requereu a sua constituição como assistente pelo que carece de legitimidade processual nos presentes autos.
4. O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social deve ser admitido como assistente, por ser o ofendido nos termos oportunamente requeridos.
5. Desta sorte, a decisão recorrida, ao concluir que o ora recorrente não tem legitimidade para a constituição como assistente e por maioria de razão para a abertura de instrução, assenta numa interpretação errada do n.º 4 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 316-A/2000, de 7 de Dezembro; do n.º 2 do artigo 68.º do CPP; do Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho e da alínea k) do artigo 16.º. da n.º 409/2000, de 17 de Julho.
O Ministério Público respondeu ao recurso, concordando, no essencial, com os fundamentos expostos na motivação e propugnando o seu provimento.
A Mma. Juiz a quo manteve a decisão.
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer em consonância com o teor da resposta apresentada no tribunal recorrido.
Corridos os vistos da lei, cumpre apreciar e decidir.
II
A organização administrativa do sistema de segurança social sofreu várias alterações, nos últimos vinte anos, interessando, para a apreciação do recurso, destacar a evolução no que diz respeito às competências ligadas à gestão financeira e à defesa e representação dos interesses relacionados com a cobrança de contribuições.
O Decreto-Lei n.º 260/93, de 29 de Julho, no seu artigo 1.º, n.º 1, conferiu aos Centros Regionais de Segurança Social (doravante, abreviadamente, CRSS) a natureza de institutos públicos e, em matéria de gestão financeira, atribuiu aos respectivos Conselhos Directivos a competência para receber as contribuições de depositá-las à ordem do IGFSS – criado pelo Decreto-Lei n.º 17/77, de 12 de Janeiro – e promover a cobrança coerciva das dívidas à segurança social, participando-as aos serviços de justiça fiscal e determinando o acompanhamento dos respectivos processos[1].
O Decreto-Lei n.º 115/98, de 4 de Maio (Lei Orgânica do Ministério do Trabalho e da Solidariedade), entre outras finalidades, a que alude o respectivo preâmbulo, visou “(...) melhorar a gestão financeira do sistema, mediante a centralização da cobrança das contribuições sociais e da gestão da dívida à segurança social  no Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, iniciando-se o processo da sua reestruturação orgânica (...)”, atribuindo ao IGFSS a competência para promover a cobrança coerciva da dívida à segurança social, acompanhando o respectivo processo[2], e aos CRSS a competência para exercer a acção fiscalizadora junto dos beneficiários e contribuintes e exigir os cumprimento das respectivas obrigações[3].
Na sequência deste último diploma, o Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho, aprovou o Estatuto do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, no qual, entre outras, são cometidas ao IGFSS as atribuições de assegurar e controlar a cobrança das contribuições e das formas de recuperação da dívida à segurança social; promover a regularização das situações de incumprimento na forma, condições e requisitos estabelecidos na lei; assegurar a cobrança coerciva da dívida à segurança social, acompanhando o respectivo processo; e exercer a acção fiscalizadora junto dos contribuintes e exigir o cumprimento das respectivas obrigações[4].
O mesmo Estatuto estabelece que IGFSS, com sede em Lisboa, “disporá de delegações ou outras formas de representação em território nacional, que serão criadas, caso a caso, por Portaria do Ministério do Trabalho e da Solidariedade”[5].
Relativamente às atribuições que, por via de tal Estatuto, foram subtraídas aos CRSS e conferidas ao IGFSS, o artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho, estabeleceu um regime transitório, nos termos do qual, enquanto não fossem criadas as delegações ou outras formas de representação do IGFSS, os órgãos dos CRSS continuariam a assegurar, na parte relativa a contribuintes, o exercício das competências previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 10.º do 260/93, de 29 de Julho, no n.º 5 do mesmo artigo e ainda na alínea d) do n.º 2 do artigo 31.º Decreto-Lei n.º 115/98, de 4 de Maio.
Na tarefa de reformular a orgânica interna do IGFSS, face às novas competências, nomeadamente em matéria gestão directa de todo o processo de cobrança contributiva de gestão da dívida á segurança social, que lhe foram cometidas pelo referido Estatuto, a Portaria n.º 409/2000, de 17 de Julho, aprovou a Estrutura Orgânica Interna do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, diploma que, definindo o âmbito geográfico das respectivas delegações[6], lhes comete, genericamente, entre outras, as atribuições de proceder à fiscalização dos contribuintes;  reclamar os créditos da segurança social nos processos judiciais e assegurar os respectivo patrocínio judicial pelo IGFSS; acompanhar os processos judiciais relativos a crimes praticados por contribuintes, instruir processos de contra-ordenação e promover a execução judicial respectiva[7].
A Delegação de Lisboa do IGFSS foi criada pela Portaria n.º 427/2000, de 17 de Julho, que, estipulando que, nos 90 dias posteriores ao início da sua vigência, os Conselhos Directivos do IGFSS e do CRSS de Lisboa e Vale do Tejo deveriam preparar os autos de transferência dos processos inerentes às atribuições da Delegação criada, tal como enunciadas no mesmo diploma, que entrou em vigor no dia 1 de Agosto de 2000[8].
Entre as atribuições cometidas à Delegação de Lisboa do IGFSS, contam-se as já referidas competências para proceder à fiscalização dos contribuintes; reclamar os créditos da segurança social nos processos judiciais e assegurar os respectivo patrocínio judicial pelo IGFSS; acompanhar os processos judiciais relativos a crimes praticados por contribuintes, instruir processos de contra-ordenação e promover a execução judicial respectiva[9].
O Decreto-Lei n.º 45-A/2000, de 22 de Março, que alterou o Decreto-Lei n.º 115/98, de 4 de Maio (Lei Orgânica do Ministério do Trabalho e da Solidariedade), criou o Instituto de Solidariedade e Segurança Social (adiante designado, abreviadamente, por ISSS)[10], prevendo a integração dos CRSS nos ISSS, em termos a estabelecer em regulamentação específica[11].
O que veio a suceder com a publicação do Decreto-Lei n.º 316-A/2000, de 7 de Dezembro, que aprovou os Estatutos do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, extinguiu os CRSS fazendo suceder-lhes o ISSS[12], mas preveniu que este continuaria “a assegurar transitoriamente as competências em matéria de contribuintes, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho (...)”.
Do que vem de ser exposto, decorre que a legitimidade para acompanhar processos judiciais, maxime, intervir, como assistente, em processos penais, na defesa dos interesses prosseguidos pelo sistema de segurança social, inicialmente atribuída aos CRSS[13], veio a ser transferida ope legis para o IGFSS[14], mas essa transferência não foi operada imediata e instantaneamente, pois que, dependendo da reestruturação orgânica do IGFSS, que, entre o mais envolvia a criação e instalação de estruturas descentralizadas (Delegações Distritais) e da completa transferência de competências dos CRSS para as Delegações Distritais do IGFSS, só quando tal processo, naturalmente moroso, estivesse concluído, poderia o IGFSS, através das suas Delegações Distritais, exercitar, na prática, o direito de se constituir assistente, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, proémio, do Código de Processo Penal.
Daí que, transitoriamente – entenda-se até à completa reestruturação dos serviços do IGFSS e respectiva operacionalização –, a lei tenha prevenido a continuidade do acompanhamento dos processos, quer pelos CRSS, quer pelo ISSS, que lhes sucedeu, quando eles foram extintos.
Assim, concluído o processo de reestruturação, não temos dúvidas de que o IGFSS, através da sua Delegação de Lisboa, tem legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos, em que se trata de averiguar um crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Mostram os autos que, depois de para tanto notificado por ordem do Ministério Público, o ISSS, invocando a qualidade de sucessor dos Centros Regionais de Segurança Social, veio “requerer a junção aos autos da PROCURAÇÃO FORENSE”, mantendo a intenção de se constituir assistente”, após o que foram os autos remetidos ao Tribunal de Instrução Criminal, onde veio a ser proferido despacho que admitiu aquele Instituto a intervir nos autos como assistente[15].
Tal decisão ocorreu antes do despacho do Ministério Público que determinou o arquivamento dos autos.
Posteriormente, o IGFSS, através da sua Delegação de Lisboa, como já se viu, veio requerer a sua admissão como assistente, requerimento sobre o qual incidiu o despacho impugnado, no qual, além do mais, se considerou inaceitável a intervenção de dois Institutos Públicos como assistentes, com relação ao mesmo ilícito criminal.
Tal situação não se verificará, posto que, considerando, como nos parece correcto, a transitoriedade da legitimidade para intervir como assistente do ISSS – legitimidade transitória herdada dos CRSS – e tendo presente que a decisão que admitiu a sua intervenção, naquela qualidade, tem o valor de caso julgado formal subordinado à condição rebus sic stantibus, a assunção do direito de se constituir assistente pelo IGFSS, no uso das atribuições legalmente conferidas, terá, como consequência, o afastamento da intervenção no processo do ISSS.
A solução correcta consiste, salvo o devido respeito por diferente opinião, em admitir-se o recorrente como assistente, com o que caducarão os efeitos do despacho que deferiu a constituição do ISSS como assistente.
III
Em face do exposto, decide-se, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão impugnada, a qual deverá ser substituída por outra que:
– Reconhecendo, para tanto, legitimidade ao recorrente, o admita a intervir nos autos como assistente;
– Declare cessada a intervenção do ISSS como assistente;
– Aprecie o requerimento de abertura de instrução formulado pelo recorrente.
 
Não são devidas custas.
 
Lisboa, 21 de Outubro de 2003

Adelino César Vasques Dinis
Manuel Cabral Amaral
Armindo Marques Leitão
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[1] Artigo 10.º, n.º 5, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 260/93, de 29 de Julho.

[2] Artigo 23.º, n.º 2. alínea f), do Decreto-Lei n.º 115/98, de 4 de Maio.
[3] Artigo 31.º, n.º 2. alínea d), do Decreto-Lei n.º 115/98, de 4 de Maio.
[4] Artigo 3.º, n.º 2, alínea b), ii),iii),iv) e v), do Estatuto do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, aprovado pelo o Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho.
[5] Artigo 2.º, n.º 2, do Estatuto do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, aprovado pelo o Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho.
[6] Artigo 15.º, n.º 1, da Estrutura Orgânica Interna do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, aprovada pela Portaria n.º 409/2000, de 17 de Julho.
[7] Artigo 16.º, alíneas i), j) e k), da Estrutura Orgânica Interna do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, aprovada pela Portaria n.º 409/2000, de 17 de Julho.
[8] Artigos 1.º, 4.º, n.º 1, alínea b) e 6.º, da Portaria n.º 427/2000, de 17 de Julho.
[9] Artigo 2.º, alíneas i), j) e k), da Portaria n.º 427/2000, de 17 de Julho.
[10] Artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 115/98, de 4 de Maio, na redacção do Decreto-Lei n.º 45-A/2000, de 22 de Março.
[11] Artigo 3.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 45-A/2000 de 22 de Março.
[12] Artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 316-A/2000, de 7 de Dezembro.
[13] Artigo 10.º, n.º 5, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 260/93, de 29 de Julho.
[14] [14] Artigo 3.º, n.º 2, alínea b), ii),iii),iv) e v), do Estatuto do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, aprovado pelo o Decreto-Lei n.º 260/99, de 7 de Julho.
[15] Fls. 241 a 245.