Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0624171
Nº Convencional: JTRP00039632
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: AVALISTA
PACTO DE PREENCHIMENTO
Nº do Documento: RP200610240624171
Data do Acordão: 10/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 228 - FLS. 83.
Área Temática: .
Sumário: I- Face à autonomia da respectiva obrigação, o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, nem que invoque a inexistência (formal) da obrigação do avalizado, salvo no que respeita ao pagamento.
II- Aludindo à violação do pacto de preenchimento, em função de um contrato de mútuo, cumpria ao avalista invocar o contrato subjacente em que tivesse tido parte, contrato do qual resultassem para si próprio e não para outrem obrigações, bem como às violações de preenchimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de agravo interposto na acção com processo incidental de oposição à penhora nº……/05.1YYPRT-A, do 2º Juízo de Execução do Porto.
Agravante/Oponente – B……….
Agravado/Exequente – C…….., S.A.

Tese da Oponente
Subscreveu o título executivo como avalista do subscritor. Porém, o financiamento prometido pelo Exequente à Subscritora nunca aconteceu, sendo abusivo o preenchimento da livrança pelo dito Exequente.

Despacho Liminar Recorrido
Com fundamento em que a Oponente se encontra, para com o Exequente, em relação mediata, não podendo suscitar a excepção de preenchimento abusivo convencionado entre o portador e o subscritor da livrança, a oposição foi indeferida liminarmente.

Conclusões do Recurso de Agravo:
1 – A Recorrente é simultaneamente sujeito da relação (contrato de mútuo), como da relação cartular com o sacador-exequente.
2 – Aliás, exactamente por ser avalista, o banco exequente poderia demandar directa ou exclusivamente a oponente recorrente como avalista.
3 – O banco exequente não é endossado mas sacador e simultaneamente sujeito do contrato de mútuo.
4 – A Recorrente só não poderia opor-se à Exequente se a Exequente fosse endossada.
5 – Nesse caso, o endossado e a oponente, como avalista, estariam em relação mediata.
6 – A livrança foi entregue à Exequente no acto do contrato, pelo que não tem implícita a confissão do capital mutuado, nem a livrança produz a novação da dívida.
7 – A oponente como avalista pode discutir a relação subjacente do contrato com o sujeito (exequente) do mesmo contrato em que é sujeito a oponente, quer no contrato, quer na relação cartular.
8 – A inexistência do mútuo obviamente conduz à inexigibilidade da relação abstracta cartular na posse da exequente-sacadora, relativamente à devedora principal (subsidiária) que é a oponente-recorrente.
Factos Apurados
Encontram-se provados os factos supra resumidamente descritos e relativos à alegação da Oponente, para além do teor da decisão judicial impugnada.

Fundamentos
A pretensão da Agravante resume-se ao questionar do seguinte item: pode o avalista do aceitante (subscritor, em livrança) invocar quaisquer excepções pessoais que competem ao avalizado, designadamente a inexistência do financiamento que constituía o negócio subjacente à livrança dos autos?
Vejamos de seguida.

I
Do disposto nos artºs 30º e 32º L.U.L.L. diz-se que a obrigação do avalista é autónoma pois que este avalista não assume uma responsabilidade subsidiária – assume a obrigação emergente da própria letra ou livrança e a obrigação respectiva mantém-se mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.
Posta a “autonomia”, e quanto à questão específica que nos ocupa, duas posições se podem, genericamente, assumir (ut Ac.R.E. 11/12/86 Col.V/300 – Faria Sousa, do qual extrairemos, com a devida vénia, as citações infra):
C. Mossa (La Cambiale Secondo da Nuova Lege, pgs.438 e 517), reconhecendo como um dogma a autonomia de todas as obrigações cambiárias, “un dogma del diritto cambiario: un dogma di diritto universale e naturale e un dogma que in ogni tempo há dato unitá al diritto cambiario e lo ha distinto del diritto commune”, defende a oponibilidade das excepções pessoais com o argumento de que “l`inopponabilitá assoluta delle eccezioni personali mettereble l`avallante in posizione ancore piu grave di quella del debitore garantito”.
Neste sentido, pronunciou-se o Ac.R.C. 17/4/90 Bol.396/448.
Em contrário, Bonelli (Della Cambiale, nº181, pg.350) opina que “l`avallante non puó oporre al prossessore la eccezioni personali dell`avallato, che fornisca a questo una ocassione per sottarsi al pagamento, e estraneo all`avallante, e non puó essere da lui invocato par lo stesso scopo, a meno che esso non sai di nature tala da pregiudicare la sua azione di regresso verso l`avalato medissimo”.
Esta posição é abundantemente seguida na doutrina, em Portugal: veja-se S.T.J. 27/4/99 Col.II/68, Ac.R.C. 14/2/06 Col.I/24, Ac.R.L. 1/6/00 Col.III/109, Ac.R.P. 31/3/98 Bol.475/769, Ac.R.C. 3/2/98 Bol.474/557, Ac.R.L. 9/7/92 Col.IV/146 ou Ac.R.E. 9/6/88 Bol.378/811, para além do Ac.R.E. 11/12/86 Col.V/300 já cit..
Veja-se, por exemplo, em Paulo Sendim, Letra de Câmbio, II/146, cit. in Ac.R.L. 1/6/00 supra: “A independência recíproca do aval face à obrigação que garante leva a que o portador fique mais garantido pelo avalista do que pelo sacador ou endossante avalizado, do qual adquiriu a letra. O valor patrimonial de garantia do aval, correspondente ao da operação avalizada, está livre de vicissitudes inerentes à criação ou transmissão do direito de crédito relevantes para o seu adquirente e que podem determinar, ou a não formação do valor patrimonial pela operação avalizada, ou a sua formação, quer limitada, quer precária, pelas excepções pessoais que se fundamentem na transmissão cambiária”.
Ou então, cf. Ol. Ascensão (Dtº Comercial, Títulos de Crédito, III/172): “É autónoma a responsabilidade do avalista pois a função substancial de garantia que está na sua origem não se comunica ao regime, pelo que essa função acaba por ser meramente abstracta”; “sendo uma obrigação autónoma, o avalista não pode invocar perante terceiros as excepções pessoais que caberiam ao avalizado. Se o avalista responde na medida que caberia ao avalizado, ainda que a obrigação deste fosse nula, por maioria de razão responde se for válida e apenas houvesse que opor contra ela excepções pessoais”.
Isto se escreveu e se sustenta sem prejuízo de se reconhecer ao avalista a possibilidade de invocar o pagamento efectuado pelo avalizado, pela simples razão de que o portador da letra não pode exigir do avalista um segundo pagamento, desde que o portador seja o mesmo em relação ao qual o avalizado extinguiu a respectiva obrigação – assim Vaz Serra, Revista Decana, 113º/186 ou S.T.J. 23/1/86 Bol.353/482 e S.T.J. 27/4/99 cit.
Repare-se que até a própria inexistência (formal) da obrigação do avalizado é insusceptível de contender com a obrigação do avalista – ut S.T.J. 26/3/98 Bol.475/718 e Ac.R.C. 6/4/94 Bol.433/631 (contra – Ac.R.P. 19/4/90 Bol.396/439).
Na exegese do que se lê no artº 32º §2º L.U.L.L., escreveu Paulo Sendim (Letra de Câmbio, II/781), cit. in Ac.S.T.J. 26/3/98 supra:
“A nulidade da obrigação do avalizado é claramente, nos termos da Lei Uniforme, um dos casos da sua proposição – a do princípio da independência. O caso extremo: mesmo no caso, não o único. Por outro lado, a nulidade da obrigação do avalizado, como logo é sugerido pelo que se lhe acrescenta – por qualquer razão – não é um conceito que ser empregue num sentido técnico preciso. Antes procura traduzir praticamente toda a situação em que essa obrigação, ao fim e ao cabo, não exista: ou porque se constituiu e é nula, foi anulada, ou porque nem se chegou a constituir.”

II
A Recorrente sublinha, é certo que “subscreveu o contrato principal”, o “contrato de mútuo”.
Tal resulta, note-se, do teor das alegações de recurso, constituindo questão nova à face do decidido em 1ª instância, para o qual o Mmº Juiz “a quo” se deparou tão só com o requerimento executivo e a livrança invocada, acrescendo a alegação de que “os aceitantes subscreveram o título executivo como aceitantes e avalistas” – artº 1º do petitório.
Não esclareceu porém a Oponente e ora Recorrente (no petitório, pois que em recurso é vedada a apreciação de questões novas – artº 676º nº1 C.P.Civ.) sobre em que é que a execução da letra viola um eventual pacto de preenchimento, no que a ela Recorrente/avalista dissesse respeito.
Isto é, para que a Recorrente pudesse opor-se com êxito à execução cumpria-lhe invocar um contrato subjacente em que ela própria tivesse sido parte, contrato do qual resultassem, para ela ora Recorrente, e não para a sociedade avalizada e/ou afiançada, direitos e deveres, e do qual se pudesse concluir ter o portador da livrança agido em violação do pactado e em detrimento do avalista, este enquanto também obrigado nos termos do próprio pacto (neste sentido, cf. S.T.J. 3/5/01 R.O.A. 2001/II/pg.1039 e comentário de Meneses Cordeiro, pg.1051, Ac.R.P. 7/7/98 Bol.479/715 e Ac.R.P. 10/2/92 Bol.414/635).
Desta forma, não se encontra a Recorrente habilitada, pelo negócio subjacente, a discutir um eventual pacto de preenchimento, cuja existência não foi invocada perante a instância recorrida.
De todo o exposto se extrai que a presente oposição à execução, baseada no negócio subjacente incumprido, um financiamento que não chegou a ser concedido, era manifestamente improcedente, pelo que o disposto no artº 817º nº1 al.c) C.P.Civ. logrou aplicação ajustada.

Resumindo a fundamentação:
I - Face à autonomia da respectiva obrigação, o avalista não pode defender-se com as excepções do avalizado, nem que invoque a inexistência (formal) da obrigação do avalizado, salvo no que respeita ao pagamento.
II – Aludindo à violação do pacto de preenchimento, em função de um contrato de mútuo, cumpria à Recorrente/avalista invocar o contrato subjacente em que ela própria avalista tivesse sido parte, contrato do qual resultassem, para a avalista, e não para a sociedade avalizada e/ou afiançada, direitos e deveres, e do qual se pudesse concluir ter o portador da livrança agido em violação do pactado e em detrimento do avalista, este enquanto também obrigado nos termos do próprio pacto.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, acorda-se neste Tribunal da Relação:
No não provimento do agravo, confirmar o despacho recorrido.
Custas pela Agravante.

Porto, 24 de Outubro de 2006
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves