Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0820252
Nº Convencional: JTRP00041133
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
TURBAÇÃO DA POSSE
ESBULHO
VIOLÊNCIA
Nº do Documento: RP200802260820252
Data do Acordão: 02/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 266 - FLS. 139.
Área Temática: .
Sumário: 1. O acto de turbação pode diminuir, alterar ou modificar o gozo e o exercício do direito, mas não destruir a retenção ou a fruição existente, ou a sua possibilidade.
2. O esbulho verifica-se sempre que alguém for privado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar.
3. Constituem actos de esbulho e não de mera turbação da posse os actos de vedação de parcelas de terreno de prédios rústicos, seja com muros, seja com outros materiais, por constituírem verdadeiros actos de desapossamento e usurpação dessas parcelas de terreno, deixando o titular do prédio privado da sua retenção e da sua fruição efectiva.
4. A violência exercida sobre as coisas só releva, para qualificar o esbulho como violento, se tiver por fim intimidar o possuidor, limitando a sua liberdade de determinação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Agravo n.º 252/08-2
1.ª Secção Cível
NUIP ……../07.0TBCHV
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I

1. B…………….., residente no lugar de ……., freguesia de ………., comarca de Chaves, na qualidade de cabeça-de-casal das heranças indivisas abertas por óbitos de C…………… e D…………., instaurou contra E………….. e F………….., residentes no …………, da dita freguesia de …………, procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, que corre termos no …...º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Chaves sob o n.º …../07.0TBCHV, em que requereu que, na referida qualidade de cabeça-de-casal, seja restituído provisoriamente à posse da parcela de terreno que identifica sob o art. 10.º do seu requerimento inicial, com a remoção dos postes e arame com que foi vedada pelos requeridos.

Alegou, em síntese, que os pais do requerente eram únicos donos do prédio rústico composto de terra de cultivo, pastagem e pinhal, que confronta a Norte e Poente com G……………, a Nascente com H………….. e a Sul com caminho público, inscrito sob o artigo 789.º da respectiva matriz rústica, o qual haviam adquirido aos anteriores donos por contrato de compra e venda e, desde que o compraram, sempre o possuíram e fruíram como coisa sua, cultivando-o e dele retirando todas as utilidades que produzida, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta, sem oposição de alguém e na convicção segura de que exerciam um direito próprio; que após o falecimento de seus pais, foram o requerente e suas irmãs, como únicos herdeiros daqueles, que actuaram da forma descrita relativamente ao mesmo prédio rústico; porém, em Setembro de 2007, os requeridos vedaram, com postes de ferro e cimento ligados por arames, uma parcela de terreno do prédio anteriormente identificado, situada à face do caminho, com cerca de 24 metros de frente e 21 de fundo, assim a subtraindo à posse e fruição do requerente e demais herdeiros.

Depois de produzidas as provas e sem audição prévia dos requeridos, como dispõe o art. 394.º do Código de Processo Civil, foi decidido julgar improcedente o presente procedimento cautelar, não sendo decretada a providência requerida com o fundamento de que os actos praticados pelos requeridos não configuravam esbulho, mas apenas turbação da posse.

2. O requerente, não se conformando com essa decisão, agravou para esta Relação, extraindo da sua motivação as conclusões seguintes:
1. Deu-se como provada a posse do requerente sobre o tracto identificado nos autos.

2. Vem igualmente provado que os requeridos vedaram esse tracto com postes de ferro e cimento ligados por arame e que os mesmos, chamada a P. S. P. ao local, se recusaram a remover a vedação.

3. Dever-se-á decidir que os requeridos, ao estabelecerem a vedação do referido tracto, e ao se recusarem a retirar a vedação e tendo feito a escritura de justificação notarial mencionada, esbulharam o requerente da posse que tinham sobre o tracto em referência.

4. Deverá ser revogada a, aliás, douta sentença, por incorrecta interpretação do disposto nos arts. 1278.º e 1279.º do C. Civil e ser ordenada a restituição provisória da posse, tal como vem requerido.

3. O objecto do presente agravo, delimitado pelas suas conclusões (arts. 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), opõe à decisão recorrida uma única questão: que a conduta dos requeridos, consubstanciada nos factos provados, constitui esbulho violento da posse do requerente, e não mera turbação da posse, pelo que deverá ser decretada a restituição provisória da posse quanto à parcela de terreno vedada pelos requeridos. É, pois, esta a questão que importa apreciar.

Foram colhidos os vistos legais.

II

4. Na decisão recorrida foram considerados os seguintes factos alegados pelo requerente e julgados provados:

a) Existe na freguesia de …………., desta comarca, no lugar ……., também conhecido por ……, um prédio rústico composto, hoje, de terra de cultivo, pastagem e pinhal, destinando-se até à pouco, a vinha e olival, que confronta a Norte e Poente com G…………, a Nascente com H…………… e a Sul com caminho público, inscrito sob o artigo 789.º da respectiva matriz rústica (artigo 1.º da petição inicial).

b) O prédio mencionado em a), foi adquirido, por compra, pelos pais do Requerente – C……………. e D………………. (artigo 2..º da petição inicial).

c) Desde a compra que os pais do Requerente aravam o terreno identificado em a), podavam a vinha e o olival, vigiavam-no e, na certeza de que eram os seus únicos e exclusivos donos, colhiam todo o seu fruto designadamente as uvas e a azeitona para si próprios sem prestarem contas a quem quer que fosse, à vista de todos, dias após dia, mês após mês, ano após ano e, assim ininterruptamente, sem oposição de ninguém e na convicção segura de que não ofendiam os direitos de outrem (artigos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º e 7.º da petição inicial).

d) Os actos mencionados em d) foram praticados pelos pais do Requerente até ao falecimento do pai e, após o seu decesso, por seus filhos e sua mulher, até ao falecimento desta em 27 de Setembro de 1988 e, a seguir a este, pelos filhos de ambos até agora, sempre na convicção de que tal prédio só a si pertencia e pertence (artigo 8.º da petição inicial).

e) Desde 2001 até agora e, por entretanto, o Requerente ter adoecido gravemente e suas irmãs se encontrarem na América, os actos do Requerente, sobre o dito prédio têm-se limitado, entre o mais, a vigiá-lo, nomeá-lo no I.N.G.A. como pousio para se candidatar, através da sua mulher – I…………….., aos respectivos subsídios compensatórios, tomando a parcela o n.º 2565278733500 (artigo 9.º da petição inicial).

f) Os Requeridos no dia 1 Setembro de 2007, vedaram uma parcela de terreno no prédio identificado em a), à face do caminho, hoje estrada, com cerca de 24 metros de frente e 21 de fundo, com postes de ferro e cimento ligados por arames (artigo 10.º da petição inicial).

g) Logo no dia 3 de Setembro, o Requerente recorreu à P.S.P. em virtude dos factos descritos em f) (artigo 11.º da petição inicial).

h) Todavia, nos últimos 20 ou 30 ou 50 anos jamais os Requeridos araram, semearam ou adubaram o terreno descrito em f) agora vedado ou lhe cortaram qualquer árvore ou arbusto, ou lhe roçaram o mato, ou se aproveitaram do pasto, como também não lhe deram qualquer destino ou utilização nem se arrogaram donos do mesmo (artigo 13.º da petição inicial).

i) As heranças abertas por óbito dos pais do Requerente encontram-se indivisas, vindo o Requerente a desempenhar as funções de cabeça-de-casal (artigo 14.º da petição inicial).


III

5. O tribunal recorrido recusou decretar a restituição provisória da posse com o fundamento de que os actos praticados pelos requeridos, consubstanciados nos factos provados, não configuravam o esbulho da posse, mas apenas mera turbação da posse, que não impedia o requerente de continuar a exercer a mesma posse que vinha exercendo sobre o seu prédio, incluindo a parcela vedada pelos requeridos.

O agravante discorda desta interpretação dos factos e entende que a conduta dos requeridos constitui verdadeiro esbulho da sua posse, que o impedem de continuar a exercer, na sua plenitude, os actos de gozo e fruição que o proprietário tem o direito de exercer sobre os seus bens com a natureza deste (prédio rústico).

Assim, a questão a resolver, tal como é posta, situa-se mais no plano da interpretação do facto, tendo em vista a sua subsunção ao direito, do que, propriamente, no plano da interpretação das normas jurídicas aplicáveis.

A conduta ilícita, consubstanciada nos factos provados, que o requerente imputa aos requeridos para caracterizar o esbulho violento da sua posse e fundamentar o pedido de restituição provisória da posse, é a que está descrita sob a al. f) dos factos julgados provados e consiste apenas nisto: que os requeridos vedaram, com postes de ferro e cimento ligados por arames, uma parcela de terreno do prédio do requerente identificado na al. a), com cerca de 24 metros de frente e 21 metros de fundo.

Dando a sentença recorrida por verificada a posse efectiva do requerente exercida continuadamente desde há vários, sobre a parcela de terreno ora vedada pelos requeridos, como parte integrante que é do “todo” constituído pelo prédio rústico identificado sob a al. a) dos factos provados, importa apreciar se o acto de vedar a parcela de terreno, com postes de cimento e arames, assim a demarcando e desintegrando do prédio de que faz parte, constitui mera turbação da posse, como considerou a sentença recorrida, ou constitui, antes, verdadeiro esbulho da posse, como defende o agravante.

Mas, para além disso, a concluir-se que a conduta dos requeridos se integra no conceito de esbulho, para que possa proceder o pedido de restituição provisória da posse do requerente relativamente à parcela de terreno esbulhada, exige-se ainda que o esbulho tenha sido praticado com violência. Requisito que o tribunal recorrido não chegou a apreciar, por ter concluído pela inexistência de esbulho.

Ora, como refere a sentença recorrida, os requisitos de que depende a procedência do pedido de restituição provisória da posse são, nos termos definidos nos arts. 393.º e 394.º do Código de Processo Civil, a posse, o esbulho e a violência. Estes dois preceitos de natureza adjectiva visam efectivar o direito reconhecido pelo art. 1279.º do Código Civil ao “possuidor que for esbulhado com violência”, de ser “restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador” e impõem a observância dos seguintes pressupostos e limites: 1) ao possuidor (requerente) que pretenda ser restituído provisoriamente à sua posse, “no caso de esbulho violento”, impõe o ónus de alegar e provar “factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”; 2) ao julgador impõe, como limite, que a restituição provisória da posse só será ordenada se “reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente”.

É, assim, indiscutível, que, para além da confirmação da posse do requerente e da verificação do requisito do esbulho, se impõe também apreciar se, tendo ocorrido esbulho, foi com violência.


6. Para caracterizar a conduta dos requeridos como mera turbação da posse, e não esbulho, a sentença recorrida argumenta do seguinte modo:

«A lei não fornece qualquer critério de discriminação entre a turbação e o esbulho. Porém decorre da lógica que o esbulho supõe que o possuidor ficou privado da posse que tinha, foi colocado numa situação em que não pode continuar a exercer a posse e, por isso, é que o pedido que lhe corresponde é, precisamente, o da restituição, ou seja, o esbulhado é restituído à posse que o facto do esbulho lhe fez perder. Ao invés, o facto da turbação não faz perder a posse do possuidor, não o priva de continuar a exercer a posse, o que acontece é que o possuidor foi incomodado por terceiros, viu o exercício da sua posse embaraçado, por isso pede a manutenção da posse.
Ora decorre dos factos dados como provados que o Requerente, a partir do dia 1 de Setembro de 2007, por acto dos Requeridos, foi incomodado ou embaraçado no exercício da sua posse porquanto os Requeridos colocaram uma vedação numa parcela de terreno de que o Requerente era compossuidor.
É que face ao facto provado e), os actos de posse exercidos pelo Requerente eram vigiar e nomear o prédio rústico no I.N.G.A como pousio para se candidatar aos respectivos subsídios, o que significa que o Requerente pode continuar a exercer tais actos de posse, embora se encontre embaraçado pela actuação dos Requeridos (colocação de uma vedação), facto f).
Pelo exposto, verifica-se que não existe esbulho mas mera turbação da posse, pelo que falta um requisito necessário para a decretação da providência − restituição provisória da posse – pois não se pode restituir aquilo que não foi esbulhado (retirado).»

Como se vê, a sentença recorrida interpretou o acto ofensivo dos requeridos, de vedarem a parcela de terreno com postes de cimento e arames, como um mero “incómodo ou embaraço” para a posse do requerente, tendo em conta a natureza dos actos concretos de posse que o requerente vinha exercendo sobre o seu prédio, incluindo na parcela desapossada. Sem, portanto, tomar em consideração a plenitude dos actos que o possuidor pode praticar num bem com natureza deste ― prédio rústico constituído por terra de cultivo, pastagem e pinhal ― com vista a dele poder retirar todas as utilidades que o prédio pode potenciar, dada a sua afectação a diversos tipos de culturas agrícolas. Trata-se, a nosso ver, de um conceito de esbulho muito limitativo e redutor, que a história do preceito não favorece e que, sobretudo, se mostra algo desajustado à natureza do bem desapossado e à evolução do tipo de relações de vizinhança que se desenvolvem relativamente a estes bens. Sem prejuízo de se constatar a dificuldade prática de se distinguir, em muitos casos de fronteira, a mera turbação do esbulho, dificuldade que é reconhecida e vincada pelos grandes mestres deste ramo do direito, como os Professores Manuel Rodrigues, em A Posse, 3.ª edição – revista, anotada e prefaciada por Fernando Luso Soares – Almedina, Coimbra, 1980, p. 361-363, e Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1972, 42-43.

Segundo escreve Manuel Rodrigues (ob. e loc. citados), o acto de turbação pode analisar-se em três elementos: um acto material, uma pretensão contrária à posse de outrem e a conservação da detenção ou fruição, ou a sua possibilidade por parte do possuidor. E esclarece que “é o terceiro elemento ― ou seja, a conservação da posse pelo possuidor ― aquele que mais dúvidas tem provocado, porque é ele o elemento que fundamentalmente distingue a turbação do esbulho e porque, na verdade, por vezes é difícil dizer onde acaba a turbação e onde começa o esbulho”. Fazendo a distinção daqueles dois conceitos, diz: “O acto de turbação pode diminuir, alterar ou modificar o gozo e o exercício do direito, mas não destruir a retenção ou a fruição existente, ou a sua possibilidade”. De modo que, “enquanto o possuidor, quaisquer que sejam os ataques e as ofensas à sua posse, conserva a retenção material ou fruição real do direito, há simples turbação”. Por sua vez, “há esbulho sempre que alguém for privado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar”. Que pode ser parcial, quando se verifica “só em relação a um aparte do objecto, como quando alguém se apropria de uma parte de um prédio rústico possuído por outrem, murando-a, por exemplo”.

Estes conceitos de acto de turbação e esbulho da posse, bem como o apontado critério de distinção, são aceites e seguidos pela generalidade da doutrina e da jurisprudência, de que se citam, como exemplos, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. citados, e L. P. Moitinho de Almeida, em Restituição da Posse e Ocupação de Imóveis, Coimbra Editora, 1976, p. 83 e seguintes, e os acs. desta Relação de 30-10-2007 e de 08-01-2008, ambos em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. n.º 0725016 e 0726374; ac. da Relação de Coimbra de 16-05-2006, em www.dgsi.pt/jtrc.nsf/ proc. n.º 1240/06; e ac. da relação de Guimarães de 02-11-2005, em www.dgsi.pt/jtrg.nsf/ proc. n.º 1825/05-1.

Na aplicação prática destes conceitos, a jurisprudência tende a considerar como constituindo casos de esbulho, e não mera turbação da posse, os actos de vedação de parcelas de terreno de prédios rústicos, seja com muros de pedra, cimento ou tijolos, seja utilizando outros materiais de vedação, tais como postes de cimento e arame, por constituírem verdadeiros actos de desapossamento e usurpação ilícita dessas parcelas de terreno, deixando o titular do prédio privado da sua retenção material e da sua fruição efectiva.

Donde se conclui que, diferentemente do entendimento da 1.ª instância, consideramos que, neste caso, os requeridos praticaram um acto de esbulho sobre a parcela de terreno que demarcaram e vedaram com postes de cimento e arames, desse modo a separando e desintegrando do prédio de que faz parte integrante, como se passasse a constituir um prédio autónomo, e retirando-a do poder de facto de detenção e de fruição do dono para a integrarem na sua posse (a usurpação ilícita de que fala Orlando de Carvalho, em Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124.º/335).


7. Concluindo-se pela existência de esbulho, há que apreciar se também se verifica o requisito da violência, que, como se disse, é pressuposto de procedência do pedido de restituição provisória da posse.

Ao contrário do que sucede em relação à definição de esbulho, que a lei não contém, a doutrina e a jurisprudência entendem que o conceito de “violência” que para aqui releva é o que está definido no n.º 2 do art. 1261.º do Código Civil, segundo qual “considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do artigo 255º”. O que quer dizer que o conceito de violência tanto abrange a que é exercida através do uso da força física como através de coação moral, com o âmbito definido no art. 255.º do Código Civil.

Acerca da relevância e evolução do conceito de violência atendível para efeitos do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, Manuel Rodrigues (em ob. citada, p. 364-366) refere que: “Determinados pela ideia de que a violência, mais do que qualquer outro facto violador da posse, perturba a paz pública, criaram os antigos um processo possessório rápido contra o esbulho violento. (…) Este processo mantém-se no direito moderno … com o título de restituição provisória de posse”. Donde se infere que foram mais razões de paz social e boa vizinhança entre as pessoas do que, propriamente, razões relativas à fruição das coisas, que estiveram na origem deste procedimento cautelar. Daí que, numa primeira fase, este procedimento rápido e simplificado de formalidades apenas podia ser utilizado quando houvesse a “vix atrox”, isto é, “quando o possuidor fosse expulso do prédio que habitava ou cultivava”; depois, foi-se estendendo o seu âmbito às situações de esbulho resultantes de “abandono da coisa por medo” (coacção); mais tarde, o direito canónico ampliou o conceito de esbulho violento a toda a privação da posse feita por meios ilícitos. Referindo-se ao conceito na perspectiva do Código de Seabra e do Código de Processo Civil de 1876, diz que “actualmente, a violência tanto pode ser exercida contra as pessoas como contra as coisas”, mas com a seguinte limitação: “A violência, porém, há-de exercer-se sobre as pessoas que defendem a posse, ou sobre as coisas que constituem um obstáculo ao esbulho, e não sobre quaisquer outras”.

Ao que nos parece, este mesmo conceito permanece válida perante os preceitos dos actuais Código Civil e Código de Processo Civil acima referidos, sobre o direito do possuidor esbulhado com violência à restituição provisória da posse (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1972, 44-45; Alberto dos Reis, em Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1980, p. 670; e Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122.º/292-293).

O uso da violência sobre as pessoas não oferece a menor dúvida. Seja pelo uso da força física, seja através da coacção moral, aqui se compreendendo as formas de intimidação e da ameaça.

Acerca da violência sobre as coisas, Orlando de Carvalho escreve que “a violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como tal os meros actos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor. Ou melhor, (…) a violência sobre as coisas que estorvam a privação apenas relevará para este fim quando o agente usou, pelo menos de dolo eventual, quando previu, como normal consequência da sua conduta, que iria constranger psicologicamente o possuidor e, todavia, não se absteve de a assumir, conformando-se com o resultado” (ob. e loc. citados).

Também a jurisprudência tem considerado, pelo menos maioritariamente, que a violência exercida sobre as coisas só releva, para qualificar o esbulho como violento, se tiver por fim intimidar o possuidor, limitando a sua liberdade de determinação (cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos desta Relação de 16-10-2006, 21-12-2006, 30-10-2007 e de 08-01-2008, ambos em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. n.º 0655160, 0636585, 0725016 e 0726374; e os acórdãos da Relação de Coimbra de 03-10-2000, 30-10-2002 e 07-02-2006, todos em www.dgsi.ot/jtrc.nsf/ procs. n.º 1807/2000, 2773/02 e 4151/05; e os acórdãos da Relação de Lisboa de 12-12-1996, BMJ n.º 462/481, e de 12-07-2006, em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ proc. n.º 4931/2006-7).

Dentro desta interpretação, alguns dos acórdãos citados consideraram que não configuram casos de esbulho violento a simples colocação de um portão num caminho, que impede o acesso a esse caminho e a servidão de passagem por aí exercida (ac. desta Relação de 30-10-2007) e a colocação de obstáculos no trajecto de uma servidão de passagem a impedir o seu exercício (ac. da Relação de Coimbra de 03-10-2000).

Transpondo estes conceitos para o caso configurado nestes autos, em face do que transparece nos factos provados, não consta que tenha sido exercida qualquer forma de violência sobre alguma pessoa, nem tão pouco consta como provado que alguma pessoa, designadamente o requerente, tenha presenciado e se tenha oposto à colocação da vedação em volta da parcela de terreno esbulhada. Neste âmbito, o que consta alegado pelo requerente (arts. 11.º e 12.º do requerimento inicial) foi que tomou conhecimento da colocação da vedação pelos requeridos dois dias depois, através de um vizinho, e que, então, recorreu à PSP local “para restabelecer a ordem e impedir a prática de actos nocivos ao património das heranças que representa”, mas a PSP recusou-se a intervir por exorbitar a sua competência. Estes factos foram julgados não provados. Mas, mesmo admitindo que as ocorrências se tenham passado desse modo, não deixam de revelar que a intervenção do requerente junto da PSP já ocorreu depois da vedação estar concluída e, portanto, depois de consumado o esbulho. De modo que, quando o requerente se refere a “restabelecer a ordem e impedir a prática de actos nocivos ao património das heranças que representa”, só pode querer reportar-se à sua pretensão de que fosse retirada a vedação, e não que fosse impedida a colocação da vedação.

Acresce que o agravante veio dizer agora, nas alegações deste agravo, que os requeridos, para além de terem vedado a parcela de terreno esbulhada, terão também realizado “uma escritura de justificação notarial do pretenso direito de propriedade dos requeridos sobre o tracto (de terreno) vedado”. Facto que não tinha sido alegado no requerimento inicial. Ora, este facto novo, se é verdade que, por um lado, a confirmar-se que a parcela de terreno vedada pertence à herança representada pelo requerente, indicia que os requeridos agiram com a intenção de se apropriarem ilicitamente dessa parcela de terreno e de a subtraírem da titularidade do respectivo dono, por outro lado, não estando ainda definitivamente comprovado a quem pertence a titularidade da dita parcela de terreno visto que, neste procedimento, os requeridos ainda não foram ouvidos e, portanto, falta o contraditório quanto aos factos alegados pelo requerente e quanto às provas por este apresentadas ― a realização da referida escritura de justificação notarial também faz admitir que os requeridos se arrogam titulares da propriedade da referida parcela de terreno e terão demonstrado perante o notário, através de testemunhas, que eram eles, e mais ninguém, quem, nos últimos 15-20 anos, detinha a posse efectiva da dita parcela de terreno.

Numa situação como esta, em que ambas as partes reivindicam para si a propriedade da coisa dita esbulhada, a restituição provisória da posse só deverá ser decretada quando for evidente, através das provas, que o requerente tinha a posse superior a um ano (art. 1278.º, n.º 2, do Código Civil) ou era o que tinha a melhor posse, segundo a definição dada pelo n.º 3 do art. 1278.º do Código Civil), e foi dela esbulhado violentamente pelos requeridos. Como salienta o acórdão desta Relação de 16-10-2006, acima citado, a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, caracterizando-se pela diminuição das garantias de defesa do requerido, que não é chamado a defender-se e a contraditar os factos e as provas do requerente previamente à decisão, e pela desnecessidade da existência de qualquer prejuízo do requerente, só deve ser permitida nos casos em que a violência, mesmo quando apenas directamente incidente sobre coisas, atinja a pessoa do desapossado. Quando tal não ocorre, como sucede neste acaso, a restituição provisória da posse não deve ser decretada.

III

Deste modo, nega-se provimento ao agravo.

Custas pelo agravante (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


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Relação do Porto, 26-02-2008
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues