Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0622437
Nº Convencional: JTRP00040196
Relator: MARQUES DE CASTILHO
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
SOCIEDADE IRREGULAR
Nº do Documento: RP200703270622437
Data do Acordão: 03/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 244 - FLS 155.
Área Temática: .
Sumário: É da competência do Tribunal comum a acção em que se pede a declaração de nulidade de uma sociedade irregular.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B………. e mulher,
C……….,
intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, contra
D………., viúva, e
E………. e marido F……….,
todos já melhor identificados com os sinais dos autos, pedindo que estes sejam condenados a reconhecer a existência e manutenção da sociedade comercial por quotas, sob a forma irregular, constituída entre os AA. e os RR., sob a firma "G………." de "D………. e outros", e que seja declarada nula essa mesma sociedade constituída verbalmente entre o A. marido e os RR., determinando-se a sua entrada em liquidação.
Para tanto alegaram, em síntese, que tendo falecido em 19 de Novembro de 1980 B………., no estado de casado com a 1ª Ré, pai da 2ª Ré mulher e do A - marido correu inventário obrigatório no qual os bens da herança foram adjudicados entre eles, segundo as quotas legais, ficando 4/6 para o cônjuge meeira, e 1/6 para cada um dos filhos, o A. e a 2ª R. mulher, ficando cada um, em regime de compropriedade, de uma quota do referido estabelecimento comercial: ou seja 4/6 da Ré e 1/6 para cada filho.

Que este estabelecimento e os mais bens do património do casal passaram a ser geridos pela mãe e filhos, obrigando-se como pessoa jurídica autónoma com contas bancárias abertas em nome de "G1………." e nas relações comerciais com terceiros, no tipo de sociedade por quotas, sem celebrarem escritura pública de constituição de sociedade, nem procederam ao seu registo na Conservatória do Registo Comercial.
Acontece que entretanto os AA. se desentenderam com os RR., razão porque intentam a presente acção para terminar com tal comunhão conforme ao pedido atrás exarado.
Os RR. contestaram por excepção e por impugnação, invocando expressamente a excepção de incompetência material do Tribunal onde foi proposta a acção - Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia – considerando que antes deveria correr termos nas Varas Cíveis do Porto, bem como a ineptidão da petição inicial, ilegitimidade dos Autores para pedido de liquidação da sociedade e abuso de direito .
Referem que os AA. basearam a competência do Tribunal do Comércio no disposto no art. 89° nº 1, al. b) da LOFTJ., o que não é aplicável ao caso dos autos.
Para eles "uma sociedade irregular só pode dissolver-se mediante uma sentença que constate a sua existência como irregular, e não como nula, por vício formal, dada a inexistência da sua celebração através de escritura pública, o que não deixa de ser uma patente contradição como supra se refere".
Finalizaram a pedir a procedência das excepções invocadas, a improcedência da acção e a condenação dos AA. como litigantes de má fé.
Houve réplica por parte dos AA. para resposta às excepções deduzidas e ao pedido de condenação como litigantes de má fé, mantendo o pedido do articulado inicial.
No despacho saneador foi declarado ser o Tribunal competente em razão da nacionalidade e conheceu da excepção dilatória da incompetência em razão da matéria, que julgou procedente e, em consequência, declarou o tribunal incompetente para conhecer da acção, absolvendo os RR. da instância, nos termos do disposto no n.°1 do art. 105° do Código Processo Civil, como serão todas as outras disposições legais infra citadas de que se não faça menção especial - v. fls. 147 a 153.
Não se conformaram os AA. com este saneador sentença pelo que dele interpuseram recurso que foi recebido como de agravo, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo perante o despacho proferido de fls. 172 e 174.

Nas alegações oportunamente apresentadas os Agravantes formularam as seguintes conclusões que passamos a reproduzir
A) O Mmº Juiz "a quo", concluiu na douta Sentença que, “no caso sub judice, compulsando a causa de pedir da presente acção compaginada com os pedidos formulados na mesma constata-se que a competência material para a sua apreciação pertence às Varas Cíveis do Porto ".
B) E que "Por sua vez, a incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que implica o indeferimento liminar da P. I. ou a absolvição do Réu da instância". Declarando pela incompetência do Tribunal em razão da matéria, e em consequência a absolvição dos RR. da instância, nos termos do disposto no n.°1, do art. 105° do C.P.C.
C) Os Recorrentes discordam por completo de tal entendimento, na medida que entendem que o pedido formulado na P. I. se encontra no âmbito da competência Especializada do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, prevista mo art. 89° n.° 1 alínea b) da LOFTJ.
D) Isto porque, tal como foi configurado a P. I. o Recorrente marido e os Recorridos, entraram com uma quota que lhes competia por partilha num estabelecimento comercial, com vista à obtenção de lucros, afectando a gerência de todos, contrataram em nome deste património autónomo, organizaram contabilidade, colectaram-se como sociedade irregular, apresentando anualmente contas.
E) Mais alegaram que adoptaram o tipo de sociedade comercial por quotas e não outorgaram escritura pública para a sua constituição.
F) Em suma, ficou alegado que os Recorrentes e Recorridos puseram em comum bens e serviços para a exploração lucrativa de uma actividade económica - art. 980° do C. Civil.
G) Esgotando-se o seu escopo social da dita sociedade, na exploração de um estabelecimento comercial de restauração denominado "G……….".
H) Não restam dúvidas que tal como fica configurado na P.I. estamos perante uma sociedade irregular na medida em que de acordo com o art. 7° n° 1 do Código das Sociedades Comerciais, as sociedades por quotas têm de ser obrigatoriamente constituídas por escritura pública, determinando a sua falta a nulidade do contrato social nos termos dos art. 36° n° 1, 41° n° 1, 52° n° 1 do C.S.C.
I) Os Recorrentes pediram que o Tribunal declarasse a existência e manutenção da sociedade comercial nos termos explanados na causa de pedir, declarasse a sua nulidade - do seu contrato social - e determinasse a sua entrada em liquidação.
J) Em causa está assim se estes pedidos se encontram no âmbito da matéria da competência do Tribunal Especializado de Comércio de Vila Nova de Gaia, uma vez que entendem os Recorrentes, que o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia é competente quer pela sua especialização quer pela sua localização geográfica, para apreciação do pedido formulado na P.l.
K) Na verdade a competência dos Tribunais de Comércio prende-se com questões relacionadas com a vida e actividades das sociedades comerciais, e das sociedades civis sob a forma comercial, não podendo deixar de ser esse o quadro hermenêutico - sistemático e teleológico - que deve orientar o intérprete na determinação do sentido e alcance que o legislador quis atribuir à referida alínea b) do n° 1 do art. 89° da LOFTJ, - neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/02/2002 in C.J. Tomo 1 de 2002, pág. 68 e seguintes.
L) Se a competência material atribuída ao Tribunal de Competência Especializada de Comércio limita-se às acções às acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade, tendo em conta o argumento expendido na douta sentença, terá para tal, o Tribunal de reconhecer a existência do mesmo contrato, isto é o mesmo que dizer, reconhecer a existência da sociedade, para o poder considerar nulo por falta de formalidade ad substanciam.
M) Nunca um Tribunal de competência Cível poderia apreciar tal matéria face ao quadro legislativo vigente.
Finalizam no sentido de que foram violados os normativos que citam, devendo ser elaborado despacho saneador que determine o prosseguimento dos autos com a elaboração da matéria assente e base instrutória.
Os Agravados apresentaram contra-alegações a pugnar para que seja negada procedência ao agravo e mantida a decisão recorrida.
O Mmº Juiz, nos termos do art. 744° proferiu despacho a manter a o seu saneador-sentença e a ordenar a remessa dos autos a esta Relação.
Foi mantida a espécie e efeito do recurso e colhidos os vistos dos Ex.mºs Juízes Adjuntos pelo que cumpre, agora, apreciar e decidir.

THEMA DECIDENDUM
A delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso, art. 684 nº3 e 690 nº1 e 3.
A questão que vem posta no presente recurso está circunscrita à excepção da incompetência material do tribunal onde foi proposta a acção - o Tribunal de Competência Especializada de Comercio de Vila Nova de Gaia - tendo decidido o Mmº Juiz desse tribunal que não era o competente para dela conhecer e decidir, mas sim às Varas Cíveis desta cidade do Porto.

DOS FACTOS E DO DIREITO
No âmbito dos tribunais judiciais a Lei n° 3/99, de 3 de Janeiro - Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), rectificada pela Declaração n° 7/99, da Assembleia da República, de 4/2/99 - estabelece o critério de distinção dos tribunais em razão da matéria, distinguindo os tribunais de competência genérica e os tribunais de competência especializada.
Os tribunais de competência especializada têm a sua competência estabelecida de forma positiva, através da indicação tipificada das questões que lhe são cometidas.
Por outro lado os tribunais de competência genérica a sua competência é fixada por exclusão ou negativamente, competindo-lhes julgar os processos relativos às causas não atribuídas a outros tribunais - art. 77° e 78° da citada Lei.
Aos tribunais de comércio, como tribunais de competência especializada, são atribuídas as matérias enumeradas no art. 89° dessa Lei e os Agravantes integram-na na al. b) do n.° 1 desse preceito.
É de aceitação geral na Jurisprudência e na Doutrina que a competência do Tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o Autor, ou seja, nos termos em que foi proposta a acção. [1]

Os AA., ora agravantes, pretendem através desta acção que os RR, ora agravados, sejam condenados a reconhecer a existência e manutenção da sociedade comercial por quotas, sob a forma irregular, constituída entre AA e RR sob a firma “G………." de D………. e outros", e declarada nula essa mesma sociedade verbalmente constituída entre A. marido e RR, determinando-se a sua entrada em liquidação.
Ora, o que resulta do seu articulado inicial é que perante a morte do pai, os seus herdeiros, o A. marido, sua irmã e mãe, pretenderam continuar a actividade comercial de restauração, que já exerciam com o falecido, acordando para isso na adjudicação de todos os bens do "de cujus", e não só do estabelecimento, aos herdeiros na proporção das suas quotas hereditárias.
Prosseguiram com tal actividade durante cerca de 21 anos, até que o A. pretendeu pôr cobro a tal comunhão, de exploração familiar.
Nunca houve constituição de qualquer forma societária, nem registo na Conservatória do Registo Comercial.
Os herdeiros nunca configuraram qualquer forma de pessoa colectiva, com identidade própria e autónoma para gerirem o "negócio" dos pais.
O que aconteceu foi que tendo falecido o pai, a viúva e os dois filhos continuaram a explorar o restaurante, como antes acontecia.
Conforme a partilha efectuada no inventário, passaram a ser comproprietários de todo o património do "de cujus", nada tendo a ver com relações de natureza comercial - cfr. arts. 1403° e 1407°, n° 1 do Código Civil.
A questão dos autos não pode ser integrada na al. b) do art. 89° acima referido porque não pode ser declarada a inexistência de sociedade que nunca existiu, pois que nunca houve sociedade alguma, nem cumpre declarar a "nulidade e anulação do contrato de sociedade" nunca querido nem elaborado, mesmo verbalmente pelos herdeiros.
Nos termos do art. 2° do Código Comercial, "serão considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código, e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar."
Ora dos factos alinhados pelos AA. na P.I. não se vislumbram efeitos de natureza comercial, nem é pessoa comercial.

"Quando se recorre à via judicial para pôr termo a uma sociedade comercial irregular é contra o(s) outro(s) sócio(s) que deve ser intentada a respectiva acção, pois são estes as partes legítimas para a acção, já que os interesses em litígio são individuais e pessoais e não da sociedade " - ac. RP, de 6/10/97, CJ T. IV, pág 210.
Embora o caso dos autos não consista em questão de legitimidade das partes, mas de determinação de competência material do tribunal, para atingir o efeito nela pretendido deve ser intentada em tribunal comum e não no de comércio, apesar de ser invocada uma sociedade, mesmo que irregular.
Também na acção dos autos o que está em causa são os interesses individuais e pessoais da mãe e da irmã respectivamente e do Autor.
Não nos compete, porém, apreciar o aspecto jurídico da causa, a ter lugar somente após a fixação da matéria de facto.
O que está em causa nesta fase respeita unicamente à competência material do tribunal para conhecer da causa, se o tribunal de comércio, se o tribunal comum tanto mais que, ao autor caberá mencionar os factos e elaborar pedido conforme o que pretenda, ou seja, a causa de pedir e o pedido.
Como elaborou a presente acção, nos termos em foi proposta, como atrás referimos, para aferir da competência do tribunal, temos de concluir como concluiu o Mmº Juiz na decisão recorrida, o tribunal para conhecer da presente acção são as Varas Cíveis do Porto.
Na verdade os AA. alegam que constituíram uma sociedade e pretendem que o Tribunal o declare e os demais são uma mera decorrência daquele pedindo ulteriormente que seja declarada nula essa mesma sociedade bem como a sua entrada em liquidação.
Note-se que os próprios Autores reconhecem e alegam que não nem houve qualquer contrato de sociedade, com observância ou não da forma legalmente prescrita no seu pedido em parte alguma dele solicitam ao Tribunal o reconhecimento da inexistência do contrato de sociedade comercial, consequentemente nulo por inobservância legal e igualmente não pedem que o Tribunal declare ou reconheça a nulidade do contrato de sociedade comercial por virtude de não ter sido reduzido a escrito e ser apenas verbal consensual.
De facto a inexistência ou a nulidade do contrato de sociedade comercial não gera a nulidade da sociedade que é o que se nos afigura e transparece pedido.

Como é apodictico uma sociedade e um contrato de sociedade encerram situações bem distintas quer em termos práticos quer jurídicos, sendo certo que o peticionado extravasa a nosso ver salvo o devido respeito por contrario entendimento o âmbito de competência material do Tribunal de Comercio uma vez que conforme legalmente preceituado a mesma limita-se às acções de declaração de inexistência, de nulidade e anulação do contrato de sociedade e não às acções de declaração de existência de uma sociedade e/ou de nulidade da sociedade e mais limita-se aos contratos relativos a sociedades comerciais.
Assim e procurando inteligir e coordenar a causa de pedir invocada e o pedido da presente acção para além de outras questões juridico-processuais que possa envolver v.g. entre outras ineptidão da petição, que aliás foram objecto igualmente de invocação, que não em sede do presente recurso pelo que consequentemente dele se mostram afastadas considera-se que a mesma tal como se evidencia configurada pelos Autores não caberá no âmbito de competência do Tribunal de Competência Especializada de Comercio de Vila Nova de Gaia na conformidade do entendimento sufragado pela decisão proferida.
Improcedem, por conseguinte, a conclusão C) e segs. das doutas alegações de recurso dos Agravantes, não merecendo a douta sentença recorrida qualquer censura, antes tendo feito perfeita interpretação e aplicação da lei ao caso em apreço.

DELIBERAÇÃO
Nestes termos, em face do que vem de ser exposto acorda-se em negar provimento ao agravo e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pelos Agravantes.

Porto, 27 de Março de 2007
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes
Emídio José da Costa

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[1] Vide neste sentido Ac STJ, de 20/05/98, BMJ 477-389.