Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0655519
Nº Convencional: JTRP00039905
Relator: ABÍLIO COSTA
Descritores: PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DOS JUÍZES
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
ARROLAMENTO
OPOSIÇÃO
Nº do Documento: RP200612180655519
Data do Acordão: 12/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 284 - FLS 21.
Área Temática: .
Sumário: I - Não é violado o princípio da plenitude da assistência dos juízes se um magistrado preside à produção de prova e decide um procedimento cautelar (de arrolamento) e um outro preside à prova e decide da oposição deduzida.
II - Aquele princípio deve ser observado, sob pena de violação, em cada momento de produção de prova a que se segue decisão.
III - A decisão proferida no fim da primeira fase de produção de prova é, ou pode ser, apenas provisória, já que visou evitar que a audiência do requerido pusesse em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
IV - O Juiz que preside à segunda fase de produção de prova acaba por assistir a todos os actos de instrução nos quais se vai basear para proferir a decisão – decisão final da providência – tanto mais por ter acesso à prova inicialmente produzida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B………. requereu, em 7-3-06, nos Juízos Cíveis de Porto, providência cautelar de arrolamento contra C……… .
Alega terem sido casados entre si, casamento que foi dissolvido por divórcio em 8-9-05.
Quanto à partilha dos bens comuns do casal, a dos imóveis, foi efectuada por escritura pública realizada em 22-11-05, e quanto aos móveis, foi elaborada a lista cuja cópia consta de fls 22 a 28 do volume apenso.
Assim, naquela lista, à frente da identificação de cada móvel que lhe ficou a pertencer foi aposta a palavra “B1……….”, e à frente de cada móvel que ficou a pertencer à requerida foi aposta a palavra “C1……….”.
Móveis há, daquela lista, à frente dos quais foi aposta a palavra “não está”, querendo com isso dizer-se que não foram encontrados. Todavia, teve agora conhecimento de que se encontram, pelo menos alguns, na posse da requerida, afigurando-se-nos ser alegado também, não sendo o requerimento inicial claro a tal respeito, que foram encontrados ainda outros móveis, não constantes daquela listam, mas também comuns, na posse da requerida.
Requer, por isso, o arrolamento dos bens móveis que descreve no art.10º do requerimento inicial.
Inquiridas as testemunhas indicadas, sem audição da requerida, foi proferida a decisão cuja cópia consta de fls 188 a 190 do volume apenso, na qual foi determinado o arrolamento daqueles bens.
Ouvida, então, a requerida, veio deduzir oposição.
Alegou ter sido celebrado entre eles um contrato-promessa de partilha, o qual tem anexa uma relação dos bens comuns do casal- fls 203 a 214 do volume apenso; dessa relação faz parte a lista que o requerente juntou; para além daqueles bens não há outros a partilhar; com a expressão “não está” constante daquela lista quiseram significar, não que tais bens não foram encontrados, mas que já não existiam.
Produzida a prova, foi aquela oposição julgada improcedente.
Inconformada, a requerida interpôs recurso.
Conclui assim:
-a sentença recorrida apenas refere genericamente que analisando os meios de prova afigura-se não revestirem estes (os da requerida) maior consistência de molde a neutralizar os factos alegados pelo requerente e que, de forma perfunctória, é certo, presidiram ao decretamento da providência, o que viola a exigência legal de fundamentação crítica dos elementos de facto decisivos para formar a convicção do julgador, violando-se o disposto no art.653º, nº2, do CPC;
-o que influi na decisão dada ao pleito, pelo que constitui nulidade- art.201º, nºs 1 e 2, do CPC;
-assim não se entendendo, sempre deverá considerar-se que, face aos elementos probatórios existentes, deveria ter sido diversa a decisão dos mesmos;
-recorrente e recorrido, após terem dissolvido o seu casamento, outorgaram contrato-promessa de partilha onde declararam serem seus bens comuns os constantes da relação de bens ali anexa, elementos de facto constantes do documento, que o recorrido reconheceu e o tribunal não considerou;
-caso o tivesse feito impunha-se uma decisão diferente;
-o documento particular, se estiver reconhecido ou não for impugnada a sua veracidade, faz prova plena que o seu autor fez as declarações que neste lhe são atribuídas- art.s 376º do C.Civil e 712º; nº1, al. b), do CPC;
-deve, assim, considerar-se provada a matéria alegada na oposição;
-foi violado o princípio da plenitude da assistência dos juízes, pois esta providência foi apreciada por dois juízes diferentes, pelo que a decisão é nula- art.201º do CPC.
Não houve contra-alegações.
*
*
São os seguintes os factos considerados indiciariamente provados:
1º-Em 8-9-05 A. e R. dissolveram o seu casamento por decisão proferida em processo de divórcio por mútuo consentimento;
2º-Posteriormente, por escritura de 22-11-05, foi realizada a partilha dos bens imóveis comuns;
3º-Os bens móveis, consistentes em mobiliário, objectos de adorno, decorativos e de outras finalidades, foram identificados numa listagem acompanhada de fotografias relacionadas a cada item para o efeito de sustentar a partilha de facto desses bens;
4º-Esta lista refere-se, essencialmente, a bens que estavam na casa que foi morada de família do casal dissolvido, na ………., no Porto, a qual foi atribuída ao requerente, com a maior parte do seu recheio;
5º-A parte dos móveis descritos no doc. 3 que coube ao requerente estava identificada na lista com a designação à frente de “B1………” e a parte que coube à requerida, com a designação “C1……….”;
6º-Também na lista consta à frente de muitas descrições a nota “não está”, querendo tal significar que a peça ou peças aí referidas não tinham sido encontradas pela então possuidora da generalidade dos bens, a requerida, que ficou a viver na casa de morada de família onde aqueles estavam após a saída do requerente e o início da separação de facto:
7º-O requerente teve conhecimento de que muitas dessas peças haviam sido retiradas pela requerida da casa sita na ………. para evitar a sua partilha;
8º-Tais peças são as descritas em 10º do requerimento inicial e encontram-se na casa sita na Rua ………., …, ………. 2º-A, no Porto, onde habita a requerida, ou na loja de venda de artigos de decoração e de arte designada por “D……….”, sita na ………., fracção L, Loja ., nºs …., …., …., ………. .
*
*
Questões a decidir:
-violação do princípio da plenitude da assistência dos juízes;
-insuficiência da fundamentação da decisão de facto;
-alteração da decisão de facto.
*
*
A audiência de julgamento realizada sem audição da requerida foi presidida por um juiz, e a audiência realizada na sequência da dedução de oposição, após o decretamento da providência, foi presidida por outro juiz.
Entende, por isso, a recorrente que foi violado o princípio da plenitude da assistência dos juízes, com o que foi cometida uma nulidade.
Sobre isto importa dizer, antes de mais, o seguinte.
A ter sido cometida tal nulidade, a mesma vem prevista no art.201º, nº1, do CPC, pois tratar-se-á de uma irregularidade que pode influir no exame e decisão da causa - ver MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 335.
Pelo que tinha de ser invocada pelo interessado - art.203º, nº1, do CPC.
E como a recorrente estava presente quando foi cometida a alegada nulidade - no decurso da audiência - devia ter sido arguida até a audiência terminar - art.205º, nº1, primeira parte, do CPC.
Como tal não aconteceu, é extemporânea a sua arguição.
De qualquer modo, entendemos não ter sido cometida a invocada nulidade.
Vejámos.
No julgamento das providências cautelares vigora, como se sabe, o princípio geral do contraditório - art.s 3º e 385º, nº1, do CPC. Pelo que, em regra, ao requerimento inicial segue-se a oposição havendo, depois, lugar à audiência final, nos termos do disposto no art.386º do CPC.
Quando assim aconteça, a decisão de facto terá de ser proferida por quem assistiu a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência final.
Excepcionalmente, porém, “quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência”- art.385º, nº1, segunda parte, do CPC - a mesma terá lugar sem audição do requerido, sendo os depoimentos prestados sempre gravados - art.386º, nº4, do CPC.
E quando tal acontece, é lícito ao requerido, na sequência da notificação prevista no nº6 do art.385º: “b) deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos art.s 386º e 387º”. Acrescenta o nº2 que, “no caso a que se refere a alínea b) do número anterior, o juiz decidirá da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada, cabendo recurso desta decisão, que constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida”.
Ou seja, os actos de instrução e discussão que, em princípio, deviam ser realizados numa audiência só, passam a ser realizados em duas.
Ora, tratando-se de duas audiências distintas, não se coloca o problema da aplicação do princípio da plenitude da assistência dos juízes.
Pode, todavia, entender-se que tudo se deve passar, antes, como se de uma única audiência se tratasse e, então, quer os actos realizados na primeira audiência, quer os realizados na segunda, deviam ser presididos pelo mesmo juiz.
Parece-nos, todavia, e mesmo para quem entenda daquele modo, que não é necessariamente assim.
É certo que a providência requerida é objecto, como não podia deixar de ser, de um único julgamento, de uma única decisão final- art.388º, nº2, parte final, do CPC.
Mas no percurso para lá chegar, quando a audição do requerido puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência, ou quando tal estiver estipulado no processamento da providência cautelar especificada, como é o caso - art.423º do CPC – e houver oposição, há dois momentos inteiramente distintos e autónomos, como vamos ver.
Num primeiro momento, que pode ser o único, caso não venha a ser deduzida oposição, produzem-se as provas apresentadas pelo requerente, sendo os depoimentos prestados reduzidos a escrito, seguindo-se a respectiva decisão.
Notificado o requerido e havendo oposição, o que pressupõe o decretamento da providência, segue-se um segundo momento em que se vai proceder à audição de testemunhas e à produção de outros meios de prova apresentados pelo requerido.
Como escreve Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, III, 283, e referindo-se a este segundo momento: “sem prejuízo de o tribunal, se o julgar conveniente, recorrer aos depoimentos registados aquando da realização da primeira diligência, a fim de melhor ponderar a decisão e valorar os meios de prova produzidos, a segunda fase de produção de prova deve ficar limitada à audição das testemunhas ou à apreciação de outros meios de prova exclusivamente apresentados pelo oponente”.
Ou seja, a um primeiro momento de produção de prova segue-se uma decisão. E havendo, depois, oposição, há lugar a outro momento de produção de prova, a que se segue outra decisão, que tem em conta a prova produzida neste segundo momento, podendo o tribunal, caso o julgue conveniente, socorrer-se dos depoimentos registados – que, por essa razão, são sempre gravados - aquando do primeiro momento de produção de prova.
Mas se assim é, e porque a cada momento de produção de prova se segue uma decisão, parece que nada obsta a que cada uma daquelas fases seja presidida por um juiz diferente. Dentro de cada fase de produção de prova é que tem de ser respeitado o princípio da plenitude da assistência dos juízes. O juiz que profere a segunda decisão tem em conta a prova produzida na segunda fase. E caso sinta necessidade de valorar também os meios de prova produzidos na primeira fase, aos quais pode não ter presidido, socorre-se, então, dos depoimentos naquela altura gravados.
LEBRE DE FREITAS in CPC Anotado, 2º, 44, sem falar expressamente desta questão, admite que a oposição possa visar apenas instar as testemunhas inquiridas na primeira fase, após conhecimento da gravação, sem pretender alegar novos factos ou produzir novos elementos de prova.
Concordámos com este entendimento, o que vem reforçar a posição que defendemos.
Na verdade, e apesar do disposto no art.388º, nº2, do CPC, parece-nos que na segunda fase de produção de prova, para além da audição das testemunhas e da apreciação de outros meios de prova apresentados pelo oponente, este tem ainda a faculdade de instar as testemunhas indicadas pelo requerente e já ouvidas, cujo depoimento se encontra gravado. Faculdade que lhe é concedida pelo disposto no art.517º do CPC - princípio da audiência contraditória.
O que significa que o juiz, nesta segunda fase, tem ao seu dispor, fica na posse de todos os elementos de prova produzidos e necessários para proferir a decisão. Mesmo que não tenha tido intervenção na primeira fase.
O princípio da plenitude da assistência dos juízes vem consagrado no art.654º do CPC. Assim, nos termos do seu nº1, “só podem intervir na decisão da matéria de facto os juízes que tenham assistido a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência final”.
As razões são evidentes. Como escreve LEBRE DE FREITAS in CPC Anotado, 2º, 633, em anotação àquele artigo, “o princípio da plenitude da assistência dos juízes é um corolário dos princípios da oralidade e da livre apreciação da prova…: para a formação da livre convicção do julgador, este terá de ser o mesmo ao longo de todos os actos de instrução e discussão da causa realizados em audiência”. Sem se assistir a todos os actos de instrução e discussão, pura e simplesmente não é possível formar-se uma convicção e, em consequência, julgar.
Ora, o juiz que preside à segunda fase de produção de prova, nos moldes que acima referimos, acaba por assistir a todos os actos de instrução nos quais se vai basear para proferir a decisão. Decisão final da providência. Porque a decisão proferida no fim da primeira fase de produção de prova é, ou pode ser, apenas provisória, já que visou evitar que a audiência do requerido pusesse em risco sério o fim ou a eficácia da providência.
E embora não seja exactamente isto que resulta do disposto no art.388º, nº2, do CPC, assiste razão a LEBRE DE FREITAS quando refere, a propósito daquele preceito legal, que seria mais correcto “dizer que a decisão de manutenção completa a decisão mantida, enquanto a de revogação se lhe substitui e a de redução comunga nas duas qualidades”- ob. cit., 2º, 45.
Em conclusão, quer se entenda tratar-se de duas audiências distintas, como nos parece, quer de dois momentos distintos e autónomos de produção de prova, a cada um dos quais se segue uma decisão, da mesma audiência – na qual se procede ao julgamento da providência requerida - não foi violado o princípio da plenitude da assistência dos juízes.
*
*
Passando à segunda questão.
Escreveu-se na decisão recorrida: “…analisando os meios de prova oportunamente apresentados pelo requerente com aqueles outros apresentados pela requerida afigura-se-nos não revestirem estes maior consistência de molde a neutralizar os factos alegados pelo requerente, e que de forma perfunctória, é certo, presidiram ao decretamento da providência, já que as testemunhas ora ouvidas indicadas pela requerida prestaram depoimentos que na sua essencialidade se terão de considerar indirectos e pouco consistentes”.
Entende a recorrente que, perante tal fundamentação, foi violado o disposto no art.653º, nº2, do CPC.
Dispõe aquele preceito legal, na sua segunda parte, que: “a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais o que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”. Por outro lado dispõe o art.712º, nº5, do CPC que: “se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade”.
Ou seja, estamos perante uma alegada insuficiência de fundamentação da decisão de facto. Que poderia, nos termos do disposto no art.712º, nº5, acima transcrito, justificar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância para os fins ali indicados. Mas, para tal, devia ter sido requerida a fundamentação pelo tribunal de 1ª instância. O que não aconteceu. Pelo que não pode este tribunal, oficiosamente, ordená-lo.
*
*
Por último, entende a recorrente não terem sido tidos em consideração os documentos que juntou, ou seja, o contrato-promessa de partilha e relação de bens anexa – fls 203 a 214 do volume apenso. E que, atenta a respectiva força probatória, insusceptível de ser destruída por prova testemunhal, tal implica uma decisão de facto diversa.
É certo que, nos termos do disposto no art.376º, nº1, do C.Civil, o documento particular cuja autoria seja reconhecida, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor. E o requerente reconheceu a autoria, juntamente com a requerida, daqueles documentos.
Mas é precisamente invocando o teor de um daqueles documentos – o anexo A – e ainda o facto de, relativamente aos objectos em falta, a que corresponde a nota “não está” constante daquele, ter tido agora conhecimento de que muitos deles haviam sido retiradas pela requerida da casa sita na ………., para evitar a sua partilha, que o requerente intentou esta providência.
Pelo que a força probatória daqueles documentos não foi posta em causa pelos depoimentos das testemunhas. Antes, foi complementando a prova documental, com a prova testemunhal, que o tribunal fundamentou a decisão de facto - ver fundamentação da decisão de facto constante de fls 188 a 190 do volume apenso. De facto, se havia objectos que “não estavam” e agora apareceram, assiste ao recorrido o direito a requerer o seu arrolamento para posterior partilha.
*
*
Acorda-se, em face do exposto, em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 18 de Dezembro de 2006
Abílio Sá Gonçalves Costa
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho