Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0630790
Nº Convencional: JTRP00038969
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: DÍVIDA DE CÔNJUGES
DÍVIDA COMERCIAL
PROVAS
Nº do Documento: RP200603160630790
Data do Acordão: 03/16/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: Com vista a demonstrar a comunicabilidade da dívida a ambos os cônjuges (RR.) e que, consequentemente, sobre eles pendia a responsabilidade pelo seu pagamento, à A. cumpria tão só alegar e provar, como provou, que a dívida accionada tinha sido contraída pelo R. marido no exercício do comércio, enquanto que à Ré mulher – cônjuge do devedor – cumpria alegar e provar que, apesar de o ter sido no exercício do comércio, aquela dívida jamais fora contraída em proveito do casal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO.

1. “B….., Ldª”, instaurou, no Tribunal da Comarca de Vila Nova de Famalicão, contra C….. e mulher, D…., a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, pedindo a condenação dos RR. a pagarem-lhe a quantia de 11.045,13 Euros, acrescida de juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento, computando os vencidos em 2.570,64 Euros.
Alega para tanto, em síntese, que, em 21/09/2000, emprestou ao R. a quantia de 14.963,94 Euros para cerca de oito dias e que, volvidos cerca de quatro anos, o R. lhe deve ainda o montante de 11.045,13 Euros, a que acrescem juros de mora, empréstimo que o R., que se dedica a actividades de exploração e captação de água e actividades conexas, utilizou na sua actividade profissional e em despesas de cariz pessoal e familiar já que, na data do empréstimo, era casado com a R. em regime da comunhão de adquiridos, tendo, com o montante mutuado, feito face aos encargos normais da sua vida familiar.

2. Regularmente citados, e com a cominação de que a falta de oposição importaria a confissão dos factos articulados pela A., os RR. não contestaram.

3. Foi proferida sentença que, depois de afirmar a validade e regularidade da instância e de considerar confessados os factos articulados pela A., absolveu a R. mulher do pedido e condenou o R. marido a pagar à A. a quantia por esta peticionada.
Para absolver a R. mulher do pedido, escreve-se na sentença recorrida o seguinte:
“A ré mulher não é parte no contrato do qual emerge a obrigação cujo cumprimento é exigido pela autora por via da acção.
O referido contrato, de harmonia com o princípio da relatividade, é, no tocante à ré «res inter alios acta», isto e ineficaz – cfr artº 406º, nº2, do Código Civil.
A ré não é, pois, sujeito passivo do direito de crédito da titularidade da autora e, por isso, deve ser absolvida do pedido.
É certo que a autora alega que os réus são casados e que a divida foi contraída pelo réu em benefício e proveito comum do casal.
Porém, não juntou ao processo assento de casamento do réu.
Assim sendo, e uma vez que a revelia do réu é, quanto a esse facto, inoperante – cfr. Art. 485º, al. d), do Código de Processo Civil -, impõe-se concluir pela sua não demonstração”.

4. Inconformada com a sentença, dela apelou a A. que, nas pertinentes alegações apresenta as seguintes conclusões:
1ª: A total revelia da R. mulher não poderá, do ponto de vista jurídico substantivo e processual e, sobretudo, do ponto de vista dos princípios que norteiam todo o ordenamento jurídico, implicar diminuição das garantias e direitos da A.;
2ª: Num normal desenvolvimento da lide, à A. assistia o direito de fazer prova dos factos alegados em juízo;
3ª: Uma vez que, no caso vertente, se registava a excepção prevista na alínea d) do artigo 485º do CPC, impunha-se que a A. fosse notificada da revelia dos RR. para que, querendo, deduzisse as respectivas alegações e ou requerimentos de prova;
4ª: Este imperativo deriva do princípio da economia processual que fica assim claramente violado;
5ª: No caso em apreço, a prolação da sentença absolutória da R. mulher, na sequência da revelia da mesma, sem que à A. tenha sido dada a oportunidade de produzir alegações e requerer o que entendesse conveniente em termos probatórios, significou uma inadmissível diminuição das suas garantias processuais e gerou nulidade processual que influiu directamente no exame da causa;
6ª: Nulidade esta que desde já se argui, ex vi do disposto nos artigos 201º e 205º, ambos do CPC;
7ª: Há errada aplicação do disposto nos artigos 484º e 485º do CPC, na medida em que ambos os preceitos estabelecem uma cominação ao R. revel, mas nunca uma diminuição das garantias processuais e substantivas do A.;
8ª: A aplicação destes preceitos, inibiu a A. de lançar mão do disposto no artigo 523º, nº 2, do CPC, que teria aplicação no caso sub judice;
9ª: Na verdade, o sentido da expressão “até ao encerramento da discussão em 1ª instância”, ínsita no artigo 523º, nº 2, do CPC, no caso da revelia do R., terá de se entender como até ao termo do prazo para alegações ao abrigo do disposto no artigo 484º, também do CPC;
10ª: Isto é, o A. é notificado da revelia dos RR. e, querendo, fará uso da faculdade ínsita no artº 523º, nº 2, do CPC, até ao terminus do prazo para as respectivas alegações;
11ª: Com a devida vénia por diferente entendimento, foi esta a conclusão perfilhada pelo Acórdão do STJ de 29/10/1998, publicado in http:/www.dgsi.pt/jstj.nsf/, que aqui se cita;
12ª: Ora, como já se disse, esta faculdade foi negada à A. nos presentes autos, pelo que também se encontra violado o disposto no artigo 523º, nº 2, do CPC.
Pelo exposto, impõe-se a revogação da douta sentença ora recorrida e a sua substituição por outra que admita a junção aos autos da certidão de casamento junta a fls. e, subsequentemente, condene na íntegra a R. mulher no pedido.

5. Não foram oferecidas contra-alegações.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. Na sentença recorrida foram considerados provados os factos alegados na petição inicial e que são os que supra se referiram no presente relatório.

2. Tendo em consideração que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que nelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil), e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões a decidir são as de saber se foi cometida nulidade pelo Tribunal recorrido ao não notificar a A. da revelia dos RR. para que, querendo, deduzisse as respectivas alegações e ou requerimentos de prova para, e se a acção deve proceder também quanto à R. mulher.

Tendo presente a fundamentação constante da sentença recorrida para absolver a R. mulher do pedido, referida em 3. supra, afigura-se-nos que assiste razão à apelante.
Na verdade, tendo o Tribunal recorrido entendido que a revelia do R. era inoperante face ao disposto no artº 485º, al. d) do CPCivil, que estipula que não se aplica o disposto no artigo anterior (preceito que estabelece, no nº 1, que se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor), quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito, em virtude de a A. não ter junto certidão de casamento do R., podia, e devia, ordenar a sua notificação para juntar esse documento e, não o tendo feito, incorreu na arguida nulidade.
É que, nos termos do disposto no artº 265º, nº 3, do CPCivil, “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Este preceito legal consagra um poder-dever do juiz que se, para uns é entendido como o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa e para outros como um poder discricionário, tendente a realizar uma função meramente supletiva e residual do Tribunal em sede de produção de provas, como um poder autónomo de indagação oficiosa, pode, também, entender-se que a disposição legal em apreço consagra um poder vinculado, susceptível de recurso, quando se refere “aos factos de que lhe é lícito conhecer”, o que seguramente quer significar que o juiz pode ordenar diligências probatórias para o efeito de se apurar a verdade, mas só dos factos articulados pelas partes. E, caso se entenda, como entendemos, que o juiz, ao não ordenar a diligência, viola o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa, tem de ser arguida a nulidade de tal omissão – cfr. Ac. STJ de 11/01/2001, sumariado no CPC Anotado, Abílio Neto, 18ª ediçã, pág. 353.

Ora, a A., que arguiu a nulidade, propôs a acção contra os RR. (marido e mulher) invocando ter mutuado ao R. marido a quantia peticionada, quantia essa que, segundo alegou, foi por ele utilizada na sua actividade profissional de exploração e captação de água e actividades conexas, e que na data do empréstimo era casado com a R. no regime da comunhão de adquiridos, tendo ambos, com o produto do empréstimo, feito face aos encargos normais da sua vida familiar, uma vez que o dinheiro foi depositado na conta particular dos RR. – artºs 19º a 21º da petição.
Assim, se o Tribunal recorrido tinha o entendimento de que a revelia dos RR. era inoperante – citado artº 485º, al. d) do CPC – no que se refere ao casamento e regime de bens, deveria, ao abrigo do poder de direcção e do inquisitório consagrado no referido artº 265º, nº 3, ter notificado a A. para juntar certidão de casamento dos RR. e, não o tendo feito, incorreu em nulidade ao omitir uma formalidade prescrita com influência na decisão da causa e que foi arguida tempestivamente – artºs 201º, nº 1, 203º e 205º, todos do CPC.

De qualquer modo, como defendido nos Acs. do STJ DE 1993/07/07 CJSTJ, Tomo II, pág. 178, de 1994/02/22, CJSTJ, Tomo I, pág. 120, e de 6/5/98, Proc. 98A326, sumariado em www.dgsi.pt., só se torna necessária a prova do casamento por documento autêntico nas acções de estado e não naquelas em que o casamento não representa propriamente o "thema decidendum", como são aquelas em que, no domínio da responsabilidade contratual, se discute tão-simplesmente o "proveito comum do casal", mormente se os Réus não deduziram contestação ao pedido.
Assim, no caso em apreço, não tendo os RR., que foram regularmente citados, deduzido oposição, havia que considerar confessados os factos por ele articulados, nomeadamente o casamento e respectivo regime de bens, não se aplicando o disposto no artº 485º, al. d) do CPCivil.

Ainda assim, a apelante fez posteriormente prova do casamento dos RR. já que juntou, com o requerimento de interposição do recurso, o assento de nascimento do R., ao qual se encontra averbado o seu casamento com a R., ocorrido em 10/08/1983, junção essa admissível face ao disposto no artº 706º, nº 1, do CPCivil, que prevê a possibilidade de junção, com as alegações, de documentos cuja junção apenas se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
E, face ao entendimento acima seguido sobre a prova do casamento nas acções que não respeitem ao estado das pessoas, só pela fundamentação da sentença se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não poderia razoavelmente contar antes da decisão ser proferida.

E, provado o casamento dos RR., a acção não pode deixar de proceder também no que se refere à R. mulher, atenta a alegação da A. de que mutuou ao R. marido a quantia peticionada, quantia essa que foi por ele utilizada na sua actividade profissional de exploração e captação de água e actividades conexas, tendo ambos, com o produto do empréstimo, feito face aos encargos normais da sua vida familiar, uma vez que o dinheiro foi depositado na conta particular de ambos os RR.
A questão prende-se com a comunicabilidade da dívida dos autos à R. mulher e passa necessariamente pela análise do comando contido na al. d) do nº 1 do artº 1691º do CCivil, importando designadamente saber qual o seu âmbito de aplicação e se a situação concreta dos autos nele se engloba, sendo imputável a ambos os cônjuges (RR.) o pagamento da dívida accionada ou apenas ao cônjuge – R. marido – que a contraiu.

Dispõe o artº 1691º, nº 1, al. d) do CCivil que
“...
1. São da responsabilidade de ambos os cônjuges:
...
d) – As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal, ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens;
...”.

Do teor de tal preceito crê-se que outra conclusão se não poderá extrair que não seja a de que a dívida contraída por cônjuge comerciante e no exercício do seu comércio é da responsabilidade de ambos os cônjuges, a não ser que o cônjuge do devedor alegue e prove que a dívida, apesar de contraída no exercício do comércio pelo devedor, não foi contraída em proveito comum do casal.
É esse, aliás, o ensinamento dos Profs. P. Lima e A. Varela [Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed., pág. 336], quando, em anotação ao citado normativo, afirmam de forma clara que «...Por força do novo regime, à alegação e prova de que a dívida foi contraída em real conexão com a actividade comercial do devedor, feitas pelo credor, pode agora o cônjuge do devedor opor validamente que, não obstante isso, a dívida não foi realmente contraída em proveito comum do casal...».
E esse é também o entendimento do Prof. Vasco da Gama Lobo Xavier [Direito Comercial, Sumários das Lições ao 3º ano jurídico, 1977-1978, 90, 91 e 94, que refere que «... Nos regimes de comunhão de adquiridos ou de comunhão geral, as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio são da responsabilidade de ambos os cônjuges. (artº 1691º, nº 1, al. d) do Cód. Civil). E, assim, respondem por elas todos os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges (art. 1695º, nº 1). Esta responsabilidade de ambos os cônjuges não terá lugar, de acordo com o preceito primeiramente citado, se se provar que as mencionadas dívidas, embora derivadas da actividade comercial do devedor, não foram contraídas em proveito comum do casal...”, e continuando, afirma mais adiante, “... o credor da dívida contraída no exercício do comércio está especialmente protegido, na medida em que, diversamente do que aconteceria se apenas pudesse lançar mão do preceituado naquela alínea c), não tem que fazer a prova do proveito comum para responsabilizar os bens do cônjuge do devedor. É antes sobre tal cônjuge que recai o ónus de provar que a dívida não foi contraída no proveito comum do casal, a fim de beneficiar do disposto na alínea d) com vista a este caso excepcional. ...”.

Assim, com vista a demonstrar a comunicabilidade da dívida a ambos os cônjuges (RR.) e que, consequentemente, sobre eles pendia a responsabilidade pelo seu pagamento, à A. cumpria tão só alegar e provar, como provou, que a dívida accionada tinha sido contraída pelo R. marido no exercício do comércio, enquanto que à Ré mulher – cônjuge do devedor – cumpria alegar e provar que, apesar de o ter sido no exercício do comércio, aquela dívida jamais fora contraída em proveito do casal, o que esta nem sequer alegou já que não contestou.
Concluindo, temos que procede também esta questão suscitada pela apelante.

III. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juizes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, consequentemente, alterar a decisão recorrida, condenando solidariamente os RR. a pagar à A. a quantia de 13.615,77 Euros, acrescida de juros de mora vencidos desde 4 de Abril de 2005 e vincendos, à taxa legal, sobre o capital (11.045,13 Euros), até efectivo e integral pagamento.
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Custas na 1ª instância pelos RR. sendo as da apelação a suportar pela R..
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Porto, 16 de Março de 2006
António do Amaral Ferreira
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Ana Paula Fonseca Lobo