Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0635809
Nº Convencional: JTRP00039779
Relator: SALEIRO DE ABREU
Descritores: CONFISSÃO
DEPOIMENTO DE PARTE
Nº do Documento: RP200611230635809
Data do Acordão: 11/23/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 694 - FLS. 184.
Área Temática: .
Sumário: I- Quando o depoimento de parte não resulta em confissão, não deixa de poder constituir elemento probatório, a ser apreciado livremente pelo tribunal, segundo o prudente arbítrio do julgador,
II- Todavia, ainda aqui só poderá servir de elemento de prova quanto a factos desfavoráveis ao depoente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B………., viúva, instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra C………., casado, e D……….., divorciada, pedindo que os réus sejam solidariamente condenados a restituírem-lhe a quantia de 17.779,60 €, acrescida de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto, que:
- A autora emprestou verbalmente aos réus, por várias vezes e durante o ano de 1999, quantias em dinheiro que totalizaram 3.564.490 escudos;
- Os réus eram então casados um com o outro e comprometeram-se a restituir à autora tais quantias logo que solicitados para tal;
- Os réus divorciaram-se em 2002 e desentenderam-se com a autora;
- Apesar de solicitados, os réus ainda não lhe devolveram o dinheiro emprestado.

Feita a citação, só a ré contestou, tendo alegado, em síntese, que:
- Nunca a autora emprestou qualquer quantia aos réus enquanto casados, nem estes lhe solicitaram tal;
- As quantias mencionadas nos autos foram dadas ao casal;
- O réu é filho da autora e a presente acção surge como pressão do réu sobre a ré contestante, já que o réu deixou de pagar a pensão de alimentos que deve à sua filha menor e contra ele foi instaurado processo crime.
A autora replicou, reafirmando que a referida quantia foi entregue por empréstimo.

Proferido despacho saneador, seleccionada a matéria de facto tida como assente e elaborada a base instrutória, o processo seguiu a sua normal tramitação, tendo, a final, após audiência de discussão e julgamento – a que se procedeu com gravação da prova produzida - sido proferida sentença em que se julgou a acção improcedente e se absolveram os RR. do pedido.

Inconformada, a Autora apelou, tendo terminado a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
Tendo a recorrida e Ré contestante assumido ter recebido da recorrente a quantia referida nos autos (que a recorrente afirma ter-lhe sido, bem como ao recorrido não contestante, emprestada), mas alegando que tal quantia lhe fora doada pela recorrente, tal facto constitui uma excepção peremptória ao direito invocado pela recorrente;
O ónus da prova dos factos impeditivos do direito invocado pela recorrente incumbe a quem alegar esses factos, ou seja, no caso à recorrida e Ré contestante;
Quer do depoimento das testemunhas arroladas pela recorrente, quer do depoimento da única testemunha indicada pela recorrida e Ré contestante (sua irmã), não resulta minimamente indiciado que o valor entregue pela recorrente aos recorridos o fosse a título de doação;
Muito ao invés, do depoimento de todas as testemunhas resulta claramente que se tratou de um empréstimo efectuado pela recorrente aos recorridos, pelo que não fez o Mº Juiz "a quo" uma correcta interpretação da matéria de facto resultante de tais depoimentos ao dar como não provados os quesitos 2º e 3º e como provado o quesito 8° da base instrutória, que mereciam claramente resposta contrária.
Do depoimento de parte do recorrido e Réu não contestante resulta claramente que o mesmo assumiu que o dinheiro entregue pela recorrente ao casal constituído por ele e pela ex-mulher foi a título de empréstimo, o que redunda necessariamente numa declaração confessória que incide sobre factos desfavoráveis ao mesmo;
Por outro lado, todos os quesitos contendo as "explicações" da recorrida para a suposta doação daquele valor (13° a 15°) foram dados como não provados, sendo que a prova de tais factos, que alicerçavam a posição da recorrida, obviamente só a ela competia, o que não logrou fazer;
Do depoimento das testemunhas indicadas pela recorrente (pessoas das suas relações e conhecedoras da sua vida), e até do cotejo com a resposta positiva ao quesito 17°, resulta claramente que uma pessoa idosa, que vive de fazer limpezas em casas de particulares, não pode ser uma pessoa abastada com possibilidades de presentear os filhos com valores dos que aqui estão em questão, pelo que o Tribunal deveria ter dado como provados os quesitos 16º, 18º e 19º da base instrutória, o que, de resto, resulta até das regras do senso comum e da experiência;
Andou mal também o Mº Juiz “a quo” ao dar como provado o quesito 12º da base instrutória (sem se perceber alicerçado em quê, já que não há ninguém que diga algo que suporte tal conclusão - nem mesmo a testemunha indicada pela Ré contestante), uma vez que tal processo crime (o que poderá ser verificado nos Juízos Criminais do Tribunal Judicial de Santo Tirso) findou, ainda antes do julgamento dos presentes autos, por transacção, tendo a recorrida desistido da respectiva queixa, sendo certo que tal matéria constitui também uma das justificações dadas pela Ré contestante para a presente acção, pelo que tal quesito deveria ter merecido resposta negativa;
Não há nos autos qualquer prova produzida que suporte a versão da recorrida;
Deve, assim, a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que, com base na prova produzida em audiência de julgamento - mormente o depoimento de todas as testemunhas e o depoimento de parte do co-Réu não contestante - dê como provado que o dinheiro entregue pela recorrente aos recorridos o foi a título de empréstimo, com a consequente obrigação dos mesmos a restituírem tal valor à recorrente.

Contra-alegou a Ré, pugnando pela confirmação da sentença.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II.
O tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade:
No ano de 1999 a autora entregou aos réus, então casados um com o outro, quantias monetárias que perfizeram o montante 3.564.490 escudos, equivalente a 17.779,60 euros.
As quantias referidas na alínea anterior destinaram-se a ajudar os réus na construção de uma moradia a eles pertencente sita no lugar da ……, freguesia e cidade de Santo Tirso.
Os réus não devolveram à autora as quantias referidas em 1).
Da verba total de 3.564.490 escudos referida em 1), a parcela de 3.064.490 esc. foi entregue em 25/3/1999, por meio de transferência bancária de uma conta titulada pela autora para conta titulada pela ré D…….. e a parcela de 500.000 esc., em numerário, foi entregue em data posterior, mas ainda no ano de 1999.
Por sentença de 1/2/2002 foi decretado o divórcio entre os réus.
As quantias mencionadas em 4) foram doadas pela autora ao casal composto pelos dois réus.
A autora é sogra da ré mulher e mãe do co-réu.
Desde Dezembro de 2003 que o réu C……… deixou de pagar a pensão de alimentos devida à sua filha menor.
Tendo o réu pendente um processo crime, já com acusação formulada e julgamento marcado.
Em França, onde está emigrada, a autora desempenha trabalhos de limpeza.

III.
A Autora põe em causa a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.
Defende que se deverão dar como provados os quesitos 2º, 3º, 16º, 18º e 19º e como não provados os quesitos 8° e 12º da base instrutória.

Como é sabido, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo o juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art. 655º, nº 1 do CPC), norteando-se por padrões de probabilidade forte, quase nunca de “certeza absoluta”. É o chamado princípio da liberdade de julgamento.
A apreciação da prova, ao nível de julgamento de facto, há-se fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e imponha aos outros, mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal.
E como se escreveu no Ac. desta Relação, de 13.12.99, Rec. 1/99-2ª Secção: "a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, antes deve a sua actividade judicatória ter um sentido crítico e atender, na valoração dos depoimentos, a uma multiplicidade de factores, muitos dos quais só apreensíveis com o imediatismo das provas, pelo que a reanálise das provas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção criada pelo juiz da 1ª instância, traduzida nos factos que deu como provados e não provados, e determinar a alteração desses factos, em casos pontuais e excepcionais, quando se verifique que os factos tidos por provados e assentes não têm qualquer fundamento face aos elementos de prova trazidos ao processo ou quando estejam profundamente desadequados face às provas produzidas".
Ou seja: o tribunal de recurso apenas procura saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que o registo da prova e demais elementos existentes nos autos pode exibir perante si (vd. Ac. da RC, de 3.10.2000, CJ, 2000, pg. 27).

No caso em apreço, insurge-se a apelante contra a valoração que foi dada ao depoimento do Réu, defendendo que tal depoimento conduz precisamente a um resultado oposto ao que mereceu do magistrado julgador.
Vejamos:

Dir-se-á, antes de mais, que a declaração “confessória” do Réu, no sentido de que se tratou de um empréstimo feito pela Autora, sua mãe, e não de uma doação, não assume qualquer relevância jurídica.
Há que notar, desde logo, que, nos termos do art. 485º, al. a) do CPC, por falta de contestação do réu não se consideram confessados os factos articulados pela autora, relativamente aos factos impugnados pela ré contestante.
Por outro lado, pedindo a autora a declaração de nulidade de um mútuo, torna-se necessária a intervenção de todos os intervenientes no negócio (vd. Ac. da RC, de 17.4.90, BMJ, 396º- 447). Estamos, pois, perante um litisconsórcio necessário passivo (art. 28º, nº 2 do CPC). A natureza jurídica da relação jurídica em causa exige a intervenção de ambos os réus, para que a decisão a proferir possa produzir, com carácter definitivo, o seu efeito útil normal.
Ora, a confissão feita pelo litisconsorte é ineficaz, se o litisconsórcio for necessário – art. 353º, nº 2 do CC. Seria impensável e incompreensível que se desse como provada a existência do empréstimo com base na confissão de um dos mutuantes, quando o outro pretenso mutuante o nega.
Assim sendo, a “confissão” feita pelo réu é, para o caso, de todo irrelevante, ao contrário do pretendido pela Autora.

Mas, contrariamente ao que entendeu o M.mo Juiz do tribunal recorrido, nele também não pode fundamentar-se a decisão de ter-se como realizada a alegada doação.

O depoimento de parte é o meio processual posto ao serviço do direito probatório substantivo para provocar a confissão judicial (art. 356º, nº 2 do CC). E “a confissão constitui prova, não a favor de quem a emite, mas a favor da parte contrária; portanto recai necessariamente sobre factos desfavoráveis ao confitente e favoráveis ao seu adversário” (Ac. do STJ, de 27.1.2004, CJ/STJ, 2004, I, 49, que veio a ser confirmado pelo Ac. do Trib. Constitucional, de 13.7.2004, in DR, II Série, de 2.11.2004).
Ora, a matéria vertida no quesito 8º da base instrutória e a resposta que lhe foi dada, resposta esta essencialmente com base no depoimento do Réu, é constituída por factos favoráveis aos RR. (doação das quantias entregues pela A.), e desfavoráveis à Autora.
É verdade que, quando o depoimento de parte não resulta em confissão, não deixa de poder constituir elemento probatório, a ser apreciado livremente pelo tribunal, segundo o prudente arbítrio do julgador, nos termos dos art.s 361º do CC e 655º do CPC (M. Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 249; Ac.s do STJ, de 13.3.1997 e de 21.3.1993, www.dgsi.pt, proc. nºs 96B386 e 083335). Todavia, ainda aqui só poderá servir de elemento de prova quanto a factos desfavoráveis ao depoente. Mesmo não havendo declaração confessória, o depoimento (atentos os modos do depoente, as entrelinhas do respectivo depoimento, etc.) pode levar os juízes à convicção da realidade de um facto desfavorável à posição do depoente (M. Andrade, ob. e loc. citados; A. Varela e outros, Manual de Proceso Civil, 2ª ed., 539). O que se compreende, pois que, como se escreveu nos já citados acórdãos do STJ, de 27.1.2004 e do Trib. Constitucional, de 13.7.2004, se a parte alega facto favorável ao seu interesse, faz uma afirmação cuja veracidade tem de demonstrar, “pela razão simples de que ninguém pode, por simples acto seu, formar ou fabricar provas a seu favor”.
Temos, assim, que mesmo que o réu tivesse declarado ter existido doação (declaração que não fez), ou que das suas declarações tal se pudesse deduzir, isso de modo algum poderia servir de elemento de prova nesse sentido.

A convicção formada pelo Sr. Juiz resultou, não propriamente de uma declaração prestada pelo R., mas antes de uma sua actuação desconforme com a existência do empréstimo, que o R. referiu ter havido.
Entendemos, porém, que da circunstância de o R. “não ter desenvolvido qualquer reconhecimento da dívida à autora nas diligências de partilha anteriores e posteriores ao divórcio com a ré” e “não ter entregue à autora qualquer parte das tornas em numerário que recebeu da ré” não se poderá concluir, sem mais, “que os seus actos em tudo são compatíveis com o recebimento incondicional e definitivo das verbas, ou seja o recebimento justificado por doação”. E ainda que a sua prática não estivesse em consonância com a existência do empréstimo, tal não significaria, necessariamente, que esse negócio não tivesse existido ou que se devesse concluir pela existência da doação.

Afastada que está a relevância do depoimento do réu – em favor da tese da autora ou da versão da ré -, teremos de reconhecer que os demais elementos probatórios em nada ajudam a resolver a dúvida que se suscita sobre a questão em litígio.
Com efeito, e como bem refere o Sr. Juiz no seu despacho de fundamentação, “as testemunhas arroladas pela autora (...) só reproduzem a tese da autora tal como lhes foi dita por ela própria, autora, não tendo razão de ciência autónoma para distinguirem a entrega a título de empréstimo da entrega a título de doação”.
Atente-se, v. g., no depoimento da testemunha E……….: “Ela (autora) disse-me que emprestou ao casal uma quantia em dinheiro (...); “a D. B……….. (autora) comentou comigo (...) que tinha feito um empréstimo ao filho (...)”.
De semelhante teor são os depoimentos das testemunha F……….. (sobrinho, por afinidade, da autora): “ (a autora) comentou comigo que tinha emprestado os 3.000 contos (...)” e G………: “ (...) a D. B…….. comentou comigo algumas vezes que emprestou 3.000 contos em 99 e mais 500 contos”; “ela, a única coisa que me referiu é que emprestou”.
As testemunhas não têm, portanto, qualquer conhecimento directo dos factos e o que sabem foi-lhes transmitido pela autora.

Se os elementos de prova a favor da versão da autora são manifestamente insuficientes, também não há prova bastante que permita concluir pela tese da ré, sendo certo que o depoimento da única testemunha (sua irmã) por ela arrolada é, para o efeito, de todo inócuo.
Embora frequentes, nem sempre as ajudas dos pais aos filhos, mormente de montantes algo elevados, se traduzem em verdadeiras doações. E se até pode admitir-se como bem provável que, no caso, tivesse havido doação e não empréstimo, e que a razão de ser da presente acção apenas radique nos factos que conduziram ao divórcio entre os réus e nos que lhe sucederam (repare-se que até um processo crime foi instaurado contra o réu, por falta de pagamento de alimentos à filha menor), o certo é que a convicção de que assim terá sido tem de assentar em elementos probatórios legais e suficientemente fortes, seguros e credíveis. O que não é o caso.

Conclui-se, assim, que não há qualquer razão para alterarmos as respostas dadas aos pontos 2º, 3º, 16º, 18º e 19º da base instrutória. Como o não há quanto à resposta dada ao ponto 12º, atento o teor da certidão junta a fls. 56-62.
Todavia, e no que concerne ao ponto 8º (em que se perguntava se “as quantias mencionadas em A) foram doadas pela A., e por sua iniciativa, ao casal”), que mereceu do tribunal a quo a resposta de “provado apenas que as quantias mencionadas na resposta ao quesito 1 foram doadas pela autora ao casal composto pelos dois réus”, altera-se essa resposta, pelas razões que se deixaram apontadas, dando-se o mesmo como “não provado”.
Deste modo, consideramos como assente a factualidade acima descrita em II, com excepção da matéria constante do seu ponto 6.

IV.
Não obstante a alteração da matéria considerada provada, daí não resulta qualquer modificação na decisão final proferida: a decisão de improcedência da acção terá de manter-se.
Com efeito, se é certo que a Ré não provou ter existido doação, a verdade é que também a Autora não logrou provar que as quantias que entregou aos réus o foram por empréstimo.
Ora, sobre ela recaía o ónus da prova da existência do mútuo e da obrigação de restituição - art. 342º, nº 1 do CC (vd. Acs. do STJ, de 30.10.96 e da RP, de 17.4.97 e 6.5.93, www.dgsi.pt, procs. 96B460, 9631291 e 9210998). Não o tendo feito, necessariamente que a acção tem de improceder.

V.
Nestes termos, e sem necessidade de outras considerações, julga-se improcedente a acção, confirmando-se, embora por razão diferente, a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 23 de Novembro de 2006
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
Gonçalo Xavier Silvano