Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0735588
Nº Convencional: JTRP00041094
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
REFORMA
NOVAÇÃO
DATIO PRO SOLVENDO
Nº do Documento: RP200802140735588
Data do Acordão: 02/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO. AGRAVO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 748 - FLS. 131.
Área Temática: .
Sumário: I – A reforma de letra de câmbio consiste em, por diversas razões (simples diferimento da data do vencimento, alteração do montante, intervenção de novos subscritores ou eliminação de algum dos anteriores…), substituir uma letra antiga – letra reformada – por uma letra nova – letra de reforma –, traduzindo-se numa espécie de pagamento, porque com a letra nova se amortizou a antiga, ou na substituição de uma letra por outra de igual montante e com as mesmas assinaturas, em que tudo se passa como se o devedor pagasse efectivamente a primeira letra, obrigando-se, em seguida, novamente, a uma prestação cambiária idêntica.
II – A vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga (“animus novandi”) não se presume, antes devendo ser expressamente manifestada.
III – Na ausência desta última declaração negocial, a reforma da letra exprime uma simples "datio pro solvendo", referindo-se a letra reformada e a letra de reforma à mesma relação subjacente e à satisfação de um único interesse patrimonial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B………………., LDª, C………………., D……………….. e E………………. deduziram oposição por apenso à execução comum que lhes move F…………………, LDA.
Como fundamento, alegaram, em síntese, que a obrigação constante da letra de câmbio que serve de título executivo se encontra extinta por novação objectiva; que o aval e as assinaturas apostas no verso daquela letra de câmbio não foram realizados pelos executados D…………….. e E………………; que da letra de câmbio constante do requerimento executivo os executados nada devem à exequente ou terceiro.
Pediram ainda a condenação da exequente como litigante de má fé em multa e indemnização não inferior a € 3.500,00.
A exequente contestou, reconhecendo que o capital em dívida é de apenas € 6.000,00, reduzindo a quantia exequenda a esse montante e impugnando os restantes factos invocados pelos executados.
Pediu ainda a condenação dos executados como litigantes de má fé em multa e indemnização não inferior a € 3.500,00.
Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença que:
I - Julgou a oposição parcialmente procedente, determinando o prosseguimento da execução com a redução da quantia exequenda ao montante de € 4.800,00.
II - Condenou como litigantes de má fé:
A) Os executados, solidariamente, e enquanto representantes da executada B………………, Lda, na multa processual de 3 UCS;
B) Os executados D……………. e E………………, a título individual, cada um deles, na multa processual de 8UCS;
C) A exequente, na pessoa dos seus representantes legais, na multa processual de 3UCS;
D) Os representantes legais da executada B……………, Lda, a pagar à exequente a indemnização de € 800,00, correspondente às despesas que a má fé a obrigou a fazer, incluindo os honorários do seu mandatário;
E) Os representantes legais da exequente a pagar aos executados a indemnização de € 200,00, correspondente às despesas que a má fé a obrigou a fazer, incluindo os honorários do seu mandatário.

A exequente interpôs recurso de agravo da sua condenação como litigante de má fé, formulando as seguintes
Conclusões
1ª - A recorrente foi condenada como litigante de má fé por ter peticionado a quantia de € 6.000,00 quando a dívida era apenas de € 4.800,00.
2ª - A recorrente não discute o valor da dívida, aceitando que a mesma se situa nos € 4.800,00.
3ª - Porém, o referido valor só foi encontrado após peritagem á contabilidade da executada, requerida pela recorrente, sendo certo que esta nunca pôs em causa o resultado dessa peritagem.
4ª - Como se pode comprovar pela matéria de facto dada como provada, a descoberta daquele valor decorreu da decifração de várias operações cambiárias, nomeadamente amortização de letras e entrega de cheques para pagamento não só dessas amortizações, como de outras dívidas existentes entre as partes (conforme nºs 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º da matéria de facto provada).
5ª - Nem sequer os próprios executados sabiam, em rigor, o valor da dívida, bem como a sua forma de pagamento, tanto mais que nunca referiram no seu articulado as operações descritas no relatório pericial e que foram dadas como provadas pelo Mº Juiz a quo.
6ª - A diferença existente entre o valor efectivamente em dívida (€ 4.800,00) e o valor peticionado pela recorrente (€ 6.000,00) é pequena, não sendo aceitável o entendimento do Mº Juiz a quo de que o comportamento da recorrente possa ser considerado grosseiramente negligente.
7ª - O facto de a recorrente ignorar a falta de fundamento parcial da sua pretensão é justificado pela circunstância de como parte do pagamento da letra foi feito e pela pequena diferença entre o valor peticionado e o valor em dívida.
8ª - Como refere o STJ no seu Acórdão de 11.01.01 (P. nº 3155/00-7ª, Sumários, 47º): “A condenação por litigância de má fé pressupõe a existência de dolo ou grave negligência, não bastando uma lide temerária, ousada, ou uma conduta meramente culposa. A simples formulação de pedidos ilegítimos ou improcedentes, se não provada a intenção de defraudar o sentido da justiça, o princípio da celeridade processual ou os interesses da contraparte, mesmo quando a improcedência seja patente (o que sempre será aferido pelo critério do julgador), não é determinante da qualificação da litigância como de má fé”.
9ª - Num outro aresto de 04.06.02 (Ver. nº 4130/02-6ª: Sumários, 4/2002), refere também o STJ que “A circunstância de na sequência do julgamento de facto e de direito se terem provado factos contrários aos alegados pela recorrente, não é suficiente para a condenar como litigante de má fé”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Os executados interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes
Conclusões
1ª - O tribunal a quo considerou que da matéria de facto dada como assente é de concluir pela inexistência da novação da obrigação inicial titulada pela letra de câmbio que surge como título executivo, bem como que aquela obrigação não se encontra extinta pelo pagamento, devendo tão só o valor peticionado ser reduzido a € 4.800,00.
2ª - Do que os recorrentes discordam, pois a obrigação constante do título executivo, a letra de câmbio no valor de € 7.353,37, encontra-se extinta pela novação e/ou pagamento.
3ª - O que aconteceu foi que a recorrente B…………….., Ldª, ao reformar a letra de câmbio inicial no valor de € 7.353,37 pela letra de câmbio de € 6.000,00, tendo para o efeito realizado o pagamento da diferença/amortização e respectivos encargos bancários por meio de cheque no valor de € 1.515,77, foi como se tivesse efectivamente pagado aquela, obrigando-se em seguida novamente a outra prestação cambiária (vide pontos 1º, 2º e 3º da matéria de facto provada).
4ª - Por sua vez, a letra de câmbio de € 4.800,00 foi reformada por nova letra de câmbio no valor de € 3.800,00, com vencimento em 20.11.03 (vd. ponto 5º da matéria de facto provada).
5ª - Por último, a letra de câmbio no valor de € 3.800,00 foi substituída por outra no valor de € 19.046,92, com vencimento para 20.02.04, que inclui a totalidade do seu valor e da amortização de € 1.000,00 (vd. ponto 6ª da matéria de facto provada).
6ª - Sendo que todas estas expostas a operações de reforma, de subscrição de novas letras, em substituição das anteriores, pelos mesmos sacador/recorrida e aceitante/recorrente B……………….., Ldª, só foi possível, como se compreenderá, com o acordo de ambos.
7ª - Daí que a recorrida não pudesse utilizar e invocar a letra reformada, de valor de € 7.353,37, já que a obrigação nela constante ficou extinta pela novação objectiva.
8ª - E, extinta a obrigação constante da letra de câmbio dada à execução, ficou igualmente extinta a garantia dada pelo aval dos recorrentes C…………….., D……………… e E…………………….
9ª - Nem poderia proceder a exigência de qualquer outro valor, tomando por base o título dado à execução.
10ª - Como refere o artº 45º do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
11ª - Ora, in casu, a aludida reforma, substituição da letra de câmbio dada à execução, sucessivamente por outras letras de câmbio de valor inferior implicou não tão só a redução do valor inicial em dívida mas também a substituição da letra de câmbio inicial por outras letras de câmbio.
12ª - Letras de câmbio essas que, de igual modo, constituem título executivo.
13ª - Pelo que, ao resultar como provado que os recorrentes não são devedores da recorrida da quantia de € 7.353,37 constante da letra de câmbio dada à execução, e sendo devedores de outra quantia, de valor inferior e de algum modo titulada pela letra de câmbio, jamais o tribunal a quo poderia ter determinado o prosseguimento da execução com a redução da quantia exequenda ao montante de € 4.800,00.
14ª - Mas sim a impossibilidade do prosseguimento da presente execução por extinção do título executivo.
15ª – Devendo a decisão ser no sentido de considerar procedente a oposição à execução, por verificação das excepções invocadas.
16ª – E, consequentemente, não se verifica qualquer má fé na conduta processual dos recorrentes, que deverão ser absolvidos da condenação como litigantes de má fé, aliás, de valor excessivo.

A exequente contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos (que não foram impugnados):
Na execução comum a que a estes autos se encontram apensos, em que são exequente F………………, Lda e executados B……………, Lda, C……………., D………….. e E………………, para cobrança coerciva da quantia de € 7.353,37, acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento, é apresentado como título executivo:
- a letra 500792887022356380, da qual consta: em local e data de emissão – P. Varzim 03.03.05; na importância – € 7.353,37; no saque – 332/2003; em outras referências – Abril/2003; no vencimento – 2003.05.20; no valor – Transacção Comercial -, no seu vencimento pagará(ão) V.Exª(s) por esta única via de letra a nós ou à n/ ordem a quantia de SETE MIL TREZENTOS E CINQUENTA E TRÊS EUROS E TRINTA E SETE CÊNTIMOS; no nome e morada ou carimbo do sacado – B……………., Lda, Rua ………….., nº …., ….., …. V.N. Famalicão; no nome e morada ou carimbo do sacador – F…………., Lda, Rua ……, nº …., ….. …….; no nº de contribuinte do sacador – 500689369; no banco/localidade – Póvoa de Varzim; no nº de contribuinte do sacado – 502811226; transversalmente, do lado esquerdo, como aceite – B…………., Lda, A Gerência, seguida da assinatura correspondente aos nomes E…………….. e D…………..; no verso da letra, consta a expressão “Dou o meu aval a firma aceitante” repetida três vezes, intercaladas pelas assinaturas correspondentes aos nomes C……………., E………………., seguida de um carimbo com as expressões “F……………., Lda – A Gerência – Por mim e p. procuração”, seguido de uma assinatura ilegível. (A)
Na data do seu vencimento, a letra referida em A) foi substituída por nova letra, no montante de € 6.000,00, com vencimento em 20.07.03. (B)
A executada B………….., Lda entregou à exequente F……………., Lda um cheque no valor de € 1.515,77, para pagamento da diferença de valor entre as letras referidas em A) e B) e encargos bancários. (C)
A letra referida em B) foi substituída por nova letra de câmbio no valor de € 4.800,00, com vencimento em 20.09.03. (1º)
A letra de câmbio no valor de € 4.800,00 referida no ponto anterior foi substituída por nova letra de câmbio no valor de € 3.800,00, com vencimento em 20.11.03. (2º)
A letra de câmbio no valor de € 3.800,00 foi substituída por outra no valor de € 19.046,92, com vencimento para 20.02.04, que incluiu a totalidade do seu valor e da amortização de € 1.000,00 referente à substituição descrita no ponto anterior, sendo que esta letra não foi paga no seu vencimento. (3º)
A assinatura a que corresponde o nome D……………. que consta do verso do título dado à execução e indicado em A), foi aí aposta pelo próprio punho do executado D…………….. (4º)
A assinatura a que corresponde o nome E……………… que consta do verso do título dado à execução e indicado em A), foi aí aposta pelo próprio punho do executado E…………… .
*
III.
São questões a decidir (delimitadas pelas conclusões das alegações da agravante e dos apelantes, respectivamente - artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC):
No recurso de agravo
- Se a exequente não deve ser condenada como litigante de má fé.
No recurso de apelação
- Se, face às sucessivas reformas operadas, a letra dada à execução deixou de ser título executivo.
- Caso aquela questão improceda, se é excessivo o montante da condenação dos executados como litigantes de má fé.

Conheceremos em primeiro lugar do recurso de
A) Apelação
1. Título executivo
Está provado que a letra dada à execução, no valor de € 7.353,37, foi substituída por outra no valor de € 6.000,00, tendo os executados pagado a diferença de valor dos dois títulos.
Por seu turno, a letra de € 6.000,00 foi substituída por outra no valor de € 4.800,00 e esta foi substituída por outra no valor de € 3.800,00.
Finalmente, esta letra foi substituída por outra no valor de € 19.046,92, na qual se incluiu o valor de € 3.800,00 da letra anterior, acrescido da quantia de € 1.000,00 correspondente à amortização da letra de € 4.800,00.
Na sentença recorrida entendeu-se que resultava daquela factualidade que ainda se encontra em dívida a quantia de € 4.800,00 e ordenou-se o prosseguimento da execução por aquele montante - o que os executados põem em causa, argumentando que, devido às sucessivas reformas da letra dada à execução, esta se extinguiu enquanto título executivo, porquanto a quantia em dívida de € 4.800,00 se encontra agora titulada pela última das letras acima referidas, no valor de € 19.046,92.

A reforma de letra de câmbio consiste em substituir uma letra antiga por uma letra nova, traduzindo-se numa espécie de pagamento, porque com a letra nova se amortizou a antiga[1], ou na substituição de uma letra por outra de igual montante e com as mesmas assinaturas, em que tudo se passa como se o devedor pagasse efectivamente a primeira letra, obrigando-se em seguida novamente a uma prestação cambiária idêntica[2].
Daquelas noções resulta que o elemento fundamental da reforma é a substituição de uma letra (letra reformada) por outra (letra de reforma), o que poderá ser motivado por diversas circunstâncias como o simples diferimento da data do vencimento, alteração do montante, a intervenção de novos subscritores ou a eliminação de algum dos anteriores; o caso mais frequente é o de amortização parcial do débito, passando a constar da nova letra o montante ainda em dívida, o que poderia, porém, ser obtido através de um meio mais simples, ou seja, da menção na letra inicial do pagamento parcial (artº 39º da LULL).
O ponto que tem sido objecto de discussão e divergência é o da extinção, por novação, da letra reformada.
A novação é uma forma de extinção das obrigações e tem lugar, no aspecto objectivo, quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga (artº 857º do CC), o que pressupõe, em princípio, uma outra e diversa obrigação e não a simples alteração de algum dos elementos da obrigação existente.
Exige-se ainda, no artigo 859º do CC, que a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada. Isto significa que a vontade de extinguir a obrigação anterior (animus novandi) deve ser declarada de modo directo, inequívoco ou terminante, não se tendo mesmo considerado suficiente a formulação proposta por Vaz Serra no sentido de essa vontade ser "claramente manifestada", pelo que não basta uma declaração tácita ou presumida[3].
Ora, a reforma de letras, no caso mais vulgar de simples redução do seu montante, por amortização parcial, reconduz-se melhor ao conceito de alteração do que ao de novação e, de qualquer modo, não é suficiente o elemento objectivo de substituição de uma letra por outra, sendo ainda indispensável a declaração de vontade de extinção da primitiva obrigação cambiária, manifestada pelo modo expresso já apreciado.
Um meio directo de manifestação daquela vontade é a devolução dos títulos reformados pois, se ela não ocorrer, justifica-se mesmo a presunção de as partes se quererem manter vinculadas por esses títulos. Tal presunção tem ainda lugar, e mais vincadamente, na hipótese de esses títulos conterem assinaturas de outros obrigados cambiários, mesmo de simples garantes, não reproduzidas nas letras de reforma, por não ser normal que o seu portador queira prescindir das garantias dadas por tais assinaturas.
Também o facto de ter havido pagamento parcial de uma letra, acompanhado ou não de reforma ou de menção nela expressa, não lhe retira a força de título executivo, por não poder o portador recusar esse pagamento (cfr. o citado artº 39º da LULL), sem prejuízo de, no domínio das relações imediatas, o devedor poder livremente invocar essa amortização e de o credor a dever considerar no requerimento inicial da execução.
Conclui-se assim que a simples reforma de letra de câmbio, por substituição de uma letra por outra não implica a extinção, por novação, da primitiva obrigação cambiária, a menos que se prove a expressa ou inequívoca manifestação de vontade no sentido de se contrair uma nova obrigação em substituição da antiga, manifestação essa que não se presume.
Sem aquela declaração negocial, a reforma da letra exprime uma simples datio pro solvendo, referindo-se a letra reformada e a letra de reforma à mesma relação subjacente e à satisfação de um único interesse patrimonial.
A sentença recorrida acolheu o entendimento acima expresso, que também sufragamos, e que vem sendo dominante na jurisprudência[4].

No caso dos autos, resulta da factualidade provada que a letra dada à execução, no valor de € 7.353,37 foi sendo sucessivamente reformada, e que essas reformas implicaram a extinção da obrigação cambiária até ao montante de € 4.800,00, pelo pagamento parcial – o que as partes, aliás, não questionam.
Mas daquela factualidade não resulta qualquer manifestação de vontade inequívoca das partes no sentido de, com a emissão daquela última letra de reforma (a referida na resposta ao quesito 3º), terem querido extinguir a obrigação subjacente à letra dada à execução.
A última letra de reforma não operou assim a extinção por novação da obrigação no valor de € 4.800,00, que continua incorporada na letra primitiva dada à execução, que, por isso, mantém todos os requisitos de exequibilidade – o que não colide com a incorporação simultânea daquela obrigação na última letra de reforma.
Improcedem assim as conclusões dos executados quanto a esta questão.

2. Montante da condenação dos executados como litigantes de má fé
De acordo com o disposto no artº 456º, nº 1 do CPC, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou tiver omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Na reforma processual introduzida pelo DL 329-B/95 de 12.12 houve uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer substancial, quer instrumental, e tanto na vertente subjectiva como na objectiva.
A condenação por litigância de má fé pode agora fundar-se em negligência grave, para além da situação de dolo já anteriormente prevista[5].
A má fé a se reportam as als. a) e b) do nº 1 do artº 456º é a má fé material ou substancial, aquela que se refere à relação jurídica material[6].
A litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Antes corresponde a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objectivos muito práticos e restritos.
No essencial: não relevam todas e quaisquer violações de normas jurídicas, mas apenas as actuações tipificadas nas diversas alíneas do citado artº 456º, nº 2 do CPC; não é requerido dano: a conduta é punida em si, independentemente do resultado; exige-se dolo ou grave negligência, e não culpa lato sensu, em moldes civis; as consequências são apenas multa e, nalguns casos, indemnização calculada em moldes especiais (artºs 456º, nº 1 e 457º do CPC).
Além disso - contrariando as regras gerais da responsabilidade civil e do próprio Direito Civil, em geral - funciona oficiosamente (citado artº 456º, nº 1) e quebra os nexos de organicidade, segundo o qual a pessoa colectiva é responsável pelos actos dos seus representantes (artº 165º e artº 6º, nº 5 do CSC), punindo o representante da pessoa colectiva – artº 458º do CPC[7].
Tem-se entendido que a conclusão no sentido da litigância de má fé não se pode extrair, mecanicamente, da simples alegação de factos pessoais que não se provaram ou da negação de factos pessoais que vieram a provar-se[8].
Como se lê no Ac. do STJ de 11.04.00[9], a questão da má fé material não pode ser vista com a linearidade que por vezes lhe é atribuída, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil e tem foros de garantia constitucional. Por isso, terá de haver uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos.
Nos termos do citado artº 457º, nº 1 do CPC, o litigante de má-fé é condenado em multa e em indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
O montante da multa situa-se entre 2 e 100 UC’s (artº 102º, al. a) do CCJ).
Na determinação do montante a aplicar há que atender ao grau de má-fé revelado através da prática dos factos (ou seja, à intensidade do dolo ou da negligência) e à situação económica da parte[10].
A multa tem o carácter de pena. Desempenha, portanto, uma função repressiva e uma função preventiva: destina-se a punir e a prevenir a prática de actos idênticos no futuro. Não pode, por isso, ser meramente simbólica.
A indemnização à parte contrária no caso de litigância de má-fé pode consistir no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos ou no reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má-fé (artº 457º, nº 1, als. a) e b) do CPC).
Cabe ao juiz optar pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, conforme dispõe a al. b) do mesmo normativo.
A modalidade prevista na al. a) deve aplicar-se aos casos em que o dolo não seja particularmente grave. As despesas ali referidas devem circunscrever-se ao âmbito processual em que a má-fé operou[11].

No caso, os executados não questionam a sua condenação como litigantes de má fé, reputando apenas de excessivo o montante da condenação.
O montante da multa de 3 UC’s aplicada aos executados, solidariamente, enquanto representantes da executada B………………… Ldª está muito próximo do limite mínimo previsto no artº 102º do CCJ, pelo que dificilmente se pode considerar excessivo para sancionar a conduta dos executados ao invocaram o pagamento integral da quantia exequenda, quando, a final, se veio a provar que ainda está em dívida o montante de € 4.800,00.
Quanto aos executados D…………. e E………………., ambos negaram ter aposto as suas assinaturas no verso da letra dada à execução, sob a expressão “Dou o meu aval à firma aceitante”, e provou-se que as assinaturas foram ali apostas pelo próprio punho dos executados.
Os executados negaram assim um facto pessoal, que se veio a provar de forma positiva, pelo que a sua conduta não pode deixar de se considerar dolosa, assumindo aqui o dolo um grau de intensidade elevada.
Mostra-se assim adequado o montante de € 8 UC’s aplicado aos executados D……………. e E………………...
Quanto à indemnização de € 800,00 a pagar à exequente, reputamo-la justa e equilibrada, já que o Mº Juiz a quo não só optou pela modalidade prevista na al. a) do nº 1 do artº 457º, habitualmente aplicável aos casos menos graves, como já dissemos, como ainda reduziu a indemnização a 80% do montante pedido a título de honorários do mandatário da exequente e a 20% do montante das despesas peticionadas.
Improcedem assim também as conclusões dos executados nesta parte.

B) Agravo
Insurge-se a exequente contra a sua condenação como litigante de má fé, alegando que o facto de a quantia em dívida pelos executados ser apenas de € 4.800,00 e não de € 6.000,00 (valor este já inferior ao da letra dada à execução, mas que a exequente aceitou na contestação) resultou tão só da perícia realizada à contabilidade da executada B………….., Ldª, requerida pela própria exequente.
Damos aqui como reproduzido tudo o que dissemos no recurso de apelação acerca do instituto da litigância de má fé.

No caso em apreço, a exequente negou que os executados tivessem amortizado a diferença entre o valor das letras referidas em B) e na resposta ao quesito 1º (€ 6.000,00 e € 4.800,00, respectivamente) e que aquela amortização tivesse sido considerada na emissão da última letra de reforma (a referida na resposta ao quesito 3º).
Ora, tais factos – que efectivamente se vieram a provar, fundamentalmente, com base no relatório pericial (cfr. a motivação da decisão da matéria de facto a fls. 203) – são factos de que os legais representantes da exequente não podiam deixar de ter conhecimento.
Os peritos chegaram à conclusão de que a diferença de € 1.200,00 entre o valor das duas letras foi paga por um cheque no valor de € 15.000,00, endossado pela executada B…………….., Ldª à exequente, destinado a pagar também outras dívidas, tendo a exequente emitido o respectivo recibo (cfr. fls. 111).
A cópia desse recibo está junta a fls. 123 e nele vem discriminada a quantia de € 1.200,00 referente a amortização. Também a cópia do referido cheque de € 15.000,00 está junta a fls. 122.
Ora, tais documentos não podem deixar de estar espelhados na contabilidade da exequente, que é uma sociedade comercial. Impunha-se, por isso, que, agindo com a diligência devida, os legais representantes da exequente se inteirassem dos factos ali documentados antes de instaurarem a execução e antes de reafirmarem a sua posição na contestação à oposição.
A condenação da exequente como litigante de má fé não resultou assim simplesmente da negação de um facto pessoal que se provou, mas de toda a sobredita conduta que não pode deixar de se classificar como negligente e grave.
O facto de a má fé não operar em relação a todo o âmbito da acção tem relevância apenas para a determinação do montante da multa – que, no caso, a exequente não impugnou.
Resta assim negar provimento ao agravo, confirmando-se também nesta parte a sentença recorrida.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e em julgar improcedente a apelação, e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida.
- Cada uma das partes suportará as custas do respectivo recurso.
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Porto, 14 de Fevereiro de 2008
___________
[1]Gonçalves Dias, Da Letra e da Livrança, I, 401.
[2] Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, II, 67.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7ª ed., 237.
[4] Cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 07.10.03 e desta Relação de 26.04.01, 02.06.05 e 08.02.07, citados na sentença recorrida, e ainda os Acs. do STJ de 13.02.96 e 26.03.96 (que seguimos de perto até aqui), todos em www.dgsi.pt.
[5] Acs. do STJ de 25.11.98 e desta Relação de 15.03.01 e de 11.10.01, www.dgsi.pt.
[6] Alberto dos Reis, CPC Anotado, II, 3ª ed., 264.
[7]Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Culpa “In Agendo”, 28 e 34.
[8]Acs. do STJ de 20.10.98 e desta Relação de 24.10.02, www.dgsi.pt.
[9] www.dgsi.pt.
[10] Alberto dos Reis, obra citada, pág. 269.
[11]Alberto dos Reis, obra citada, pág. 278.