Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
593/04.3TTGMR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDES ISIDORO
Descritores: ASSOCIAÇÃO DESPORTIVA
CÂMARA MUNICIPAL
SUBSÍDIO
PENHORA
Nº do Documento: RP20120116593/04.3TTGMR-B.P1
Data do Acordão: 01/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: IMPROCEDENTE.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: São suscetíveis de penhora os subsídios pecuniário atribuídos por uma Câmara Municipal a uma associação/clube do respetivo município, enquanto receita mensal, fungível, que irá a integrar o património desta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Registo 563
Proc. n. º 593/04.3TTGMR-B.P1
Proveniência: TTGMR (2º. Jº.)

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. B..., por apenso, deduziu em 2010.01.21 oposição à penhora concretizada na ação executiva intentada pelo exequente, C…, com fundamento na inadmissibilidade da penhora do crédito que detinha sobre o município ….

Para tanto, e em síntese, invoca ser uma pessoa coletiva sem fins lucrativos que prossegue o interesse público na vertente do desporto e que afeta aquele subsídio à realização de um fim de utilidade pública.

Notificado para o efeito, respondeu o exequente/requerido nos termos constantes de fls. 38 e seguintes: sustentando, em suma, não ter sido alegada nem demonstrada a qualidade de pessoa coletiva de utilidade pública da oponente e não ter sido demonstrada a impossibilidade de prosseguir o alegado fim sem aquela comparticipação financeira e, a final, a improcedência da oposição à penhora.

Frustrada a tentativa de conciliação empreendida, realizou-se a audiência de discussão e julgamento – com gravação da prova -, e fixada sem reclamação, da matéria de facto considerada provada. Por fim, foi proferida sentença, que julgando totalmente improcedente a oposição, em consequência, manteve “…os termos da instância executiva principal relativamente a essa penhora…”.

Inconformada, a executada interpôs recurso de apelação, formulando para o efeito e a finalizar a respetiva alegação as seguintes conclusões:
1. A recorrente é uma associação desportiva, pessoa coletiva sem fins lucrativos. Tal facto constitui um facto notório, nos termos do artigo 514º 1 do C.P.C. e que não carece sequer de alegação ou prova.
2. O fim da recorrente é precisamente a prossecução do interesse público na vertente do incentivo e promoção do desporto, propiciando meios à sua prática. Trata-se de uma associação de caráter desportivo, que promove e incentiva a prática de desporto.
3. Em seis de abril de 2009 foi celebrado um contrato-programa entre a recorrente e o município …, nos termos e conforme o Decreto-lei n.º 432/91 de 6 de novembro.
4. O contrato celebrado entre a recorrente e o município …, possuía por objeto “a promoção, o desenvolvimento e o exercício da atividade desportiva” e “a promoção de acesso em igualdade de condições dos jovens dos escalões de formação, á atividade desportiva, na modalidade de futebol, abrangendo 257 participantes”
5. Pelo dito contrato, o município obrigava-se a atribuir um apoio mensal à recorrente no montante de 2.730,00€ por mês, durante dez meses “destinado a minorar os custos de manutenção, funcionamento e encargos com as camadas jovens nas modalidades constantes no artigo 1.º” (8 artigo 2.º). Previa-se ainda que constitui obrigação da recorrente a “criação e dinamização de projetos de ocupação de tempos livres, dirigidos e crianças, jovens e idosos do município, (…)” resultava ainda como obrigação para a recorrente “(…) manter no período de vigência deste contrato, a modalidade desportiva, garantindo, no mínimo, o número de jovens referido no artigo primeiro)”
6. O município … deliberou atribuir um apoio à recorrente com o fim exclusivo desta o destinar à prossecução de um interesse público.
7. A recorrente só poderia afetar o subsídio penhorado na “promoção do acesso em igualdade de condições, dos jovens dos escalões de formação à atividade desportiva (…)”.
8. O apoio que o município atribuiu à recorrente encontra-se exclusivamente afeto à realização de um fim de interesse público – de utilidade pública – e que é a promoção e o incentivo à prática do desporto pelas camadas jovens da população do concelho de …, a criação e dinamização de projetos de ocupação dos tempos livres dirigidos a crianças, jovens e idosos residentes no município …, através da disponibilização de instalações técnicas e equipamentos.
9. Quer a natureza jurídica da recorrente, quer a natureza jurídica do município … são factos notórios e que não carecem sequer de alegação ou prova, de acordo com os artigos 514 e 823 n.º 1 do C.P.C.
10. A recorrente não poderia afetar o apoio (subsídio que recebia e que foi penhorado) a fim diverso do previsto no contrato-programa.
11. O recorrido não fez prova que a recorrente afetava o subsídio em sentido diverso daquele que foi fixado em sede de contrato.
12. Estão isentos de penhora, os bens de pessoas coletivas de utilidade pública, que se encontram especialmente afetos à realização de fins de utilidade pública, de acordo com o artigo 823 n.º 1 do C.P.C.
13. A factualidade que consta dos autos e dos documentos juntos ao mesmo, resulta inequívoco que os montantes penhorados provêm de bens com as apontadas características e que são eles mesmos, aliás, especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública.
14. A recorrente destina os montantes que recebe e que se encontram penhorados à promoção e desenvolvimento e exercício da atividade desportiva, conforme previsto no contrato-programa citado.
15. O crédito penhorado é impenhorável.
16. A sentença recorrida viola os artigos 514º e 823º do C.P.C.

O exequente/apelado apresentou contra-alegações, pugnando pelo seu não provimento.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Factos
É a seguinte a factualidade dada como provada a quo:

1 - No âmbito da ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho intentada por C… contra B…, foi homologada transação segundo a qual, este se obrigou a pagar àquele a quantia de €3.700, em 24 prestações mensais, iguais e sucessivas, com início a 20/1/2005, a título de compensação global pela cessação do contrato de trabalho e em caso de falta de pagamento de uma das prestações acordadas, que se venceriam as demais em dívida acrescidas de € 4.100 a título de cláusula penal - cfr. fl. 79 e 80 da mesma e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2 - Por apenso a essa ação, foi intentada a ação executiva através da qual aquele autor/exequente veio exigir daquela ré/executada o pagamento coercivo da quantia total de € 6.440,43 a título de prestações vencidas e não pagas acrescidas da cláusula penal – cfr. fls. 2 a 5 do apenso A e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3 - No âmbito desta ação executiva, no dia 3/11/2009, foi efetuada a penhora do subsídio mensal de € 2.730 atribuído pela Câmara Municipal … ao B…, até perfazer o montante de € 7.084,46 – cfr. fls. 158 e 159 do apenso A e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

4 - Tendo a Câmara Municipal …, no dia 20/11/2009, efetuado o primeiro depósito no valor de € 2.730 – cfr. fls. 160 do apenso A e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

5 - A Câmara Municipal … deliberou por unanimidade, em 26/3/2009, atribuir subsídio a 13 Associações/Clubes através da celebração de Contratos de Programa de Desenvolvimento Desportivo contemplando 1.733 atletas dos escalões de formação distribuídos por 17 modalidades – cfr. fls. 25 a 27 deste apenso B e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

6 - O Município … e a executada/oponente celebraram entre si um contrato-programa de desenvolvimento desportivo, para vigorar entre 1/1/2009 e 31/12/2009, destinado à promoção, desenvolvimento e exercício da atividade desportiva, na modalidade de futebol, de 257 jovens dos escalões de formação e para além daquele ceder a esta, gratuitamente e durante 160 horas semanais, um complexo desportivo, também se obrigou a atribuir um apoio mensal de € 2.730 durante 10 meses destinado a minorar os custos de manutenção, financiamento e encargos com as camadas jovens daquela modalidade. Por seu lado, a executada/oponente obrigou-se a, durante o período de vigência do contrato, garantir aquele número mínimo de jovens naquela modalidade e a publicitar aquele município – cfr. fls. 28 a 30 deste apenso B e cujo teor aqui se dá por reproduzido.

III. O Direito
Consabidamente o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente com ressalva das questões de conhecimento oficioso, que no caso em apreço se não vislumbram (arts 684º/3 e 690º/3 do CPCivil[1] - na versão anterior ao DL 303/07, de 24.08 -, a aqui aplicável, ex vi arts 1º/2, a) e 87º do CPT).
No caso em apreço, compulsadas as conclusões da recorrente, constata-se que são duas as questões por ela suscitadas e de que cumpre conhecer:
- Saber se são factos notórios quer a natureza jurídica da recorrente quer do município …;
- Saber se está isento de penhora o subsídio ou apoio financeiro concedido pelo Município … á oponente.

III.1 Da existência de factos notórios.
Pretexta a recorrente que quer a natureza a sua natureza jurídica, quer a natureza jurídica do município … são factos notórios e que não carecem sequer de alegação ou prova, de acordo com os artigos 514º e 823º, nº1 do C.P.C.
Dispõe, com efeito, o nº1 do art. 514º do CPCivil, «não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.»
Por sua vez, sob epigrafe – Bens relativamente impenhoráveis - o art. 823º/1, do mesmo diploma adjetivo, dispõe que estão isentos de penhora os bens «de pessoas coletivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública.»
Ora, quanto à natureza da Câmara Municipal … ninguém duvida da sua natureza jurídica, rectius a notoriedade de se tratar de pessoa coletiva pública. De resto, essa natureza vem já afirmada na própria decisão impugnada quando consigna “a Câmara Municipal …, que lhe atribui tal subsídio (essa sim notoriamente nos termos do art. 514º, nº1 do C.P.C.), uma pessoa coletiva publica.”

Só que, face à letra e ao elemento teleológico ou racional da lei, não é propriamente a natureza jurídica da CM… que está em causa, mas sim a da executada/oponente ‘B…’.
E ressalvando sempre o devido respeito por diverso entendimento, quanto à natureza jurídica desta não podemos dizer que se trata de facto notório.
Na verdade, assumem esta qualidade os factos que “são do conhecimento geral”. E como ensina o Professor Alberto dos Reis[2], conhecimento geral “é o conhecimento por parte da grande maioria dos cidadãos do Pais, ou antes, por parte da massa de portugueses que possam considerar-se regularmente informados, isto é, acessíveis aos meios normais de comunicação.”
Ora, embora admitindo que a “instituição B…” é uma das associações/clubes do concelho de … que assumem a promoção e desenvolvimento da atividade desportiva, na modalidade de futebol jovem dos escalões de formação, é nossa convicção que a maioria dos portugueses com acesso aos meios normais de comunicação ignora qual a sua natureza jurídica, o que obsta a que, sem a respetiva alegação e prova, o tribunal possa dar como provado que se trata de pessoa coletiva de utilidade pública, por considerar como facto notório.
E como tal improcede o recurso nesta parte.

III.2 Saber se está isento da penhora o subsídio ou apoio financeiro concedido à oponente.
Como vimos, dispõe o art. 823º/1 do CPC que “Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução com garantia real os bens do Estado e das restantes pessoas coletivas públicas (…) ou de pessoas coletivas de utilidade pública que se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública.”[3]
Decorre deste preceito, mormente da sua segunda parte, como exigência da - impenhorabilidade relativa de bens - a verificação cumulativa de dois requisitos, a saber: i) que os bens em causa pertençam a pessoa coletiva de utilidade pública; e ii) que tais bens estejam especialmente afetados à realização desses fins.
Só que como bem salienta a decisão impugnada a recorrente/oponente não logrou demonstrar a verificação, em concreto, daqueles dois pressupostos, sendo certo que tal ónus lhe competia, atento o disposto no arts 342º/1 do CCivil e 516º do CPCivil.
Ou seja, desde logo, a recorrente não demonstrou tratar-se de pessoa coletiva de utilidade pública, pese embora a “meritória” promoção, desenvolvimento e exercício da atividade desportiva, na modalidade de futebol, de 257 jovens dos escalões de formação, o que só por si, convenhamos, não é suficiente para qualificar a recorrente/oponente como ente jurídico de utilidade pública.
De resto, a tal qualificação não basta (reiteramo-lo, de acordo com a decisão recorrida), a circunstância da Câmara Municipal …, que lhe atribui tal subsídio, ser – essa sim notoriamente, art. 514º do CPC -, uma pessoa coletiva; nem isso faz de tal subsídio um bem do domínio público atento o elenco do art. 84º da CRP.
Mas ainda que tivesse ficado demonstrado aquele primeiro requisito – e não ficou - a exequente/oponente não provou que esse bem penhorado (subsídio ou apoio mensal monetário) estivesse, especialmente, afetado à realização de fim ou fins de utilidade pública.
Aliás, como diz Amâncio Ferreira[4] a primeira parte do preceito (quando se refere a bens do Estado e demais pessoas coletivas publicas que se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública) “contempla o domínio privado indisponível do Estado e demais pessoas coletivas por contraposição ao domínio privado disponível, que abrange os bens que se encontram aplicados a fins meramente financeiros.” Daí que segundo o mesmo autor “com a indisponibilidade pretende-se apenas evitar que os bens sejam desviados da afetação ao fim de utilidade pública a que se encontram destinados sem necessidade de lhes conferir a condição jurídica de inalienabilidade”
Só que, tratando-se no caso em apreço, como efetivamente se trata, de uma receita mensal, ficou outrossim por demonstrar que, sem esse contributo pecuniário mensal, a atividade da ora recorrente/oponente pararia por lhe ser vital ou imprescindível tal atribuição monetária.
A isto acresce, por outro lado, que depois de ser atribuído – atenta a sua fungibilidade -, tal subsídio pecuniário irá integrar o património da recorrente/oponente que lhe dará o destino que entender, que poderá passar, nomeadamente, pela aquisição de bens ou serviços.
E sendo assim afigura-se-nos que a solução passa pelo entendimento de que o subsídio em causa é suscetível de penhora, como bem se julgou a quo, em decisão que, por não merecer reparo, deve, consequentemente, ser mantida.[5]
É a decisão que se impõe proferir.

Em síntese e sumariando:
1. Factos notórios, nos termos do art. 514º do CPC, são os geralmente conhecidos no país, por pessoas regularmente informadas, isto é, acessíveis aos meios normais de comunicação.
2 Do artigo 823º/1 do CPCivil, mormente da sua segunda parte, decorre como exigência da impenhorabilidade relativa de bens a verificação cumulativa de dois requisitos, a saber: i) que os bens em causa pertençam a pessoa coletiva de utilidade pública; e ii) que tais bens estejam especialmente afetados à realização desses fins, competindo à recorrente oponente ó ónus da prova de tais requisitos.
3. São suscetíveis de penhora os subsídios pecuniário atribuídos por uma Câmara Municipal a uma associação/clube do respetivo município, enquanto receita mensal, fungível, que irá a integrar o património desta.

IV. Decisão
Termos em que se julga improcedente o recurso e, em consequência, se confirma a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 2012-01-16
António José Fernandes Isidoro
Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho
António José da Ascensão Ramos
__________________
[1] Com efeito, não obstante tratar-se de oposição à penhora cuja entrada em juízo ocorreu em 22.01.2010, o certo é que a execução respetiva foi instaurada em data anterior, ou seja, em 07.02.2006 (cfr fls 109), pelo que é aplicável o regime de recursos anterior ao DL 303/2007, de 24/08, por força do disposto nos arts 11º/1 e 12º/1 do mesmo diploma. Neste sentido ver, entre outros, o acórdão desta Relação de 01.10.2009, acessível in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Código de Processo Civil anotado, vol III, ps 259/261; Vd, também, Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Cª Editora, Ldª. 1976, p. 195; e outrossim o acórdão do STJ de 14.01.2009, disponível no respetivo sitio in dgsi.pt
[3] Realce a negrito nosso.
[4] Curso de Processo de Execução, 8ª edição, p. 187.
[5] Vide, neste sentido, os acórdãos da RPorto de 22.05.2006 e de 22.05.2006, respetivamente, Processos nºs 0651458 e 0640408, disponíveis no sitio da dgsi,pt.