Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0634600
Nº Convencional: JTRP00039485
Relator: GONÇALO SILVANO
Descritores: FALÊNCIA
INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
Nº do Documento: RP200609210634600
Data do Acordão: 09/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 683 - FLS 125.
Área Temática: .
Sumário: Para salvaguardar qualquer risco de uma incorrecta administração dos bens a partilhar, o falido deve ser impedido de exercer as funções de cabeça de casal no inventário enquanto não estiver sido efectuada a liquidação de todo o processo de falência que inclui os bens que foram apreendidos ao falido e que integram o acervo hereditário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

Foi instaurado processo de inventário por óbito de B………. onde os interessados C………. e D………. vieram impugnar a capacidade do requerente do inventário E………., quer como requerente do inventário quer como cabeça de casal, porquanto foi declarado falido por sentença transitada em julgado.

O cabeça de casal pugnou pela sua capacidade enquanto requerente do inventário e cabeça de casal.

Veio a ser proferida decisão onde se entendeu que nem em face do CPERE, nem à face do Código civil existe impedimento para impedir o falido de exercer as funções de cabeça de casal, indeferindo-se, em consequência a pretensão dos requerentes.

Quanto a esta decisão os requerentes/interessados apresentaram alegações tendo concluído, pela forma seguinte:

A interessada C……….:
1 - O Requerente e cabeça de casal do presente inventário foi declarado falido muito antes de iniciar este processo, através de procuração outorgada a ilustres mandatários, e o seu direito à herança que aqui pretende partilhar foi apreendido para a massa falida.
2 - A partilha não é um acto de administração, mas de disposição, na medida em que dela podem resultar prejuízos para o interessado, por erro na atribuição de valores aos bens, ou por falta de meios que lhe permitam licitar adequadamente, e o cabeça de casal, se tiver algum direito aos bens a partilhar, não administra, apenas, bens alheios, mas também bens próprios.
3 - Todavia, o, aliás, douto despacho recorrido admitiu o falido a intervir directamente no inventário e a exercer o cargo de cabeça de casal, com o fundamento de não estar em causa a administração de bens próprios mas alheios.
4 - Como resulta do que consta da conclusão 2ª, não é, evidentemente, assim, e o falido, ora Recorrido, está impedido, por virtude da anterior declaração de falência e de, no respectivo processo ter sido apreendido o direito - direito esse que deverá ser vendido no âmbito do processo de falência - constituir advogado para requerer a partilha, requerer a partilha, intervir directamente na partilha, administrar a herança, receber quaisquer quantias para pagamento de dívidas activas da herança ou eventuais tornas por virtude da partilha, pelo que este processo, salvo o devido respeito, é uma anomalia jurídica, e o, aliás, douto despacho recorrido viola o preceituado nos artigos 81 n°.s 1, 4, 6 e 7, 121 n°. 1 al. a), 112 n°.s 1 e 2, C.I.R.E., a que correspondem os art°.s 147, 15 e 156 do C.P.E.R.E.F., e 2082 n°. 1 e 2086 n°. 6 C.P.C., pelo que deve ser revogado, e, consequentemente, o Requerente e cabeça de casal impedido de, através dos seus doutos mandatários ou de qualquer modo, directamente, intervir no inventário ou desempenhar nele as funções de cabeça de casal, devendo sê-lo através do liquidatário judicial.

O interessado D……….:

1. O requerente do inventário e cabeça de casal nomeado pelo Tribunal foi declarado falido no proc. n.° ../98 que corre termos pelo 1.° Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.
2. Decorre do n.°1 do art.147.° do CPEREF que o falido fica imediatamente privado do poder de disposição dos seus bens presentes e/ou futuros.
3. Nos termos do n.°2 do mesmo artigo 147º o liquidatário assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência.
4. Nos termos do n.°1 do art.2082 do C.C. se o herdeiro que tiver preferência for incapaz, exercerá as funções de cabeça de casal o seu representante.
5. A declaração de falência importa para o falido uma série de limitações decorrentes da lei civil, nomeadamente quanto ao exercício das funções de cabeça de casal, de tutor, vogal do conselho de família, protutor e administrador de bens (art.1933.°, n.°2, 1953.°, n.°1, 1955.°, n.°1, 1970.0, alínea a) do Código Civil.
6. Ainda que tal não resultasse expressamente dos citados normativos legais, sempre teria o intérprete, Mº Juiz, que assim o considerar, não nomeando o requerente falido cabeça de casal, porquanto o inibido de dispor os seus bens presentes e futuros nunca poderia ser nomeado cabeça de casal e administrador da herança jacente na qual é interessado.
7. Pelo que violou o Mmo. Juiz, no douto despacho proferido, os artigos supra citados, art.147.° do CPEREF e arts. 1082, n.°1, 1933.°, n.°2, 1953.°, n.°1, 1955.°, n.°1, 1970.°, alínea a), todos do Código Civil
TERMOS EM QUE, e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, na procedência do recurso, deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que exonere o recorrido E………. do cargo de cabeça de casal e que nomeie em sua substituição o liquidatário judicial no processo de falência ou, quando assim não se entenda, qualquer outro interessado no inventário.
Mais devem, em consequência da procedência do recurso, ser declarados nulos ou anulados todos os actos subsequentes à nomeação do recorrido como cabeça de casal nos autos de inventário.
Como é de JUSTIÇA.

Houve contra-alegações onde se sustenta o despacho recorrido.
O despacho recorrido foi sustentado.
Corridos os vistos, cumpre decidir:

II- Fundamentos
a)- A matéria de facto a considerar na decisão deste agravo é a que acima se descreveu tudo documentado nos autos ,inclusive a sentença de declaração de insolvência do falido nomeado cabeça de casal e auto de apreensão de bens, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.

b)-O recurso de agravo.

É pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts.684º, nº 3 e 690º, nº1 do CPC), salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado.
Vejamos, pois, do seu mérito.

1-A questão que está em causa é a de saber se o falido se deve manter nas funções de cabeça de casal em processo de inventário em que é herdeiro.

No despacho recorrido reconheceram-se as limitações que são impostas ao falido em face do que se dispõe nos artº 147º do CPEREF e na administração de bens de menor, na qualidade de tutor.

Efectivamente no antigo artº 147º do CPEREF (em vigor à data em que o cabeça de casal foi declarado falido) dispunha-se que “A declaração de falência priva imediatamente o falido, por si (…) da administração e do poder de disposição dos seus presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e do poder de disposição do liquidatário”.
E no seu nº 2 dispunha-se que “O liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência”.

Sobre a inoponibilidade à massa falida dos negócios do falido posteriores à declaração de falência também se dispunha nos artºs 155º e quanto a actos que podem ser resolvidos em benefício da massa falida (designadamente a partilha celebrada menos de um ano antes da data da abertura do processo conducente à falência…) igualmente se dispunha no artº 156º do mesmo Código.
Actualmente esses conceitos estão contemplados e mais desenvolvidos nos artºs 81º, 112, 120 e 121 do C.I.R.E.
2-Mas essencialmente o que resulta do espírito das referidas normas é que a declaração de insolvência é de natureza patrimonial e reflecte-se nos poderes de actuação do falido nesse domínio da esfera jurídica.

Desde logo quanto aos bens compreendidos na massa insolvente o devedor insolvente fica privado dos poderes de administração e de disposição, sendo o administrador da insolvência quem assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (veja-se o actual artº 6º-1-b) e 81º, nº 4 do C.I.R.E).
Os poderes de que o devedor fica privado, são, pois, atribuídos ao administrador da insolvência.
Também, como foi salientado, aliás, na decisão recorrida, nesta linha de limitação os falidos ou insolventes não podem ser tutores nem administrar os bens de menor (cfr. artigos 1933º 1 e 2, 1953º, nº 1, 1955º, nº 1 e 1970 alínea a) do Código Civil)

3-Mas será que as limitações imposta pela lei, que acabámos de citar, se referem tão só aos bens patrimoniais do falido incluídos na massa insolvente?
Essa interpretação, com respeito por opinião contrária, só formalmente pode acolher-se,já que o alcance da declaração de falência tem de assumir relevância no exercício de um cargo como o de cabeça de casal que interfere directamente com a administração de bens patrimoniais que são do interesse não só do falido e dos restantes herdeiros, mas com repercussões directas para a massa insolvente.

Quanto a esses bens a partilhar em inventário judicial (e no caso sabe-se já que o quinhão do falido está apreendido) o cabeça de casal tem uma posição de sujeito activo como herdeiro e daí que não possa deixar de ser entendido como um acto em que diz também respeito à massa insolvente, onde o cabeça de casal é o devedor.
A demonstrá-lo está a descrição de bens que o auto de apreensão de bens nos revela, evidenciando-nos que estamos em presença de bens que constituem um património activo a partilhar no qual é interessado o próprio cabeça de casal, os outros herdeiros e também a massa falida por contar com esse património para com ele liquidar as dívidas dos credores do falido.
É nesta perspectiva ampla que se deve considerar que o falido está também impedido de administrar os bens da herança a partilhar.

No desenvolvimento dos diversos actos de instrução do inventário até ao acto de conferência de interessados ou de licitações podem acontecer múltiplas situações em que o cabeça de casal tem de interferir nessa qualidade ou como herdeiro e que podem ter implicações directas com o património da massa falida, sem que a fiscalização do tribunal possa ser efectivamente operante (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda-CIRE anotado –vol I, edição Quid Juris, pág.438).
Será para salvaguardar qualquer risco de uma incorrecta administração dos bens a partilhar que o falido deve ser impedido de exercer as funções de cabeça de casal no inventário enquanto não estiver sido efectuada a liquidação de todo o processo de falência que inclui os bens que foram apreendidos ao falido e que integram o acervo hereditário.

4-A administração da herança, até à sua liquidação e partilha pertence ao cabeça de casal (artº 2079º do CC), incumbindo a nomeação deste cargo às pessoas indicadas no artº 2080º.
Porém havendo circunstâncias concretas e legais (como no caso) que limitem a observância dessa ordem e antes imponham a alteração da mesma, então deve o tribunal de harmonia com o disposto no artº 2083º e a requerimento de qualquer interessado proceder à designação que entenda mais adequada ao caso, se não houver possibilidade de se efectuar a designação por acordo nos termos do artº 2084º do mesmo CC, considerando-se aí também a pessoa do administrador judicial da insolvência o qual a lei prevê deva ser o representante legal do falido.

Daí que considerando o Código da Insolvência prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência, actos que podem estar relacionados com a própria partilha (cfr. artºs 120-1, 2 e 3 e 121 do actual C.I.R.E, e correspondentes aos antecedentes artºs 156º e 158º do CPEREF, haja motivo justificado para remover das funções de cabeça de casal o interessado E………., atenta a declaração da sua falência em liquidação.

III- Decisão.
Pelo exposto acorda-se em conceder provimento ao recurso de agravo, revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro tendo em conta os princípios acima enunciados.
Custas pelos agravados.
Porto, 21 de Setembro de 2006
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo