Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
584/07.2GCETR.P1
Nº Convencional: JTRP00043091
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Nº do Documento: RP20091028584/07.2GCETR.P1
Data do Acordão: 10/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 392 - FLS. 226.
Área Temática: .
Sumário: I- O MP não pode colmatar as deficiências da acusação do assistente atinentes a qualquer facto, seja reportado aos elementos objectivos, seja ao elemento subjectivo do tipo legal imputado.
II-. A falta de alegação do dolo, mormente num crime essencialmente doloso, não é um pormenor que possa ser tido como implícito, na descrição dos elementos objectivos do tipo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo comum singular 584/07.2GCETR do Juízo de Instância Criminal, sediado em Estarreja da Comarca do Baixo Vouga


Relator - Ernesto Nascimento.

Decisão sumária, artigo 417º/6 alínea b) C P Penal.

I. Relatório

I.1. Remetido o processo à distribuição, foi proferido o seguinte despacho:
“o tribunal é o competente.
Não existem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa e que cumpra conhecer.

Registe e autue como processo comum com a intervenção do Tribunal singular.

A assistente B……………. deduziu acusação particular contra C………… imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º C Penal.
O MP declarou acompanhar a acusação particular deduzida pelo assistente, tendo, contudo, elaborado nova acusação, a qual consta de fls. 53/55.

Determina o artigo 311º/2 alínea a) C P Penal que, quando não tenha havido fase de instrução (como é o caso destes autos) o juiz deve rejeitar a acusação “se a considerar manifestamente infundada”.
Acrescenta o n.º 3 da mencionada disposição legal, no que ora interessa, que para efeitos do disposto no n.º anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
- se não indicar as disposições legais aplicáveis;
- se os factos não constituírem crime.
Da mera leitura da acusação deduzida pela assistente fácil e imediatamente se constata que a mesma não contém factos que possam suportar a condenação do arguido – ainda que todos os que nela constam se venham a provar.
Na acusação particular não são descritos factos integradores do dolo, designadamente que o arguido conhecia e queria o resultado da sua conduta.
Estando em falta na acusação o elemento subjectivo do crime e sendo tal elemento essencial, óbvio se torna que mesmo que todos os factos alegados na acusação particular venham a ser julgados provados, o resultado final será absolvição (precisamente por falta do elemento típico subjectivo).
Atente-se, aliás, que quanto ao crime de injúria a acusação, para além dos factos atinentes ao circunstancialismo de tempo e lugar, se limita a dizer que o arguido “entrou dentro do referido café onde aquela se encontrava atrás do balcão e disse: isto não pode ser assim, você é uma ladra, você é uma ladra”.
Ora, nos crimes particulares é a acusação particular que define o objecto do processo, estabelecendo desde logo os limites dos factos, crimes e agentes dos mesmos.
Assim, face ao disposto no n.º 4 do artigo 285º C P Penal, não tendo o assistente descrito factos integradores do dolo e da consciência da ilicitude, não pode o MP colmatar tal deficiência (cfr. neste sentido o acórdão da Relação do Porto de 18.12.2002 in CJ, V, 215).
De facto, nos termos da disposição legal supra citada, “o MP pode, nos 5 dias posteriores à apresentação da acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importe uma alteração substancial daqueles”.
Ora, a descrição dos factos atinentes ao elemento subjectivo importa uma alteração substancial dos factos alegados na acusação particular pois aquela, da forma como se encontra deduzida, não permite a imputação de uma conduta ilícita típica ao arguido.

Assim sendo, conclui-se que a acusação particular deduzida pela assistente é manifestamente infundada por falta de alegação de factos subsumíveis a um tipo legal, pelo que ao abrigo do disposto no artigo 311º/2 alínea a) C P Penal, rejeito a mesma.
Atento o disposto na alínea b) do supra citado n.º 2 do artigo 311º C P Penal, rejeito igualmente a acusação deduzida pelo MP pelo crime de injúria.
Consequentemente, ordeno o arquivamento dos autos.
Custas a cargo da assistente com taxa de justiça que fixo em 2 UC, artigos 518º e 515º/1 alínea f) C P Penal”.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, interpôs a assistente recurso, pedindo a revogação deste despacho, sustentando as seguintes conclusões:

1. a assistente deduziu a acusação contra o arguido, por crime de injúria sem, expressamente, alegar factos integradores de uma conduta dolosa e ilícita por parte daquele;
2. dando-se conta deste lapso primário o MP, na acusação que deduziu nos termos do artigo 285º/4 C P Penal, concluiu que o arguido “agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito, conseguido de vexar, envergonhar e ofender na sua honra e consideração, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei”;
3. a ilustre Juiz a quo considerou infundada a acusação da assistente por falta de factos e rejeitou a acusação do MP por representar, no seu douto entendimento, uma alteração substancial dos factos e violar, desse modo, o artigo 285º/4 C P Penal;
4. a lei pretende, ao estatuir a disposição, garantir ao arguido a estabilização dos factos que lhe são imputados, de modo a possibilitar-lhe o direito de arquitectar a sua defesa, “de uma vez e não por vezes”;
5. a nossa jurisprudência tem defendido que a acusação do assistente e a do MP, neste tipo de crime, se completam mutuamente, constituindo como que uma só dada a estreita conexão entre ambas;
6. ora, é a partir da acusação que o processo deve manter a mesma identidade factual para que o direito de defesa do arguido não seja surpreendido e, desse modo, a defesa impedida ou, de algum modo, prejudicada;
7. ora, podendo o arguido contestar, apresentar prova ou requerer instrução, em nada a sua defesa se vê prejudicada pela dedução de uma acusação;
8. em todo o caso a acusação deduzida pelo MP não representa qualquer alteração substancial dos factos tratados na acusação a assistente, não violando o artigo 285º/4 C P Penal;
9. essa alteração, que não imputa ao arguido crime diverso (artigo 1º alínea f) C P Penal) constitui, tão só, um aditamento de precisão ou, pretendendo-se, a conclusão para um facto que implicitamente já a continha;
10. por fim, não faria sentido dar preferência ao direito de defesa do arguido – não estando em causa a possibilidade da plenitude do seu exercício – esquecendo o princípio da procura da verdade material, protector, também, do interesse da ofendida neste processo;
11. a douta decisão recorrida violou, assim, os artigos 1º alínea f) e 285º/4 C P Penal, pelo que deve ser revogada.

I. 3. Na 1.ª instância não foi apresentada qualquer resposta.

II. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se o Sr. Procurador Geral Adjunto no sentido da improcedência do recurso.

No cumprimento do estatuído no artigo 417º/2 C P Penal, nada mais foi acrescentado.

III. Fundamentação

III. 1. Em face das conclusões apresentadas pelo recorrente, cremos ser caso de decisão sumária, nos termos do artigo 417º/6 alínea b) C P Penal, devendo “o recurso ser rejeitado”, por “ser manifesta a sua improcedência”.
Nos expressivos dizeres de Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 5ª ed., 2002, pág. 111, a improcedência é manifesta quando, “atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos Tribunais Superiores, é patente a sem razão do recorrente, sem necessidade de ulterior e mais detalhada discussão jurídica em sede de alegações“.
Como se está face a caso de rejeição de recurso por ser manifesta a sua improcedência, artigo 420º/1 C P Penal, identificados que estão, já, nos termos do artigo 420º/3 C P Penal, o tribunal recorrido, o processo e os sujeitos, importa agora, especificar sumariamente os fundamentos da decisão.

III. 2. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.

Assim, para apreciação deste Tribunal, vem suscitada no presente recurso, tão só, a questão de saber se a acusação deduzida pelo recorrente, por crime de natureza particular, está em condições de ser recebida, seguindo o processo para julgamento.

A concreta questão aqui suscitada – necessidade ou não de alegação, descrição na acusação dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo - surge com alguma frequência, mas invariavelmente associada a acusações particulares por crimes de injúrias e de difamação, os crimes de natureza particular, por excelência, em maior número de vezes, de longe, submetidos a apreciação dos tribunais.
Em face das conclusões apresentadas importa decidir se a omissão, na acusação do elemento intelectual do dolo implica a sua rejeição por ser manifestamente infundada (como decidiu o despacho recorrido), ou se pelo contrário, (como defende o recorrente), tal omissão é susceptível de ser integrada, desde logo, pela acusação subsequente do MP.

III. 3. Para uma melhor elucidação da questão subjacente ao presente recurso, importa, desde já, recordar, o teor das acusações, quer da particular, quer da pública.
A primeira é do seguinte teor:

“no dia 25NOV2007, pelas 18.30 horas no interior do café D…………., propriedade da ofendida, sito na Rua ……… em Canelas, freguesia deste concelho e comarca, o arguido que é sobrinho da queixosa, entrou dentro do referido café onde aquela se encontrava atrás do balcão e disse:
- isto não pode ser assim, você é uma ladra, você é uma ladra.
A ofendida aconselhou o arguido a ter calma enquanto este, nervoso, deambulava pelo dito café.
Não obstante, este segurando na mão um pequeno machado que trazia consigo elevando-o no ar, caminhou na direcção da ofendida para a atingir com ele, facto de que foi medido pela mulher do arguido que presenciando os factos, lhe segurou no braço, evitando o mal.
Com a relatada conduta cometeu o arguido um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º C Penal.

Prova –
(…)”

Por sua vez a do Magistrado do MP., neste particular expende, do seguinte modo:
“analisado o material probatório indiciário recolhido e carreado para os presentes autos e de acordo com o preceituado no n.º 3 do artigo 285º C P Penal, para julgamento em processo comum e com a intervenção do tribunal singular, o MP acompanha a acusação particular deduzida pela assistente B……………., contra C……………, casado, motorista, filho de E………… e F……………, residente na Rua ……., …. em Canelas, titular do BI n.º ……538,
relativamente aos factos vertidos no seu parágrafo 1 e nos termos que a seguir se narram:
“no dia 25NOV2007, pelas 18.30 horas no interior do café D………., propriedade da ofendida, sito na Rua ……….. em Canelas, freguesia deste concelho e comarca, o arguido que é sobrinho da queixosa, entrou dentro do referido café, onde aquela se encontrava atrás do balcão.
Logo após ali entrar, o arguido dirigindo-se à assistente, sua tia materna, disse-lhe: “roubaste o meu avô e a minha mãe !... As minhas cartas iam para a residência do meu avô e agora não e porquê?... Isto não pode ser assim, você é uma ladra, você é uma ladra”.
O arguido sabia que tais palavras, por si dirigidas à assistente eram profundamente ultrajantes e lesivas da honra e da consideração que lhe era devida.
Agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito, conseguido, de a vexar, envergonhar e ofender na sua honra e consideração, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Constituiu-se, deste modo, o arguido autor material de um crime de injúria, p. e p pelo artigo 181º/1 C Penal.
PROVA –
(…)”

III. 4. Vejamos, então.

São do seguinte teor as normas alegadamente violadas:
o artigo 1º alínea f) C P Penal,
“alteração substancial dos factos” aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”;
artigo 311º C P Penal:
“1. recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre s nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido par a julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do MP na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente.
3. para os efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) se s factos não constituírem crime”;

Temos então que, no caso sub judice, a acusação foi rejeitada, por se ter “considerado como manifestamente infundada, dado que os factos ali descritos não constituem crime”.

A propósito da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º C P Penal refere Germano Marques da Silva in Curso, III, 207/8, que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”.
Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do C P Penal é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”.
Acusação manifestamente infundada é aquela que nos seus próprios termos não tem condições de viabilidade”, no entendimento expressivo de Maia Gonçalves, o que acontece nos casos taxativos previstos no n.º 3 do artigo 311º C P Penal.
“O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime, só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos constitutivos - objectivos e subjectivo - de qualquer ilícito criminal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante”, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C P Penal.
Com a actual redacção do artigo 311º C P Penal, introduzida pela Lei 65/98 de 25AGO, manifestante que se quis excluir a possibilidade de rejeitar a acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária, como tinha sido fixado pelo Acórdão do STJ 4/93, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 311º C P Penal.

Assim dado como assente que no caso se verificam os indícios dos factos descritos na acusação, importa apreciar se dirigir a alguém as palavras que o arguido dirigiu à assistente, nos moldes por esta descritos na acusação particular que contra aquele deduziu, é susceptível de integrar o tipo legal de injúria do artigo 181º/1 C Penal.
Estabelece o artigo 283º/3 C P Penal, aplicável à acusação particular, por força do estatuído no artigo 285º/3, que “a acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
Esta exigência resulta facilmente compreensível, se atentarmos no facto de que os poderes de cognição - e, consequentemente, de decisão - do tribunal estão limitados pelo princípio de vinculação quanto ao objecto (essencial) do processo, tal como definido na acusação.
Não só o Tribunal precisa de saber, desde logo, exactamente aquilo que tem de julgar (porque não será possível, a partir deste ponto, alterar-se o manancial fáctico, com que terá de trabalhar senão em medida muito limitada), como o arguido, para se poder defender adequadamente da acusação que lhe é feita, tem de saber, também desde já, aquilo que se supostamente terá feito.
O acto de julgar contém-se no âmbito e dentro dos limites que são colocados por uma acusação fundamentada. Trata-se manifestamente de um caso seguro de vinculação temática.
Isto porque é pela acusação que se define e fixa o objecto do processo, o objecto do julgamento, e, portanto passível de condenação será tão só o arguido pelos factos constantes da acusação.
Se os factos integradores do dolo não estiverem descritos na acusação - como no caso não estão, de todo - o arguido, desconhecendo, por um lado o nexo de imputação dos factos, se a título de culpa se de negligência e por outro, a modalidade do dolo, que o acusador tem por subjacente, vê-se impedido de exercer de forma cabal, o seu direito de defesa.
Sem a descrição dos factos, inexiste objecto idóneo à actividade do Tribunal e da mesma forma, fica o arguido impossibilitado de se defender.

Como da mesma forma, em face do princípio geral “nulla poena sine culpa”, consagrado no artigo 13º C Penal, fica demonstrada a necessidade, a imprescindibilidade, mesmo, de os elementos integradores da culpa (do dolo, necessariamente, no caso, do crime de injúria), para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena.
“A culpa é a censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso e, assim, se traduz num juízo de valor”, cfr. Prof. Eduardo Correia, in Direito Criminal, I, 313.
“Os elementos da culpa são a imputabilidade do agente, a sua actuação dolosa ou negligente e a inexistência de circunstâncias que tornem não exigível outro comportamento”, ibidem, 322.
“O dolo e a negligência têm como substracto um fenómeno psicológico, representado por uma certa posição do agente perante o facto ilícito capaz de ligar um ao outro. Estes fenómenos psicológicos, eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do agente, cabem, ainda assim, dentro da vasta categoria de factos processualmente relevantes”, cfr. Prof. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, in Manual de Processo Civil, 392, com evidente pertinência em relação ao processo penal.
Daqui se conclui, igualmente, pela necessidade de a acusação dever conter os factos, neste sentido, que permitam formular o referido juízo de censura ético-jurídica ao arguido.

O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo leal de crime de injúria, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.
De resto, encerrada a discussão na audiência de julgamento, aquando da reunião de deliberação subsequente, na apreciação do mérito, será pela questão de saber se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, que se inicia esta fase de elaboração da decisão final, cfr. artigo 368º/2 alínea a) C P Penal.

Resulta, assim, cremos suficientemente evidenciada a importância da referência na acusação, a todos os factos integradores dos elementos constitutivos do tipo legal.
Os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança são, naturalmente, os que integram, enquanto elementos constitutivos, os diferentes tipos das várias incriminações previstas na lei penal.
Como é consabido, elementos constitutivos dos diversos tipos legais de crime, são por um lado,
o objectivo, que se traduz na descrição objectiva da acção ou omissão proibida – e, por outro lado,
o subjectivo, relativo à atitude (aos conhecimentos) que o agente deve apresentar em relação à realização do tipo penal.
Sem a sua verificação cumulativa, não se pode afirmar o preenchimento do tipo.

Convém recordar, desde já, que o tipo legal de crime de injúria é de natureza dolosa, ié. apenas a conduta dolosa é punida e não, já, a negligente, cfr. artigo 13º C Penal, donde o elemento subjectivo, no que ao caso interessa, apenas se pode traduzir no dolo.
O artigo 14º C Penal, não define o dolo do tipo, apenas prevê as diversas formas que o mesmo pode revestir.
Nos termos do nº. 1, “age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar”, dolo directo;
segundo o nº. 2, “age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta”, dolo necessário e,
em face do nº. 3, “quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando–se com aquela realização”, dolo eventual.
“A doutrina dominante conceptualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito.
O dolo surge, então, justificadamente como conhecimento - o momento intelectual – e vontade – momento volitivo – de realização do facto.
Os 2 elementos, do ponto de vista funcional, não se encontram, no entanto, ao mesmo nível:
o elemento intelectual do dolo do tipo, não pode, por si mesmo, considerar-se decisivo da distinção dos tipos dolosos e dos tipos negligentes, uma vez que também estes últimos podem conter a representação pelo agente de um facto que preenche um tipo de ilícito - a chamada negligência consciente, artigo 15º alínea a) C Penal.
Será, pois, o elemento volitivo, quando ligado ao elemento intelectual, que verdadeiramente serve para indiciar (embora não para fundamentar) uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, uma culpa dolosa”, cfr, Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, I, 334.
Comportamentos dolosos, na expressão do mesmo autor, ibidem, 247, são aqueles em que “o agente previu e quis a realização do tipo”.
“Hoje vem-se colocando, a questão de saber se o dolo se esgota naqueles elementos ou se inclui também um elemento emocional – a consciência da ilicitude”, cfr. Prof. Figueiredo Dias, Jornadas, 72 e Direito Penal, Parte Geral, I, 333 e 489, apud Maia Gonçalves, in C Penal anotado, 17ª edição, 103.
Expende, o Prof. Figueiredo Dias que, “o dolo não se pode esgotar no tipo de ilícito e não é igual ao dolo do tipo, mas exige ainda do agente, o momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo, ou seja uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas”.

O recorrente defende, nas conclusões, que a falta de alegação expressa dos factos integradores do dolo se deve a um lapso, primário, que foi corrigido pelo MP, na acusação que deduziu nos termos do artigo 285º/4 C P Penal, onde concluiu que o arguido “agiu de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito, conseguido de vexar, envergonhar e ofender na sua honra e consideração, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

Este entendimento não pode ser sufragado.
O MP, nos termos do n.º 4 do artigo 285º C P Penal, “pode (…) acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial dos factos”.

Ao contrário do entendimento expresso na decisão recorrida – aqui é pertinente, a discordância da recorrente, pois que o MP não imputa ao arguido crime diverso - onde se considerou que a posição assumida pelo MP representava uma alteração substancial dos factos – cremos, antes estar perante uma acusação pública que acusa por factos diversos, ou no dizer do texto legal, não “pelos mesmos factos” constantes da acusação particular, onde se não alegou os factos atinentes ao quadro psicológico do arguido no momento em que supostamente levou a cabo a descrita conduta e que permitiriam concluir que actuou com dolo, em qualquer uma das suas modalidades - comportamento, aquele do MP, da mesma forma, violador do artigo 285º/4 C P Penal.

Não se pode defender, por falta de fundamento legal – e desde logo atento o disposto no referido artigo 285º/4 C P Penal – que “a acusação do assistente e a do MP, neste tipo de crime, se completam mutuamente, constituindo como que uma só dada a estreita conexão entre ambas”.
A conexão que, inequivocamente, existe, em termos formais ou adjectivos, estende-se, de resto, de forma, precisa e deveras restritiva, à parte substancial, a impor, a obrigação de respeito pelos factos naturalísticos constantes da acusação particular - que não podem ser excedidos - e pela qualificação jurídica – que da mesma forma não pode ser alterada, para crime mais grave.
Desta interpretação da norma em causa, resultará o entendimento de que o MP não pode colmatar as deficiências da acusação do assistente atinentes a qualquer facto, seja reportado aos elementos objectivos, quer ao elemento subjectivo do tipo legal imputado.

Não é o facto de ao arguido vir ainda a ser dada a oportunidade para apresentar contestação, apresentar prova ou requerer instrução, com o que não vê prejudicada a sua defesa, que permite, a dedução de uma acusação incompleta, onde falta o elemento subjectivo, com a subsequente reparação, com a incorporação do elemento em falta – quer por parte do MP, quer por parte do Juiz, de Instrução ou de Julgamento (doutra forma estava encontrado o expediente para esvaziar de conteúdo a norma contida no artigo 311º/3 alínea d) C P Penal, sem esquecer que o artigo 358º C P Penal só permite a indagação em audiência de factos descritos na acusação, o que pressupõe que aquela tenha sido recebida e em condições de o ser).

Nem se dia que estamos perante um lapso, inicial e, perante, tão só, um subsequente, aditamento de precisão ou, perante a conclusão de um facto, implicitamente alegado.
A falta de alegação do dolo, mormente num crime essencialmente doloso, não é um pormenor que possa ser tido como implícito, na descrição dos elementos objectivos do tipo.
“Se nada impede que se capte o dolo, dada a sua natureza de intimamente ligado à vida interior do agente, insusceptível de apreensão directa, através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa extrair, por meio de presunções, mesmo ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”, cfr. Ac deste Tribunal de 23.2.83, in BMJ, 324º, 620, no entanto, uma coisa é a prova do dolo e outra, diversa, é a sua alegação.
Só pode ser objecto de prova, o facto anteriormente alegado.
“Não se pode admitir a figura de dolo implícito”, cfr. Ac. RG de 7.4.2003, in CJ, II, 291, nem a Constituição da República consente presunções de culpa, cfr. artigo 32º/1, 2 e 5 da Constituição da República.

Da mesma forma – pelo que vem de ser explanado - não se pode concordar com a recorrente quando afirma que “não faz sentido dar preferência ao direito de defesa do arguido – não estando em causa a possibilidade da plenitude do seu exercício – esquecendo o princípio da procura da verdade material, protector, também, do interesse da ofendida neste processo”.
Como é sabido, no processo penal está em causa não a verdade formal, mas a verdade material, que há-de ser tomada num duplo sentido:
1.º uma verdade subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela e,
2.º uma verdade que, não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser, antes de tudo, uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida [1].

Em conclusão:
a consequência prática e imediata da apontada omissão da acusação particular, será a consideração da acusação como deficiente, tão só, se bem que numa medida, decisiva, a fundamentar a sua rejeição, por manifestamente infundada, porque os factos descritos não constituem crime, artigos 311º/2 alínea a) e 3 alínea d) C P Penal;
os factos ali descritos não constituem, com efeito crime, pois que à descrita, acção, típica e ilícita, falta a necessária, descrição da voluntariedade e da imputação a título doloso, no caso concreto, todos eles, elementos que “constituem os pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena”, na noção contida no artigo 1º alínea a) C P Penal;
donde, a pretensão da recorrente, à luz do direito actualmente vigente, não é, de todo, legalmente possível;
tendo vindo, assim, colocar em crise, de forma manifestamente infundada, nos termos e para os efeitos do artigo 420º/1 alínea a) C P Penal, a decisão recorrida, de não recebimento da acusação por si deduzida, a que falta o elemento subjectivo do tipo legal de injúria;
tal recurso, não só, está votado ao insucesso, como resulta, mesmo, ser o mesmo, manifestamente improcedente, pois que através de uma avaliação sumária da sua fundamentação, em face do texto legal, se pode concluir, sem margem para dúvida, que está claramente votado ao insucesso, que os seus fundamentos são inatendíveis, pois que deduziu o recorrente, pretensão, manifestamente contra legem, de forma, de resto, no mínimo, que deve ser qualificada como de ousada e temerária;
ou por outras palavras, pelas razões expostas, atenta a letra da lei, os factos alegados na acusação particular e a jurisprudência, o recurso revela-se num exame perfunctório, manifestamente improcedente

Nestes termos, sumariamente se decide, ao abrigo do disposto nos artigos 420º/1 alínea a) e 417º/6 alínea b) C P Penal, pela rejeição do recurso, com a consequente manutenção do despacho recorrido - ainda que com fundamentação diversa (com exclusão do entendimento de se estar perante uma acusação pública que acusa por factos que importam uma alteração substancial dos descritos na acusação particular).

IV. Dispositivo

Nestes termos e com os fundamentos mencionados, rejeita-se, por manifestamente improcedente, o recurso interposto pela assistente B…………...

Condena-se a recorrente, porque decaiu, totalmente, no pagamento da taxa de justiça, que se fixa em 4 UC,s, artigo 87º/1 alínea b) C. das Custas Judiciais.
Nos termos do artigo 420º/4 C P Penal, condena-se, ainda a recorrente, na taxa de justiça, que se fixa, no equivalente a 5 UC,s.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o signatário.

Porto, 2009.10.28
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
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[1]Cfr. Prof. Figueiredo Dias in Princípios gerais do processo penal, 193/4