Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0625149
Nº Convencional: JTRP00039695
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: TRANSACÇÃO
NULIDADE
EMPARCELAMENTO
Nº do Documento: RP200611070625149
Data do Acordão: 11/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 230 - 176.
Área Temática: .
Sumário: I - Não é permitida a homologação de transacção que pressuponha uma violação da lei do emparcelamento (art. 1376º do CC e Portaria 202/70 de 21 de Abril) por constituir um negócio contrário à lei, ilícito, mesmo que a causa de pedir da acção seja a aquisição por usucapião de prédios distintos.
II - Situação bem diversa é a declaração de aquisição do direito de propriedade por usucapião de parcelas distintas, mesmo que em violação o dito emparcelamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B………. e mulher, C………., residentes em ………., Paris, instauraram, no Tribunal Judicial de Macedo de Cavaleiros, contra D………. e mulher, E………., residentes em ………., Macedo de Cavaleiros, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, pedindo que:
a) Se decrete a inexistência de propriedade comum ou compropriedade entre Autores e Réus dos prédios identificados nos arts. 6º, 7º, 8º e 9º da petição;
b) Se decrete que os Autores, por usucapião, são donos e legítimos possuidores de vários prédios, que identifica, sitos na freguesia de ………. e na freguesia de ………., resultantes de fraccionamento, e de outros prédios, que também identifica, que lhe foram atribuídos por inteiro;
c) Se condenem os Réus a reconhecerem o peticionado em a) e b).
Para o efeito, os Autores alegam, em síntese, o seguinte:
- Em 12 de Janeiro de 1978, Autores e Réus adquiriram, por escritura pública de compra e venda, em comum e partes iguais, vários prédios rústicos;
- Dois ou três anos após a outorga dessa escritura, Autores e Réus, de forma amigável e verbalmente, dividiram fisicamente em duas partes/parcelas alguns desses prédios rústicos, e outros em três, ficando cada um com a sua parte ou partes; em relação a outros prédios, Autores e Réus atribuíram-nos, por inteiro, a uns e outros;
- Também em 12 de Janeiro de 1978, Autores e Réus adquiriram aos mesmos vendedores, mas de forma verbal, um outro prédio rústico, sito na freguesia de ……….., que, passados dois ou três anos, foi igualmente dividido em duas partes/parcelas, sendo cada uma delas atribuída aos Autores e aos Réus;
- Desde então, Autores e Réus exercem sobre cada um desses prédios ou parcelas, de forma continuada, os mais diversos actos de posse em nome próprio e em termos singulares …
- Sempre os tratando, cuidando e explorando como coisa inteiramente sua, sem oposição de ninguém e à vista de todos, cientes de que não lesam direitos de outrem.
Os Autores juntaram vários documentos, entre os quais algumas plantas topográficas.

Em 1 de Março de 2006, as partes celebraram transacção, por termo nos autos, na qual, entre o mais aí acordado, os Réus “reconhecem na íntegra o peticionado pelos AA.”.

O Mmº Juiz a quo rejeitou a homologação da transacção com o fundamento de que a mesma significaria permitir um fraccionamento proibido por lei, uma vez que para a zona de Bragança a unidade de cultura é de dois hectares para os terrenos arvenses e de três hectares para os terrenos de sequeiro, sendo que as parcelas em causa têm uma área inferior a essa unidade de cultura.

Os Autores recorreram.
O recurso foi admitido como de agravo, com subida imediata e em separado, e com efeito devolutivo.

Na motivação do seu agravo os Autores pedem que se revogue o despacho impugnado e se homologue a transacção, formulando as conclusões que seguem:
1. Os Autores/agravantes alegaram suficientemente na petição inicial que a sua causa de pedir e pedido se baseava na usucapião.
2. A transacção lavrada por termo nos presentes autos baseia-se tão só e apenas nessa forma de aquisição originária do direito de propriedade.
3. Por outro lado, não é correcto dizer-se que todos os prédios rústicos objecto desta acção se destinam a fins de cultura arvense ou de sequeiro. Há também prédios de regadio.
4. Não há razão para condenar em custas, no montante de 6 Uc’s, a transacção em causa.
Foram incorrectamente interpretadas-aplicadas as normas dos arts. 1376º, n.º 1, 1287º e 280º do CC, do art. 299º, n.º 1, do CPC e do art. 16º, n.º 1, do CCJ.

Os Réus não contra-alegaram.

O Mmº Juiz a quo proferiu despacho de sustentação – v. fls. 46.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o âmbito do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – as questões a dirimir são:
a) A transacção efectuada pelas partes devia ser homologada?
b) É exagerada a condenação em 6 Uc’s?
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II - FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTO

Os factos que interessam à decisão do agravo são os que constam do antecedente relatório.

O DIREITO

a)

O art. 1376º, n.º 1, do CC, sob a epígrafe “fraccionamento”, estabelece que:
“Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela de terreno”.
Desta proibição estão apenas exceptuados os terrenos indicados nas alíneas a) a c) do art. 1377º, a saber:
- terrenos que constituam partes componentes de prédios urbanos ou se destinem a algum fim que não seja a cultura;
- se o adquirente da parcela resultante do fraccionamento for proprietário de terreno contíguo ao adquirido, desde que a área da parte restante do terreno fraccionado corresponda, pelo menos, a uma unidade de cultura;
- se o fraccionamento tiver por fim a desintegração de terrenos para construção ou rectificação de estremas.

O que se visa com a proibição do fraccionamento de prédios rústicos é a formação de unidades agrícolas com uma dimensão que lhes proporcione um mínimo de viabilidade e de sustentabilidade económica.
Na prossecução desse objectivo programático, a lei civil, no art. 1379º, declara anuláveis os actos de fraccionamento contrários ao disposto no art. 1376º, n.º 1.
O art. 1º da Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril (a qual ainda se encontra em vigor, face ao estabelecido no art. 21º do DL. nº 384/88 de 25/10 e 53º do DL n.º 103/90 de 22/03) fixou a unidade de cultura para o distrito de Bragança, ao qual pertence o concelho de Macedo de Cavaleiros, em 2 hectares para os terrenos arvenses, 3 hectares para os terrenos de sequeiro e 0,5 hectare para os terrenos hortícolas.
Pois bem.
Os Autores e Réus celebraram por termo nos autos a transacção que consta de fls. 22/23, na qual, entre outros pontos, os segundos declaram reconhecer na íntegra o peticionado pelos primeiros. Ou seja, os Réus reconhecem que os Autores, por usucapião, são donos e legítimos possuidores de vários prédios, que identifica, sitos na freguesia de ………. e na freguesia de ………., resultantes de fraccionamento, e de outros prédios, que também identifica, que lhe foram atribuídos por inteiro.
Conforme se constata das plantas topográficas de fls. 17 a 21, para as quais esse termo de transacção remete, e já constava, aliás, da própria alegação dos Autores, as áreas das parcelas que resultaram do pretenso fraccionamento são, todas elas, inferiores à unidade de cultura da região para os terrenos arvenses e de sequeiro.
Foi este o fundamento da recusa de homologação da transacção.
E parece-nos que bem, como tentaremos demonstrar.

A transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões – art. 1248º, n.º 1, do CC.
Aplica-se-lhe, por isso, a disciplina dos contratos (arts. 405º e ss.) e o regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217º e ss.).
O art. 1249º do CC dispõe que as partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos. E o art. 299º, reforçando essa proibição, não permite a confissão, desistência ou transacção que importe a afirmação de vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis.
Para a definição do conceito de negócio jurídico ilícito devemos recorrer à análise dos requisitos do objecto negocial formulados no art. 280º do CC. Dele se infere que são condições da validade do negócio jurídico: a possibilidade física ou legal (ad impossibilia nemo tenetur), a não contrariedade à lei (ilicitude), a determinabilidade, a não contrariedade à ordem pública e a conformidade com os bons costumes do objecto negocial – v. Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição, págs. 547 e ss.
Não nos restam dúvidas de que a transacção judicial, nos termos em que foi celebrada, constitui um negócio contrário à lei, logo ilícito, na medida em que viola uma concreta disposição legal de conteúdo proibitivo: o art. 1376º, n.º 1, do CC.
E do art. 294º do CC resulta que os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.
Já vimos mais acima que a sanção cominada na lei para a divisão material de prédios rústicos contra o disposto no art. 1376º, n.º 1, é a anulabilidade do negócio – v. art. 1379º, n.º 1.

Passemos, agora, para os verdadeiros fundamentos do agravo.
Como 1º argumento os agravantes elegem a circunstância de a causa de pedir e o pedido se basearem na usucapião, o que, só por si, legitimaria a produção de efeitos do acordo judicial, operando a divisão material dos prédios rústicos em causa.
É, de facto, verdade que a presente acção está alicerçada no instituto da usucapião, que, como se sabe, é uma forma originária de aquisição de direitos reais, maxime do direito de propriedade. A invocação da usucapião apenas está vedada nos casos previstos no art. 1293º do CC (servidões prediais não aparentes e direitos de uso e de habitação) e naqueles que resultem de normas jurídicas que impeçam a apropriação individual de determinados bens, como o são os bens do domínio público ou os baldios, ou das que obstam à colocação de certos bens no comércio jurídico.
Com excepção destes casos, desde que uma determinada situação de facto se tenha constituído em posse e esta se mantenha durante um período prolongado de tempo, nada deve obstar a que se reconheça o correspondente direito surgido na esfera jurídica do possuidor, deixando de fazer sentido, como obstáculo a esse reconhecimento, a invocação do interesse público que preside às restrições impostas à divisão – v. Acs. Rel. Coimbra de 28.03.2000, CJ Ano XXV, Tomo II, págs. 31 e ss., e de 26.09.2006, no processo n.º 453/05, em www.dgsi.pt..
Como se decidiu, igualmente, num acórdão da mesma Relação, datado de 02.05.1989 e sumariado no BMJ n.º 387, pág. 671, “a usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto (por exemplo, a exigência de forma para a partilha de uma herança e a proibição de divisão de um prédio)”.

Através da transacção judicial as partes põem termo ao litígio através de concessões recíprocas, com abstracção da real existência e conteúdo anterior das situações jurídicas que constituíam o objecto da pretensão ou pedido – v. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 522.
A sentença homologatória de transacção judicial não tem como função decidir a controvérsia substancial, mas apenas fiscalizar a regularidade e a validade do acordo. A intervenção do juiz é, portanto, de mera fiscalização da legalidade do objecto da transacção e da qualidade das pessoas que nela intervieram.
É o art. 300º, n.º 3, do CPC que regula o âmbito desses poderes de fiscalização do juiz ao estabelecer que, “lavrado o termo ou junto o documento, examinar-se-á se, pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a confissão, desistência ou transacção é válida, e, no caso afirmativo, assim será declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos”.
A verdade é que o objecto da transacção judicial celebrada pelas partes não tem idoneidade negocial face ao disposto no art. 280º do CC. O seu objecto (divisão material dos prédios rústicos) é contra legem e, por isso, bem andou o Mmº Juiz ao não a homologar.
Se bem que a situação jurídica que serviu de fundamento ao pedido de fraccionamento seja a usucapião e ainda que este instituto tenha potencialidades para, uma vez comprovada judicialmente a materialidade que lhe está subjacente, poder prevalecer sobre a proibição imposta pelo art. 1376º, n.º 1, do CC, a verdade é que não houve, por parte do tribunal, um juízo valorativo sobre essa realidade substancial de que aquele depende.
A declaração feita pelos Réus no termo de transacção de que reconhecem na íntegra o peticionado pelos Autores, incluindo nessa declaração tão abrangente o pedido deduzido sob a alínea b) de reconhecimento do direito de propriedade dos Autores, por usucapião, dos prédios rústicos resultantes do fraccionamento – cfr. relatório – não pode, por si só, afastar a regra preceptiva do art. 1376º, n.º 1.
De facto, existindo uma norma legal que impede o fraccionamento de prédios rústicos, teria de ser o tribunal, no exercício do seu poder de conformação da realidade com as normas jurídicas aplicáveis, a debruçar-se, em sede de julgamento, sobre a verificação dos requisitos de que depende a usucapião, e sobre a eventual prevalência dessa forma de aquisição originária do direito real de propriedade sobre a proibição inserta na norma do art. 1376º, n.º 1.

Uma última nota:
Dizem os apelantes que da operação de fraccionamento resultaram não só prédios arvenses e de sequeiro, mas também prédios de regadio, em relação aos quais a lei impõe a área mínima de 0,5 ha.
Se é como dizem, deveriam ter indicado na petição quais eram esses prédios.
Para além de o não fazerem, não foi isso que deram a entender com o alegado no art. 25º da petição inicial.

O agravo não merece, portanto, provimento em relação à primeira e principal questão.

b)

O Mmº Juiz condenou as partes em 6 Uc’s de taxa de justiça.
O art. 16º, n.º 1, do CCJ, refere que a taxa de justiça em questões incidentais é fixada pelo juiz em função da sua complexidade, do valor da causa, do processado a que deu causa ou da sua natureza manifestamente dilatória, entre 1 Uc e 20 Uc.
O Mmº Juiz não justificou o valor de taxa de justiça aplicado, que nos parece exagerado.
Talvez o não fosse se tivesse sido indicada como razão dessa condenação uma situação de fraude processual para obtenção de um resultado proibido por lei, desde que essa fraude tivesse alguma correspondência com a realidade processual – art. 665º do CPC.
Mas não.
Por conseguinte, afigura-se-nos mais equilibrada, face ao desenvolvimento dos autos, a taxa de justiça de 2 Uc’s, a suportar, em partes iguais, por Autores e Réus.
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DECISÃO

Em conformidade com o exposto, concede-se parcial provimento ao agravo, reduzindo-se para 2 Uc’s a taxa de justiça devida pelo incidente suscitado pelas partes, e mantendo-se, quanto ao mais, o decidido pelo tribunal da 1ª instância.
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Custas pelos agravantes.
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PORTO, 07 de Novembro de 2006
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha