Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0451322
Nº Convencional: JTRP00035944
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
EXECUÇÃO
LETRA
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RP200405100451322
Data do Acordão: 05/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: Uma letra prescrita vale como título executivo, em benefício do exequente/sacador, credor originário do aceitante, tendo-se este confessado devedor da quantia titulada na letra, e aquele alegado no requerimento executivo a sua qualidade de credor, reportada à relação extracartular.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1 – B............. deduziu embargos de executado, por apenso à execução ordinária nº.../.., para pagamento de quantia certa, que, na comarca de ........., contra si instaurou, em 04.12.00, C.............
Para além de sustentar a incompetência, em razão do território, daquele Tribunal para os termos da execução, por ser competente, a tal título, a comarca de ............., deduziu as excepções peremptórias da prescrição da obrigação cambiária incorporada no título dado à execução, bem como do verificado pagamento da respectiva quantia, determinando a procedência de qualquer delas a extinção da sobredita execução.
Na respectiva contestação, o exequente – embargado pugnou pela improcedência de todas as mencionadas excepções, impugnando a correspondente e relevante factualidade alegada pelo embargante – executado, a que aditou a invocação de factos consubstanciadores de interrupção da prescrição, estando esta sujeita ao prazo ordinário previsto no CC (arts. 309º e segs.), uma vez que, conforme alegado no requerimento inicial da execução, ao aceitar a letra dada à execução, o executado se confessou devedor, para com o respectivo sacador, da quantia de Esc. 1.000.000$00.
Da decisão que julgou procedente a deduzida excepção da incompetência, em razão do território, da comarca de ............, em favor da de ............., foi interposto recurso de agravo, pelo exequente, vindo aquele a obter provimento, por douto acórdão deste Tribunal de Relação, de 14.01.02.
Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio a ser proferido (em 12.09.03) despacho saneador que, julgando procedente a deduzida excepção peremptória da prescrição da obrigação cambiária e tendo por inexistente a imprescindível causa de pedir, julgou nulo todo o processado, com a inerente extinção da respectiva execução.
Inconformado, apelou o embargado, visando a revogação da decisão recorrida (com a sua inerente absolvição, consequente da improcedência dos embargos) e a condenação do embargante em multa e indemnização ao embargado, por litigância de má fé.
Culminando as respectivas alegações, formulou as seguintes e relevantes conclusões:
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1ª - Por douto acórdão proferido nessa Relação, foi determinado que a acção executiva tramitasse pela comarca de .........., vedando ao embargante a possibilidade de invocar quaisquer excepções, seja de que natureza forem, por estarmos no domínio das relações mediatas;
2ª - Decorridos quase dois anos, veio o M.mo Juiz “a quo” proferir a sentença recorrida, julgando a obrigação cartular extinta, por prescrita, e absolvendo o executado da instância executiva, com o fundamento de que faltaria a causa de pedir e na consequente ineptidão da p.i.;
3ª - Considerou, para tanto, que o termo a quo da respectiva contagem se iniciara, em 30.09.95, julgando prescrita a obrigação cartular nesses precisos termos, sem conhecer das questões relacionadas com a excepção da interrupção alegada pelo exequente, na contestação dos embargos;
4ª - A verdade é que se impunha o prosseguimento da instância executiva, ainda que a obrigação cartular tivesse prescrito, face à causalidade de que se reveste a respectiva relação subjacente, materializada na carta junta à contestação dos embargos, a assumir foros de confissão da dívida, com força probatória plena. Desatendeu-se, pois, aos arts. 358º, nº2 e 458º, nº1, do CC;
5ª - Além disso, a referida carta – associada à promessa assumida na letra em causa, de pagar ao exequente a importância que a mesma titula – também acabou por interromper a prescrição da respectiva acção, como decorre do disposto no art. 325º, nº1, do CC;
6ª - Pelo que a sentença, também na parte em que julgou prescrita a obrigação cartular – com o fundamento de que o prazo de 3 anos se contava a partir de 30.09.95 – não pode manter-se, já porque, como se disse, a prescrição com base nesse fundamento fora interrompida, demitindo-se o embargante de a invocar posteriormente;
7ª - O entendimento jurisprudencial sobre esta matéria tem sido unânime, como pode ver-se do Assento de 08.05.36, cujo normativo vem consagrado no art. 70º da LU e do Assento de 12.07.62, que veio estabelecer que os prazos fixados no art. 70º da LU sobre letras de câmbio são de prescrição e, portanto, sujeitos a interrupção, nos termos do art. 552º do CC, hoje, 323º, 324º e 325º;
8ª - Para fundamentar a segunda parte da mesma decisão, truncou o M.mo Juiz uma passagem da “Acção Executiva”, de Lebre de Freitas, sem se ter apercebido de que a p.i. executiva, por sinal, até cumpria com as prescrições doutrinais desse mesmo autor, que não é, aliás, peregrino, na matéria;
9ª - Sendo quase unânime o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que “...a letra, como documento particular de promessa duma prestação que é, conserva, apesar de prescrita, a sua exequibilidade quanto à relação fundamental, não havendo razão alguma para lhe conferir menos exequibilidade do que a outro documento particular, designadamente de promessa de prestação ou reconhecimento de dívida (Cfr. obs. 50 da op. cit.);
10ª - Aliás, o mesmo autor referido na sentença recorrida, in op. cit., reconhece que “...a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime de reconhecimento da dívida (art. 458º, nº1, do CC) leva a admiti-lo como título executivo...”;
11ª - Incorrendo, assim, em contradição com os fundamentos e a matriz doutrinária de que partiu, acabou o M.mo Juiz por não atentar devidamente no requerimento executivo, não apreciando, nem valorando, por isso, todas as questões de que importava tomar conhecimento, incorrendo na prática das duas nulidades prescritas no art. 668º, nº1, als. c) e d), do CPC;
12ª - Na verdade, como se vê dos arts. 1º e 2º do req. in., o exequente não se limitou a alegar que era legítimo portador desta letra, tendo acautelado a relação subjacente e cumprido o requisito formal de referir ali a respectiva causa de pedir, ou seja, que o executado se confessou devedor de Esc. 1.000.000$00, subscrevendo a letra no lugar do aceite;
13ª - E, como se intui do art. 458º, nº1, do CC, aquela alegação preenche a referida exigência de alegação complementar, na medida em que “se alguém, por simples declaração unilateral prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida sem indicação da respectiva causa fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”;
14ª - Violou, por isso, a sentença recorrida as disposições combinadas dos arts. 358º, nº2, 325º, nº1, 326º, nº2, in fine, 311º, nº1 e 309º, todos do CC, com referência ao art. 71º da LULL, na medida em que, por um lado, conheceu de questão que não cumpria conhecer e, por outro, não conheceu das questões suscitadas pelo exequente;
15ª - Quer em relação à força interruptiva do documento junto à contestação dos embargos, quer relativamente á formulação da causa de pedir e à confissão mediatizada pelo referido documento, cometendo-se, pois, a nulidade prevista no art. 668º, nº1, al. d) do CPC, com referência ao disposto nos arts. 458º, nº1 do CC, 17, 70º e 71º, estes da LU;
16ª - Também o M.mo Juiz deixou de valorar a discrepância entre a carta que diz ter enviado ao exequente – onde pretende convencer “que já entregara em notas em Maio de 1995, a quantia de Esc. 1.140.000$00, correspondente ao valor da letra e juros de Março de 94 a Março de 95 – e uma outra, enviada ao endossante pelo próprio executado – com data de 96.03.21!!!... – onde lhe pede prazo para lhe pagar os juros de 95/96;
17ª - E nunca o exequente alterou a causa de pedir, limitando-se a impugnar o teor daquela carta, rotulando-a de estória ou conto do vigário, ao mesmo tempo que juntou aqueloutra, com vista, precisamente, a reforçar a “causa petendi” da p.i., qual seja, lembremos, a de o recorrido se confessar devedor da importância titulada na letra em questão (Cfr. Ac. da Rel. de Lisboa, de 18.12.79 – Bol. 299º/410 – e Ac. do STJ, de 28.04.94 – COL/STJ – 2º/69);
18ª - Em vez de julgar os embargos improcedentes e determinar o prosseguimento da execução, optou-se por absolver da instância o executado, premiando-lhe a má fé com que foi apanhado a litigar, quando antes o deveria ter condenado, em pesada multa e condigna indemnização, incluindo os honorários do signatário, nos termos dos arts. 456º e 457º do CPC, também desatendidos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2 – Com relevância para a apreciação e decisão do presente recurso, temos por provados os seguintes factos:
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a) – O executado – embargante aceitou a letra de câmbio que constitui fls. 3 dos autos de execução, no montante de Esc. 1.000.000$00, com vencimento em 30.09.95, e sacada por D............;
b) – Este último endossou a mencionada letra de câmbio ao exequente – embargado, C............;
c) – Este, por seu turno, deu a mesma à execução, nos autos apensos instaurados contra o referido aceitante, alegando, no art. 1º do respectivo requerimento inicial, que “Em 94.09.30, o executado confessou-se devedor, para com o pai do exequente, da quantia de Esc. 1.000.000$00”;
d) – O mesmo executado é autor do escrito constante de fls. 11, datado de 21.03.96 e endereçado ao sobredito D............., aí constando, designadamente: “Por falta de saúde, não me é possível a liquidação dos juros este mês, pedia o favor caso pudesse ser essa liquidação c/ agravamento para o próximo fim do mês de Abril, deposito-lhe na caixa” (...).
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3 – Sendo o âmbito e objecto do recurso delimitados (para além das meras razões de direito e das questões de oficioso conhecimento) pelas conclusões formuladas pelo recorrente – arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC (como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados) –, emergem como questões a apreciar e decidir, no âmbito da presente apelação:
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I – Saber se a obrigação exequenda se encontra, ou não, extinta por prescrição, o que contende com a apreciação da conexa questão da interrupção, ou não, do prazo de tal prescrição;
II – Na afirmativa quanto à inicial questão enunciada, saber se a execução se estriba em título executivo constituído por documento particular dotado de tal força, conforme previsto no art. 46º, al. c).
Vejamos:
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4 – I – Quanto à 1ª das enunciadas questões, não se colocam quaisquer dúvidas quanto à ocorrência da prescrição da obrigação cambiária incorporada na letra de câmbio dada à execução. Que é a única que, pelas razões que, adiante, se explicitarão, aqui se encontra em causa e cujo conhecimento (ao contrário do sustentado pelo apelante) não está vedado a este Tribunal. Por duas ordens de razões: a primeira, porque a correspondente excepção, de natureza peremptória, dizendo respeito à própria obrigação cambiária incorporada na letra dada à execução (com as consabidas características da autonomia, abstracção e literalidade), não decorre das relações pessoais do aceitante – embargante com o respectivo sacador, ou seja, não tem a respectiva invocação obviada pelo facto de os respectivos sujeitos cambiários e partes na acção se encontrarem no chamado domínio das relações (cambiárias) mediatas; a segunda, porque a correspondente asserção invocada pelo apelante e constante do anterior e douto aresto desta Relação não está abrangida pela força do caso julgado material formado por tal decisão, em relação à qual não constitui antecedente lógico e necessário, mas tão só uma complementar e secundária consideração jurídica (Cfr. art. 671º, nº1 e respectivas anotações, em “NOTAS ao CPC”, do Cons. Rodrigues Bastos).
Isto dito, e volvendo à sobredita questão, não consente a mesma qualquer tergiversação, patente como se mostra a ocorrência da questionada prescrição.
Com efeito, conforme art. 70º da L.U.L.L. (Lei Uniforme sobre Letras e Livranças), “Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento”. O que, no caso dos autos, determinaria que tal prescrição teria ocorrido, em 30.09.98 (Cfr., a propósito, o preceituado no art. 279º, al. c), do CC).
E, se considerada (o que temos por obviado pela sequente injunção constante do art. 71º da mesma L.U.L.L., na medida em que o destinatário da correspondente actuação do aceitante foi o sacador da letra e não o exequente – endossado) a interrupção do mencionado prazo, em consequência do facto constante de d) de 2 supra, ainda assim a referida prescrição teria, já, ocorrido, em 21.03.99 (Cfr. o aludido art. 279º, al. c), bem como o art. 326º do mesmo Cód.). Ou seja, muito antes da citação do executado e da própria instauração (em 04.12.00) da execução.
Sendo, pois, inquestionável a ocorrência da aludida prescrição.
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II – E a letra dada à execução não pode, no caso, ser havida como documento particular dotado de força executiva, conforme previsão constante da al. c) do art. 46º.
Assim sucederia, na realidade, nos termos e com o apoio doutrinal invocados pelo apelante e que nos dispensamos de repetir, se o executado tivesse sido demandado pelo sacador da letra, o qual, ao lado do aceitante – executado, é o outro sujeito da relação causal, fundamental ou subjacente à emissão de tal título de crédito. Sendo, em tal cenário, abarcado pelo domínio das chamadas relações (cambiárias) imediatas, sustentável que o executado, através da letra em que apôs o respectivo aceite, complementada e integrada com o alegado no art. 1º do requerimento executivo e com a presunção estabelecida no art. 458º, nº1, do CC, em benefício do declaratário (sacador da letra), reconheceu ser devedor a este da quantia de Esc. 1.000.000$00, constante da mesma letra.
Não assim, porém, no que concerne ao exequente – embargado, o qual, como já ficou assinalado, escapa ao sobredito domínio, movendo-se, tão só, no campo das denominadas relações (cambiárias) mediatas e dispondo apenas da legitimidade (e inerentes direitos) que lhe advém da sua qualidade de portador de tal título de crédito, em consequência do respectivo endosso por parte do sacador e originário portador do mesmo. Sendo, pois, totalmente estranho à respectiva convenção extracartular, que o mesmo é dizer à relação causal, fundamental ou subjacente à emissão da letra e vicissitudes com a mesma relacionadas. O que, inexoravelmente, impõe a conclusão de que, dispondo o exequente – endossado, unicamente, dos direitos para si emergentes dos termos literais do título de crédito dado à execução, não lhe é lícito – ao contrário do que, nos sobreditos termos, sucederia com o sacador e originário portador do mesmo – proclamar-se credor do aceitante de tal letra, para além do que lhe é autorizado pela – passe a redundância – literalidade da mesma, ou seja, o correspondente direito de natureza cambiária, que já se disse estar prescrito.
Aliás, a perfilhar-se diferente entendimento, estaria a admitir-se uma cessão de crédito com violação do disposto no art. 577º, nº1, do CC, a qual, em qualquer caso, seria ineficaz perante o aceitante – executado (art. 583º, nº1, do mesmo Cód.), para além de não abarcada pela literalidade e aparência da letra de câmbio dada à execução.
Diga-se, finalmente, que a posição que se deixa perfilhada, igualmente, se mostra defendida, designadamente, no Ac. do STJ, de 18.01.01 (Sousa Dinis) – COL/STJ – 1º/71 e no Ac. de 25.05.00 (Mário Fernandes), proferido na apelação nº 529/2000 – 3ª (Bol. Interno, nº 10/2000, págs. 42), outra não sendo, mesmo, a posição do Prof. Lebre de Freitas e que o apelante transcreve, no ponto em que o mesmo, igualmente, restringe a questionada exequibilidade ao domínio da relação fundamental.
Improcedem, assim, as conclusões formuladas pelo apelante, tanto mais que os autos não facultam elementos que permitam configurar litigância de má fé por parte do embargante – executado e que, por quanto ficou exposto, não enferma a decisão apelada de qualquer das nulidades que lhe são assacadas pelo recorrente.
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5 – Resumindo e concluindo:
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I – Prescrito o direito de acção cambiária, pode, ainda assim e atento o preceituado no art. 458º, nº1, do CC, servir a letra de título executivo, nos termos do art. 46º, al. c), do CPC, em execução instaurada pelo sacador – credor originário contra o respectivo aceitante que perante aquele se confessou devedor da respectiva quantia, com simultânea alegação deste facto no requerimento executivo;
II – Não assim, porém, em execução instaurada contra o aceitante pelo portador da mesma letra, para tanto legitimado em consequência de endosso efectuado por aquele credor originário.
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5 – Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, com a aduzida fundamentação, a douta decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
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Porto, 10 de Maio de 2004
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes
Rui de Sousa Pinto Ferreira