Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0726374
Nº Convencional: JTRP00040934
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
COMPOSSE
ESBULHO
VIOLÊNCIA
Nº do Documento: RP200801080726374
Data do Acordão: 01/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 261 - FLS. 136.
Área Temática: .
Sumário: I - Ao compossuidor, cabeça de casal em inventário para separação de meações, assiste o direito de instaurar acção de restituição.
II - Consubstancia acto de esbulho a actuação de um dos cônjuges que, na ausência e contra vontade do outro cônjuge, levou consigo para outra casa que passou a habitar bens que constituem recheio da casa do casal.
III - A violência pode ser dirigida apenas contra coisas mas, da respectiva actuação, deve resultar uma situação de coacção ou constrangimento físico ou moral para a vítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1.

B………., intentou contra C………., procedimento cautelar de restituição provisória da posse, ao abrigo do disposto nos artigos 393.º e seguintes do C.P.Civil.

Requerendo que, sem audiência prévia da requerida, se ordene que esta lhe restitua certos bens que constituíam o recheio da casa onde ele e a requerida moravam enquanto casal, como sejam roupas de cama, toalhas, roupas, máquina de lavar roupa, a mobília de quarto, metade do móvel de madeira da sala, parte do bar de madeira, seis cadeiras da mesa de jantar, todos os artigos de decoração, loiças e serviços de copos e pratos que se encontravam nos armários.
Para fundamentar tal pretensão, o requerente invoca:
Que tramitam autos de inventário apensos onde a aqui requerida é requerente e o aqui requerente exerce as funções de cabeça de casal e que tais bens se encontram ainda por partilhar.
Que a requerente levou tais coisas durante a sua ausência de casa e porque aquela decidiu sair da casa definitivamente e ir residir com outra pessoa com quem terá casado entretanto.
Que está desapossado dos identificados bens e afectado no seu direito de propriedade sobre os mesmos, constituindo tal desapossamento esbulho violento face ao decurso do processo de inventário e à vontade do requerente que eles se mantivessem lá por deles ser igualmente proprietário.

2.

Foi proferido despacho liminar que indeferiu a providência.
No entendimento que:
Os bens, enquanto coisas móveis não podem, enquanto a comunhão persistir, ter a natureza de "coisa alheia" em relação a qualquer dos cônjuges e, por isso, a sua retirada do local onde se encontram, contra a vontade do outro cônjuge, não preenche em relação ao cônjuge que fez a retirada o elemento constitutivo do tipo legal do crime de furto "subtracção de coisa móvel alheia".
Inexiste o requisito esbulho já que também a requerida exercia actos de posse relativamente a tais bens, por serem comuns, limitando-se esta a levar tais bens consigo, agora que saiu de casa (numa situação que poderia enquadrar-se no disposto no artigo 1347.º do C.P.Civil), sendo ela própria uma possuidora de tais bens (veja-se o consagrado no artigo 1286.º, do C.Civil, principalmente o seu n.º 2).
Inexiste o requisito violência, pois que o requerente limita-se a referir que existe um processo de inventário e que tal retirada dos bens da casa que foi a morada do casal aconteceu contra a sua vontade o que é manifestamente insuficiente para caracterizar qualquer tipo de violência, física, moral ou material.
3.
Inconformado recorreu o requerente.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.º- A violência que tem que caracterizar o esbulho para o efeito da restituição provisória de posse pode ser a que é exercida sobre as coisas que se encontram ligadas á pessoa do possuidor dela resultando uma situação de constrangimento moral.- vide: a propósito: Ac. S.T.J. de 25/11/1998 in www.dgsi.pt.
2.º- Haverá violência contra coisas sempre que atingem ou ponham em risco valores de evidente relevância patrimonial ou mesmo moral.- vide: citado acórdão.
3.º- A violência, no caso dos autos, consubstancia-se nos factos concretos referenciados no artigo 2º - a máquina de lavar era um bem que o Requerente havia comentado com a Requerida que lhe daria jeito e estaria interessada na sua adjudicação-, no artigo 3º - quanto ao facto de ter o recorrente ter sempre demonstrado a sua predilecção pelo móvel bar e demonstrado pretender a sua adjudicação-; no artigo 8º e 9º e também nos artigos 1º, 4º, 6º e 8º (retirar os bens na ausência do Requerente).
4.º- Da violência (desapossamento por retirada de bens na ausência do Requerente e sem o seu acordo) que foi exercida sobre os bens móveis que constituem o património do casal e que se encontravam ligadas á pessoa do Recorrente por este já ter demonstrado á Requerida a sua preferência e intenção de sobre eles licitar ou acordar na sua adjudicação, resulta, inevitavelmente, um constrangimento para o Requerente em licitar sobre os mesmos bens.
5.º- O direito a proteger é o direito do Requerente a ver concretizada a restituição/reconstituição dos bens móveis de que ficou desapossado face á possibilidade legal de sobre eles licitar ou acordar na adjudicação.
6.º- Por força do acto da Requerida, o Requerente ficou privado não apenas da posse dos bens móveis mas da possibilidade de livremente licitar neles ou acordar na adjudicação dos mesmos á sua pessoa pois não tem garantias de que os mesmos, no caso, lhe venham a ser restituídos (a máquina de lavar) e/ou completados (móvel bar com as prateleiras e portas que a Requerida levou), a metade do móvel da sala, as 6 cadeiras que completavam a mesa de jantar).
7.º- A vidência a que se reporta o artigo 383º do Código de Processo Civil abarca actos que se dirigem á pessoa do possuidor como á que é feita através de ataque aos seus bens ou direitos legalmente protegidos.
8.º- Sendo certo que se o esbulho abarca actos que implicam a privação da posse e que esta posse era exercida até á data de saída da casa da Requerida, por ambos, Requerente e Requerida, o certo é que o Recorrente ficou privado da possibilidade de continuar a exercer a posse que detinha porque não pode exercer a posse ou fruição de bens incompletos e cuja funcionalidade foi retirada por desapossamento dos seus elementos (não pode usar a mesa da sala porque não tem cadeiras, nem o móvel bar porque dele foram tiradas as prateleiras, as louças e os copos) como pelo facto de ter ficado constrangido a adquirir a sua propriedade por se afigurar difícil, face ao comportamento habitual da Requerida, a voltar a ter a posse dos mesmos.
9.º- Desconhecendo o Recorrente de que outro modo poderá salvaguardar o seu direito a licitar livremente em bens com a garantia da sua restituição.
10.º- Deste modo a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1279º e 12161º, 2 do Código Civil bem como os artigos 393º e 394º do Código de Processo Civil.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(In)verificação dos requisitos da restituição provisória da posse.

5.

Os factos a considerar são os emergentes do relatório supra.

6.

Apreciando.

Estatui o artº 393º do CPC:
«No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente á sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência».

Os requisitos ou elementos constitutivos desta providência são, assim, a posse, o esbulho e a violência.

Da posse.
Nos termos do artº 1251º do C.Civil, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
Independentemente da opção que se adopte sobre a concepção da posse - subjectiva: direito real provisório ou objectiva: situação de facto juridicamente protegida – que o legislador consagrou (ainda que a maioria da doutrina e jurisprudência apontem naquele sentido por força dos dois elementos: corpus e animus sibi habendi, que integram o conceito de posse) - certo é que no que para a presente providência interessa, basta atentar que a posse não foi encarada como um direito real, mas apenas como uma situação de facto á qual a lei atribui protecção jurídica justificada pela aparência de um direito real de gozo que de tal situação emerge.
Assim a tutela possessória assenta num juízo provisório no que concerne à aferição do direito, juízo esse condicionado á não prova ulterior, pelo requerido, de um direito real de gozo ou de melhor posse, cedendo perante esta prova – cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 4º, 29/30.
A posse é protegida apenas por se presumir que, por detrás dela, existe na titularidade do possuidor o direito real correspondente - cfr. Ac. STJ de 8.05.2001, in CJ/STJ, 2001, tomo II, pág.57.
Por outro lado há a considerar que cada um dos compossuidores, seja qual for a parte que lhe cabe, pode usar contra terceiros os meios possessórios, sendo que mas relações internas apenas não é permitida aos compossuidores a acção de manutenção, o que, a contrario sensu, permite a conclusão no sentido de que lhes assiste o direito de instaurarem acção de restituição – artº 1286 do CC.
Acresce que apesar de não ser legítimo ao cabeça de casal invocar a posse exercida sobra a totalidade da herança indivisa, tal não afasta a sua incidência sobre cada uma das coisas que a integram, o que basta para lhe atribuir poderes atinentes á tutela possessória, nos termos do artº 2088º do CC.
O que vale por dizer que, no caso vertente e contrariamente ao defendido na decisão recorrida, o requerente, como compossuidor e cabeça de casal no inventário para separação de meações tem a posse bastante para fundamentar a sua restituição provisória.

Do esbulho.
Ainda que não seja fácil definir a linha delimitadora entre a mera perturbação - que apenas justifica a acção de manutenção – e o esbulho – que fundamenta a acção de restituição -, tem-se entendido que este consiste, mediante qualquer forma de usurpação, na privação total ou parcial, contra a vontade do possuidor, do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar – cfr. Manuel Rodrigues, in “A Posse”, pág. 363 e Abrantes Geraldes, ob.cit. p.43.
Pelo esbulho, o usurpador não permite que o possuidor actue sobre a coisa que até então possuía, dela ficando o último desapossado e impedido de exercer toda e qualquer fruição.
No caso vertente e perante os factos alegados pelo requerente conclui-se que apenas este - que já não a requerida que tinha saído para ir viver com outra pessoa - estava a habitar a anterior casa de morada de família e a fruir dos bens que integram o respectivo recheio.
Assim e considerando que tramita processo de inventário para a separação de meações e que o recorrente ali assume a qualidade de cabeça de casal, sobre o qual impendem as funções de administração e conservação dos bens a partilhar, tem de concluir-se que a actuação da requerida consubstancia um acto de esbulho, senão dos mais claros, evidentes e censuráveis, pelo menos com características bastantes para fundamentar a providência.

Da violência.
Nos termos do artº 1279º do CC.
«…o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente á sua posse, sem audiência do esbulhador».
Como é consabido persistem ainda na doutrina e jurisprudência duas posições quanto a este requisito.
Para uns – já minoritários – a violência – física ou moral - deve ser necessariamente exercida contra a pessoa do possuidor.
Coacção física é aquela em que através do recurso à força física, se anula e exclui totalmente a liberdade exterior do coacto, conduzindo à completa ausência de vontade do mesmo e colocando-o numa situação de impossibilidade material de agir. Ela supõe a completa ausência de vontade por parte daquele a quem a posse foi usurpada
Coacção moral é a conseguida mediante ameaça provocadora de inibição da capacidade de reacção do coagido, através de um processo psicológico obstrutivo, levando-o a deixar o campo livre à actuação do agente, por receio de que algum mal, que poderá incidir sobre a pessoa, a honra ou a fazenda do próprio ou de terceiro, lhe seja infligido. Estando afastada a ameaça lícita (exercício normal de um direito) – cfr. P. Lima e A. Varela, in “C.Civil. Anotado”, 1972,III, pág.23.
Esta tese restritiva pode levar a resultados irrazoáveis e iníquos, bastando atentar em situações como a de um senhorio que, pela acção directa e com arrombamento de portas, impede o arrendatário de aceder ao locado, sendo a este vedado o acesso à providência apenas porque tal acção violenta não foi dirigida directamente contra a sua pessoa.
Assim, para outros – largamente maioritários - a violência que justifica a providência pode também ou apenas ser dirigida contra coisas.
Tal dimana, desde logo do disposto no artº 1261º nº2 C.Civil que considera violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física ou de coacção moral nos termos do artº 255º.
Ora a coacção moral, para a hipótese de esbulho, ocorre, segundo o disposto no artº 255º nºs 1 e 2 do C.Civil, quando o possuidor da coisa é forçado à sua privação «pelo receio de um mal de que (…) foi ilicitamente ameaçado (…)», ameaça de mal essa que: «tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda» daquele ou de terceiro.
Aderimos a este entendimento.
Porém há a considerar que não é qualquer acto de agressão patrimonial ou material que pode consubstanciar o requisito violência.
Mas apenas quando de tal actuação resulte uma situação de coacção ou de constrangimento físico ou moral, isto é, quando com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente a vítima da mesma, constrangendo-o psicologicamente de forma a que, através do cerceamento ou limitação da liberdade de determinação do desapossado, o coloque numa situação de incapacidade de reagir perante o acto de desapossamento – cfr, entre outros, Orlando de Carvalho, in RLJ, 122º, p.293 e Acs. da Relação de Lisboa de 12.07.2006, dgsi.pt, p.4931/2006-7 e da Relação do Porto de 16.10.2006, p.0655160; 21.12.2006, p.0636585 e 30.10.2007, p.0725016.
Efectivamente e como se expende no aresto citado de 16.10.2006, a utilização do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, pela diminuição de garantias de defesa do requerido, o qual não é citado previamente à decisão, e pela desnecessidade de existência de qualquer prejuízo do requerente, só deve ser permitida em casos em que a violência, não obstante apenas directamente incidente sobre coisas, se reflicta, mediatamente, na pessoa do desapossado, nos termos sobreditos.
Sendo que se tal não se verificar e nas situações em que só coisas foram violentadas, sem qualquer constrangimento de pessoas, revela-se suficiente a possibilidade de se utilizar o procedimento cautelar comum, para se obter a restituição provisória do bem ocupado, nos termos do artº 395º do C.P.C.
Ou, ainda, o recurso às providências cautelares não especificadas, nos termos do artº 381º, nº 1, em que além da possibilidade de contraditório, se exige a prova de que existe um fundado receio de que a demora da respectiva acção (acção de restituição da posse) causará ao requerente lesões graves e de difícil reparação.

No caso sub júdice e conforme ressumbra dos factos alegados pelo requerente, nada nos mesmos nos permite concluir que a requerida tenha retirado os objectos da casa com violência. Nem com violência contra a sua pessoa, quer física, quer moral. Nem com violência contra as coisas. Pois que não alegando o requerente que a demandada tenha forçado, vg. por arrombamento da porta, a entrada em casa, fica a convicção – alicerçada ainda no facto de a habitação ter sido casa de morada de família - que ela tinha a chave desta e nela entrou naturalmente. E mesmo que esta violência pudesse ter existido sempre ficaria por apurar – porque, outrossim inexistiu a alegação de factos neste sentido – se tal actuação forçada e violenta foi precedida ou dela resultou posterior constrangimento ou coacção da vontade e autodeterminação do requerente.

Nem colhendo a argumentação do recorrente que, com tal actuação da requerida, ele ficou impossibilitado de adquirir a propriedade dos bens retirados pela requerida, na medida em que ficou privado não apenas da posse dos mesmos como da possibilidade de livremente neles licitar ou acordar na adjudicação á sua pessoa.
Pois que nada disto lhe está quedo ou vedado.
Efectivamente e desde logo por força do artº 1347º do CPC – e se previamente apurada a existência e a qualidade de bens comuns do casal – podem e devem eles ser partilhados e adjudicados – mesmo com recurso a licitação - independentemente da pessoa em poder de quem se encontrem.
E podendo eles ser restituídos ao património a partilhar ou ao respectivo licitante pelos meios compulsórios adequados e que podem incluir a restituição provisória da posse, se os seus ou elementos constitutivos estiverem presentes, o que, in casu, todavia não se verifica, por falta do requisito “violência”.

7.

Deliberação.

Termos em que, e ainda que com fundamentos parcialmente diversos dos aduzidos na decisão recorrida, se acorda negar provimento ao recurso e confirmar esta decisão.

Custas pelo recorrente.

Porto, 2008.01.08.
Carlos António Paula Moreira
Maria da Graça Pereira Marques Mira
António Guerra Banha