Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0531454
Nº Convencional: JTRP00038148
Relator: JOSÉ FERRAZ
Descritores: REFORMA DE LETRA
MÚTUO
SIMULAÇÃO
Nº do Documento: RP200506020531454
Data do Acordão: 06/02/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I- A reforma da livrança envolve a substituição de uma livrança vencida e não paga por outra de igual valor ou inferior, para novo prazo de vencimento, não determinando, como regra, a novação da obrigação incorporada, mas simples datio pro solvendo. Também, no que concerne à relação causal, esta não se modifica.
II- O facto de um banco exigir um aval a uma librança subscrita por um mutuário de empréstimo concedido não implica necessariamente que o negócio seja simulado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. A B...................., S.A., instaurou execução para pagamento de quantia certa, de Esc. 2 333 412$00/€11639,01, contra:
1º - C...............
2º - D...............,
3º - E............... .
Para tanto diz-se possuidora de uma livrança, no valor de Esc. 2 050 000$, subscrita pela primeira executada e avalizada pelos demais.
Veio a executada C............. apresentar embargos de executado.
Alega que a sua assinatura na livrança constituiu um favor aos demais executados, que lhe declararam ser apenas da sua inteira responsabilidade o pagamento da livrança e encargos com ela relacionados, os quais actuaram em conluio com o director do banco, F................., para obter financiamento em condições especiais, envolvendo nesse esquema engendrado a embargante, que serviu de “testa de ferro” para a obtenção do financiamento por aqueles.
Que se trata de um negócio simulado pois nem a embargante quis qualquer financiamento do B........... nem este quis fazer àquela qualquer financiamento, bem sabendo o B..........., pelo seu representante (F.............), que as pessoas a quem emprestava o dinheiro eram os executados/avalistas, pelo que o negócio é nulo.
Sob a capa do negócio simulado celebrado entre a Oponente e o Banco existia um outro que as partes quiseram realizar, entre o Banco e os (restantes) executados, beneficiários do dinheiro correspondente ao valor da livrança subscrita pela Oponente, de que a dada à execução é reforma.
Termina a pedir a procedência da oposição, decretando-se a nulidade do título dado á execução, por expressar um negócio simulado, absolvendo-se aquela do pedido executório e declarar-se existente e válido o negócio dissimulado celebrado entre o B......... e os executados/avalistas.

Em contestação, o Banco exequente negando a factualidade narrada pela Embargante e ou a interpretação por esta à mesma atribuída e, bem assim, que a livrança exequenda não padece de qualquer nulidade, conclui a pedir a improcedência dos embargos.

II. Julgada válida a instância e seleccionada a matéria de facto, realizou-se a audiência de julgamento, proferindo-se seguidamente sentença.
Por esta foram os embargos julgados improcedentes.

III. Inconformada com a douta sentença, dela interpôs recurso a embargante que encerrou as suas alegações, concluindo:
“1. Os items 3, 4, 5 e 19 deveriam ter sido dados como provados face ao documento da autoria do Embargado B..........., junto aos autos e que contém a sua queixa crime apresentada no Tribunal Judicial de Matosinhos.
2. Da conjugação dos items 3, 4, 5 e 19 com a matéria dada como provada, resulta que o B........, através do seu representante – F................. – associado aos E........... e D............, urdiram um plano para receberem o valor da livrança subscrita pela Recorrente em 23.10.1995, que deu origem à que agora foi dada em execução, fazendo passar o referido valor pela conta da recorrente, que nunca o levantou ou dele usufruiu, apenas e só porque esta tinha a sua ficha bancária limpa de incidentes.
3. E assim, o dinheiro que na declaração resultante do título pareceria mutuado à recorrente, foi entregue aos ditos E............. e D............., com a colaboração e total conhecimento de F.............., enquanto representante do B.............
4. Nunca a Recorrente quis tomar de empréstimo o valor constante do título, nem o B.......... lhe pretendeu mutuar o referido valor, antes usaram o artifício de interpor aquela na operação, apenas porque a mesma tinha uma história bancária sem manchas ou incidentes.
5. Esta operação enganosa e divergente com a vontade real que seria a de por o valor à disposição do E......... e D..........., (e no entender do B.......... do próprio seu representante – F...............), tinha como objectivo, furar as exigências bancárias de credibilidade que estes já haviam perdido e com isso, enganar os beneficiários ou prejudicados finais da actividade do B.........., os accionistas.
6. Na perspectiva da interposição da recorrente, preparada pelos reais intervenientes do negócio verdadeiro, o B........... e os E............ e D............, há uma simulação relativa, que agora gera a produção dos efeitos do negócio nos intervenientes verdadeiros, eximindo-se a interposta.
7. E, na versão dos B.............. exposta na queixa-crime de Matosinhos, constante dos autos, a simulação é absoluta, porque daí decorre que o representante do B........ também seria o beneficiário do valor do mútuo.
8. Em qualquer circunstância, por força dos artigos 240º/1 e 2, ou 241º do Cód. Civil, o negócio jurídico a que se reporta o título dado à execução é nulo, pelo que não pode sustentar, pelo que não pode sustentar a execução contra a Embargante, que deve ser nesta absolvida do pedido.

Termos em que se fará JUSTIÇA”.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

IV. Tendo em consideração que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, não podendo tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não se que se trate de questões do conhecimento oficioso (arts. 684º, nº 3, e 690º, ns. 1 e 3, do C.P.C.) e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu objecto delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, são as seguintes as questões a decidir:
-apreciação da matéria de facto no que respeita aos pontos 3, 4, 5 e 19;
-nulidade do título dado à execução;
-se o negócio que determinou a subscrição é nulo por simulação.

V. São os seguintes os factos que vêm provados na sentença recorrida:
1) Na execução a que os presentes autos estão apensos foi dado à execução o instrumento de livrança, com a importância inscrita de Esc. 2.050.000$00, com data de 97/03/11 e data de vencimento de 97/04/11, donde consta no local destinado a valor “Valor recebido para crédito conta D.O. Reforma da livrança de Esc. 2.100.000$00 vencida em 11.11.96; consta ainda no local destinado ao nome do subscritor C..............., e no verso da livrança duas assinaturas, ambas por baixo da expressão “dou aval à subscritora”; tudo conforme doc. de fls. 6 da execução que aqui se dá integralmente por reproduzido.(A)
2) Existe em nome da embargante na agência do B.......... de .........., V. N. de Gaia, uma conta bancária com o nº. 2002447.001.(B)
3) O Sr. F.............. foi um director bancário da embargada.(C)
4) A embargante assinou o doc. junto a fls. 13 que aqui se dá integralmente por reproduzido.(D)
5) A livrança referida em 1) é reforma de uma outra.(E)
6) O B.......... não aceitou a reforma seguinte.(F)
7) Até Dezembro de 1995 a embargante foi empregada de uma sociedade denominada “G............., Lda.”(1)
8) Alegando dificuldades em obter crédito e necessidade de obter meios económicos para sustentar os seus negócios, os sócios dessa sociedade apelaram à colaboração da embargante.(2)
9) A embargante assinou a abertura de conta e a livrança.(8)
10) Em 23/10/95 os executados D.......... e E........... assinavam a carta junta a fls. 12 que aqui se dá integralmente por reproduzida.(9)
11) Nessa data a embargante e os demais executados, com o F............., subscreveram uma livrança de Esc. 3.000.000$00 que foi levada a desconto na conta referida em 2).(10)
12) De onde o D............ levantou o dinheiro ali depositado pelo banco.(11)
13) A embargante nunca emitiu um cheque, depositou ou levantou dinheiro da conta referida em 2).(13)
14) O F.............. agiu sempre como representante do B......... .(17)
15) A embargante não beneficiou do dinheiro da livrança dada à execução.(18)
16) O F.............. sabia que o dinheiro emprestado e inscrito na livrança se destinava aos demais executados.(19)

VI. 1) È pretensão da recorrente que às questões 3, 4, 5 e 19 da base instrutória seja respondido “provado”, em contrário da decisão do tribunal recorrido que respondeu “não provado” às questões 3 a 5 e restritivamente ao item 19.
A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada nas situações previstas no artigo 712º do CPC, nomeadamente se “do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa (al. a)) os “elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas” (al. b) do nº 1 desse preceito).
Esta situação prevista na al. b) está relacionada com o valor legal das provas. Existindo elementos de prova que forneçam prova plena de determinado facto, impõe-se que este se considere provado, não podendo ser outra a decisão com base noutras provas – v.g., documento autêntico que faça prova plena de determinado facto e confissão da parte).
A discordância da recorrente assenta exclusivamente no documento que consta de fls. 88 a 124 do processo e que constitui uma “queixa crime” apresentada pelo B......./embargado, junto da Polícia Judiciária do Porto, em que denuncia os avalistas da livrança dada à execução e F.................., na sequência de processo disciplinar instaurado pelo B.......... a esse seu ex.funcionário, imputando-lhes a prática de um conjunto de factos que, no seu entender indiciariam associação criminosa e burla agravada.
Pergunta-se naqueles “quesitos” cujas respostas pretende sejam “provado”:
3 – Alegando que o F.............. seria o director bancário que aprovaria o crédito, o qual frequentava o escritório dos referidos sócios e que se associara com eles para fazer negócios?
4 – O F.............. apresentou-se à embargantes através da agência do B........... de Coimbrões confirmando que trataria de tudo e que nenhum problema haveria para a embargante?
5 – E assegurou ainda à embargante que nenhum risco haveria para a mesma com a subscrição da livrança?
19 - O B..........., através do F............., sabia que as pessoas a quem o banco estava a emprestar o dinheiro inscrito na livrança era aos demais executados?
Segundo a acta de julgamento, sobre as questões em causa foi produzida outra prova (por testemunhas), além do que consta do documento em causa, sendo que este documento nem é mencionado nos fundamentos que motivaram a convicção do julgador de 1ª instância; da fundamentação exposta está arredado esse documento.
Não se dispõe, pois, de todos os elementos de prova que serviram de base à decisão de facto impugnada, de forma a poder-se ajuizar dos fundamentos, no conjunto da prova produzida, para modificar a decisão, a não ser que esse documento provasse plenamente os factos perguntados, de modo a não poder ser afastado por outras provas, o que não acontece com a natureza e força probatória do documento.
Esse documento não basta como prova suficiente para se alterar a decisão de facto quanto aos pontos 3 a 5 da base instrutória, não impõe, em oposição a outras provas, determinada resposta a essas questões.
Tal documento escrito reveste a natureza de documento particular (artigo 363º do CC) que não vê o seu valor probatório abrangido pela norma do artigo 376º do CC. Constitui um elemento de prova sujeito a livre apreciação do tribunal, que deve ser valorado em conjunto com as demais provas produzidas e não isoladamente para motivar, só por si, concreta decisão a este ou aquele item da base instrutória.
Trata-se de documento subscrito por advogado, no qual o banco não faz qualquer declaração negocial perante a ou à embargante (ou aos denunciados), limitando-se a descrever um conjunto de factos, que concluiu demonstrados em processo disciplinar que instaurou ao seu funcionário e que imputa aos denunciados para serem sujeitos a investigação em processo crime.
Nele não se descrevem factos pessoais, antes se imputam determinadas condutas a terceiras pessoas que não vieram sequer a ser provados no processo- crime (findo por arquivamento nos termos do artigo 277º do Cód. Proc. Penal). O Banco limita-se a dar notícia (a terceiro) de factos que entende constituírem crime, os quais não tem sequer como do seu conhecimento pessoal, mas averiguados por provas recolhidas em processo disciplinar. Não basta esse documento para, por si só, modificar a decisão de facto. Os “factos” aí descritos não podem ser tidos como confissão de qualquer facto desfavorável ao embargado (cfr. artigo 352º do CC), factos que não lhe respeitam, para valorar, como tal, neste processo. Nessa participação o Banco nada confessa que lhe possa ser desfavorável e possa favorecer a aqui recorrente.
Aliás, das passagens desse documento mencionados pela recorrente como sendo motivo bastante para alteração da decisão de facto, verificamos que de forma algum bastam para essa alteração (a que devem presidir razões ponderosas, com alguma cautela do tribunal de recurso). Tal acontece com os pontos os pontos 3 (fls. 2 desse documento) que apenas se relaciona com as funções e categoria do aludido F............., 4 (fls. 9/10), pois as cartas que aí se afirmam nem têm como origem a embargante, 8 e 9 (fls. 11), em que referem factos não relacionados com a embargante mas com outros “clientes” do banco, 15 (fls. 13) em que apenas se referem os balcões bancários na dependência desse ex.funcionário, 5, 6 e 9 (fls. 19) que nada têm a ver com a embargante mas com outro “cliente” do banco, nenhuma referência aí constando sequer que se tratasse de idêntico procedimento e são “factos” situados em alturas (1997) completamente diferentes daquelas descritas pela recorrente para os factos que lhe respeitam, 13 (fls. 20) que se refere ao mesmo cliente que não a recorrente, o mesmo acontecendo com o ponto 24 (fls. 22), ponto 1 (fls. 31) em que se afirma “confissão” do F............... ter concedido o crédito de 2 300 contos que não se destinou à cliente (a recorrente) – segundo diz - mas que se destinava aos demais executados/avalistas e a si próprio, não obstante o banco afirmar nesse documento que o crédito concedido à “cliente” foi concretizado por desconto de uma letra de 3 000 contos (fls. 33 desse documento). Quanto ao modo da abordagem da recorrente pelos coexecutados/avalistas (e é desse contacto e do seu modo que trata o quesito 3)) nada se retira dessas passagens ou outras do documento como também se não extrai o modo como o F............ se apresentou à recorrente para a “convencer” da inexistência de riscos na subscrição cambiária ou do desconto a que (ao menos formalmente) procedeu (e é sobre esses contactos que versam os items 4 e 5 da base instrutória). Daí que entendemos que o documento em causa não constitui prova bastante para, por si, motivar a modificação da matéria de facto nos termos requeridos às questões 3, 4 e 5 da base instrutória. O mesmo sucede com o facto 19, o que aliás é até contrariado pelo teor do documento, do que decorre que a embargada apenas teria tomado conhecimento dos factos denunciados (nomeadamente do destino final do dinheiro emprestado) na sequência da recolha de prova no processo disciplinar instaurado ao F................, como decorre do descrito a fls. 3 e 4 desse documento. Porém, sem controvérsia, o F.................. era um director do banco, responsável por uma zona, um conjunto de agências, com poderes delegados para a prática de uma gama de actos que incluíam a aprovação de empréstimos até certo montante (o que também resulta do teor do citado documento – queixa crime). Por outro lado, resulta da resposta ao ponto 14 da base instrutória que, no negócio com a embargante, o referido F............ agiu sempre como representante do banco, pelo que sendo do conhecimento deste o que consta da resposta ao ponto 19 da base instrutória, e não estando o negócio fora do seu leque funcional ao serviço do banco, não podia o conhecimento que emana da resposta ao “quesito” 19 deixar de ser reportado ao próprio banco, mas apenas no restrito da resposta atribuída ou seja, o facto 16) passa a ter a redacção “O B..........., através do F............., sabia que o dinheiro emprestado e inscrito na livrança se destinava aos demais executados”. No restante mantém-se a decisão da matéria de facto.

VII. Diz a embargante que a livrança exequenda formaliza um mútuo viciado por simulação, que deve ser classificado como nulo.
A livrança que “formalizaria” esse negócio seria uma livrança inicial (que se diz – não consta cópia do processo – ter o valor de 3 000 000$00). Livrança essa que terá sido sucessivamente reformada, com pagamentos parciais, sendo uma das reformas a livrança dada à execução, no valor de 2 050 000$00.
A livrança exequenda consta, por certidão, a fls. 362 e verso deste processo, não revelando os factos provados os motivos que deram origem à reforma.
A livrança é um título à ordem, sujeito às formalidades previstas no artigo 75º da LULL, que incorpora uma promessa de pagamento de determinada importância em certa data. O emitente compromete-se a, na data mencionada no título, pagar a quantia nela inscrita. Trata-se de um título literal e formal, que incorpora uma obrigação literal e independente da que motiva a subscrição (abstracta). A livrança, como título cambiário, só é nula se lhe faltar algum requisito essencial dos previstos na citada norma para valer como livrança, falta que determinaria a sua nulidade como título cambiário, deixando de ter o valor de livrança.
A simples análise do documento permite afirmar que contem todos os requisitos de forma exigidos pela LULL para valer como livrança, do que não decorre necessariamente a inexistência de fundamento para a recorrente se opor à exigência do crédito incorporado.
Mas a livrança não é nula.

VIII. O negócio ou obrigação subjacente à emissão cartular.
A livrança exequenda constitui reforma de outra, como dela consta.
Não se tem por apurado a razão que presidiu à reforma, substituição da anterior letra pela actual, com pagamento parcial ou não do capital da reformada. Normalmente, a reforma tem por finalidade deferir o pagamento da obrigação da livrança renovada, por dificuldades de cumprimento do obrigado cambiário, haja ou não pagamento parcial.
Afirma a recorrente que a livrança título executivo constitui a última reforma de uma livrança inicial de 3000 000$00, que a mesma descontou. Não se provou que a livrança exequenda seja a última das reformas da livrança inicial descontada, mas dos factos provados pode retirar-se que teve origem numa inicial livrança de 3 000 000$ (pontos 9, 10 e 11 da matéria de facto e doc. de fls. 12), que foi sendo sucessivamente reformada.
A reforma, sem declaração expressa, não importa normalmente novação da obrigação nem alteração da relação subjacente que presidiu à emissão do título reformado. Como refere o Ac. STJ, de 07/10/03 (em ITIJ/net, proc. 03A2320) “a reforma de letra não implica a multiplicação efectiva da obrigação que determinou a emissão do título, referindo-se a letra primitiva e a letra renovada à mesma relação subjacente e à satisfação de um único interesse patrimonial. Nem implica a novação da obrigação cambiária incorporada no título primitivo, se não houve vontade manifestada nos termos do artº. 859º do C.Civil”.
A reforma da livrança envolve a substituição de uma livrança vencida e não paga por outra de igual valor ou inferior, para novo prazo de vencimento, não determinando, como regra, a novação da obrigação incorporada, mas simples datio pro solvendo. Também, no que concerne à relação causal, esta não se modifica.
Apesar da livrança subscrita pela recorrente constituir reforma de outra anterior, a relação fundamental que motivou aquela de 3 000 000$00 mantém-se e é a essa relação que a embargante apela como fundamento da sua pretensão.
A relação cartular é independente da causa que lhe dá origem, da que constitui o motivo da subscrição cambiária, da relação fundamental, que pode assumir diversas figuras jurídicas. A obrigação cambiária é abstracta, não se prende nem depende da causa que motivou a emissão do título. Por isso, e em regra, as pessoas accionadas por via dessa obrigação não podem opor ao portador da letra/livrança as excepções fundadas nas suas relações pessoais com o sacador ou portadores anteriores (arts. 17º e 77º da LULL). Tal não sucede nas relações imediatas, em que entre dois signatários não se interpõe qualquer outro ou em que sujeitos da relação cambiária são concomitantemente os sujeitos da relação causal. Neste caso como que desaparece a abstracção podendo fundar-se a defesa nas excepções emergentes da relação causal. Nessa situação se encontram recorrente e recorrida, querendo e podendo aquela opor a esta as excepções baseadas no negócio subjacente, o mútuo que afirma nulo.
A relação causal é, na configuração da lide, um mútuo bancário celebrado entre o B............ e a embargante, sob a forma de desconto da livrança e o respectivo produto creditado na conta aberta pela recorrente para o efeito, desconto esse que se traduz na operação pela qual o banco mutua fundos contra a entrega de papel comercial, deduzindo (descontando) normalmente o valor dos juros a cobrar pela operação.
Alega a embargante que o mútuo é nulo por simulação, em que interveio o B..........., através do seu representante, F............., e os co-executados e isto porque “sob a capa do negócio simulado celebrado entre a Oponente e o B........... existia outro que as partes quiseram realizar, entre o banco e os executados”, ou seja, “o B............ celebrou o empréstimo titulado pela livrança subscrita pela Oponente com esta, mas queria celebrá-lo com os executados” (arts. 57 e 58 da petição de embargos).
Preceitua o artigo 240º do CCivil:
1.Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declaratário, o negócio diz-se simulado
2.O negócio simulado é nulo.
Por outro lado, quanto à simulação relativa, prescreve o nº 1 do artigo 241º do CC, que “quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem simulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado”.
Entende-se por simulação o acordo entre o declarante e o declaratário, no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e no intuito de enganarem terceiros.
Assim, à simulação importa a verificação dos requisitos
- divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada,
- acordo simulatório entre declarante e declaratário, donde procede a intencionalidade da divergência e
- intenção de enganar terceiros (vise-se ou não o prejuízo de outrem) – ver Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, 169-179, Mota Pinto, Teoria Geral, 2ª Ed., 470, L. Carvalho Fernandes, Teoria Geral, II, 280, P. Lima/A.Varela, CCAnotado, I, 3ªEd/226.
Consoante o grau de divergência entre a vontade real e a declaração, a simulação diz-se absoluta ou relativa, se as partes não têm vontade ou não querem celebrar qualquer negócio ou visam apenas a celebração de negócio diferente do declarado, respectivamente (artigo 241º do CC).
Afirma a embargante que subjacente à subscrição da livrança exequenda existe um empréstimo ou mútuo nulo por simulado, pois que as partes - ela mesma e o banco – visaram um empréstimo que tinha como destinatários ou verdadeiros mutuários pessoas diferentes (no caso, os avalistas/coexecutados) da mutuária aparente (a embargante), o que entende configurar uma simulação relativa (e que, na posição do B............., afirmada na queixa crime já referida, sendo o beneficiário do mútuo o aludido F.............., haveria mesmo uma simulação absoluta).
Enquanto na simulação absoluta existe apenas o negócio simulado (ou uma aparência de negócio), na simulação relativa, nos termos da citada norma legal, existem dois negócios, o aparente (simulado) e o que as partes querem celebrar (o negócio dissimulado), a convenção aparente e a convenção secreta, que poderá ser invocada para produzir os seus normais efeitos, se estiverem reunidos os requisitos de validade, nomeadamente no que respeita à forma que deve revestir o negócio dissimulado. Na simulação relativa pode distinguir-se a subjectiva e objectiva, conforme respeita aos sujeitos ou ao conteúdo do negócio. No que respeita aquela, ocorre uma interposição fictícia de pessoas (em que o declaratário figura como mero testa de ferro por acordo com os verdadeiros sujeitos reais do negócio), em que ocorre verdadeira simulação, da interposição real de pessoas, em que normalmente se está perante um mandato sem representação (cfr. Ac. RC, de 17/2/1983, na CJ/3/59), situação em que apenas se oculta o verdadeiro interessado na operação, o que não significa simulação.
Na espécie em análise, cremos não ocorrer qualquer simulação, absoluta ou relativa. Desde logo dos factos provados e, mesmo, dos alegados na petição de embargos, não se vislumbra qualquer intuito de enganar terceiros, nem os terceiros enganados, a não ser que fosse o próprio banco, ele parte na operação e que, portanto, arredada ficava a simulação. E a descrição da embargante aproxima-se dessa situação, pois que, como os coexecutados não tinham crédito junto do banco (como afirma), contrata ela o empréstimo para aqueles, a quem o B........ não emprestaria o dinheiro.
É certo que, em alegações (conclusão 5ª), se faz menção a um (de todo inverosímil, dizemos nós) intuito de enganar os accionistas do banco, o que não consta da alegação factual em sede própria (nos articulados), não podendo vir, agora, afirmar-se em sede de recurso. Trata-se de matéria não alegada, sujeita a contraditório e que, na decisão recorrida, não podia ser tomada em consideração. Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu objecto delimitado pelo conteúdo do acto recorrido. Daí que essa alegação não é considerada para a decisão do recurso.
À simulação importa a verificação simultânea dos referidos requisitos – “a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, o acordo simulatório (pactum simulationis) e o intuito de enganar terceiros (que se não deve confundir com o intuito de prejudicar)” - Ac. STJ, de 9/5/2002, em dgsi.pt, proc. 02B511. Não se verificando o intuito de enganar terceiros, não ocorre simulação.
Sucede que nem se revela a (intencionalidade da) divergência entre a vontade declarada e a vontade real. É a embargante a afirmar que o Banco (B..........) não emprestaria fundos aos co-executados por estes já não terem crédito bancário. Não se vê qual a necessidade do banco emprestar (dissimuladamente) dinheiro àqueles com recurso a uma interposição fictícia de um terceiro, quando o podia fazer sem necessidade de intermediário. O que sucede é que, na afirmação da embargante o recorrido não emprestava dinheiro àqueles, por não oferecerem garantias de cumprimento, não merecerem a confiança do banco, daí a necessidade de alguém que oferecesse essas garantias, que tivesse crédito, que tivesse uma “ficha bancária limpa”. Mesmo que o B.......... soubesse que o dinheiro se destinava aos co-executados, só disponibilizava os fundos porque intervinha alguém com crédito e que podia garantir o sucesso da operação. Não se verifica, nesta posição do banco, que declarasse algo que não queria ou que intencionalmente não queria. E posição semelhante é a da recorrente. Bem sabe que o banco mutuou os fundos porque aparecia na operação como mutuária, com uma história sem incidentes bancários, e que sem ser ela a mutuária o banco não emprestava o dinheiro aos co-executados. Anota-se que, dos elementos que o processo fornece, nem houve artifício para enganar a embargante (que poderia prejudicar a sua liberdade na declaração ou mesmo viciá-la), pois que se bem que – repete-se, na sua tese – os destinatários dos fundos hajam garantido àquela que a restituição da quantia mutuada e demais encargos seriam da sua responsabilidade, a verdade é que (como a mesma afirma) nada suportou em sede de reembolso ou encargos (juros e outras despesas), sendo aqueles que satisfizeram parte do reembolso e demais quantias devidas por via do mútuo, por isso, nem se revela artifício da parte destes e do F............. para prejudicar a embargante. O que acontece é que a dinâmica dos negócios não decorreu como perspectivariam. A corresponder o futuro às suas intenções e expectativas, provavelmente nem a embargante estaria na posição que se encontra, de responder por uma dívida de que, no devir normal das coisas, estaria afastada.
E, se a tese exposta nos embargos pela recorrente, se provada, não permitiria concluir pela simulação (absoluta – é evidente que o B......... quis emprestar os fundos mutuados, em parte restituídos – ou relativa), os factos provados, únicos a ter em conta para a decisão, afastam de todo a tese da simulação.
Cabia à embargante a alegação e prova dos factos reveladores da existência da invocada simulação (absoluta ou relativa), como fundamento da sua pretensão, necessários para a desonerar da obrigação manifestada na subscrição cambiária (artigo 342º do CC). A ser nulo o mútuo, inexigíveis seriam as obrigações dele emergentes em que se incluíam as resultantes da subscrição da livrança, por ser aquele a sua causa.
No contexto do cosmos factual apurado, desvanece-se, por completo, a existência da divergência entre a vontade declarada e a vontade real das partes; não se manifesta, de qualquer forma, a intencionalidade de qualquer divergência, seja, que o banco não quisesse mutuar à embargante ou que esta não quisesse receber de empréstimo os valores resultantes do desconto (ao que não releva o destino que a embargante tivesse para os valores mutuados). Não afasta essa conclusão o facto do funcionário bancário, ou mesmo o banco, a entender-se que, agindo aquela nessa qualidade, o B.......... sabe dos factos referentes a esses exercício, terem conhecimento que o dinheiro emprestado se destinava aos co-executados e não á recorrente/mutuária, que do dinheiro pode fazer o que entender, mesmo afectando-o a um prometido favor (que a sua intervenção em benefício dos co-executados revela).
E, se não se anota essa divergência, rejeita-se a presença do conluio entre declarante e declaratário (recorrente e recorrido) na preparação e manifestação das declarações divergentes com a real vontade manifestada. Nenhum facto nos permite afirmar o acordo simulatório.
Finalmente, o espectro factual assente não indica qualquer intuito das partes (B.......... e recorrente) de enganar terceiros (apesar da referência que acima se fez quanto aos accionistas do banco). Na realidade do alegado, quem estaria a ser enganado seria o próprio banco com a conduta irregular de um seu funcionário, o que também não tem apoio na matéria de facto provada.
Não se concluindo por simulação no estabelecimento da relação causal ou por qualquer vício que determine a sua nulidade, o recurso não pode proceder.
Na douta decisão recorrida, entendeu-se que a situação enquadra-se (citamos) “nitidamente no instituto da interposição real de pessoas (mandato sem representação), tendo a embargante actuado em nome próprio, mas por conta e no interesse dos seus patrões, por força do acordo celebrado com estes” e que “o facto de um funcionário da embargada (alínea xvi dos factos provados) ou até a própria embargada saberem que os destinatários últimos do dinheiro proveniente do desconto da livrança eram os patrões da embargante e não esta, não traduz, de todo, divergência entre a vontade real e a declarada, nem qualquer acordo simulatório, sendo certo que nem sequer existe terceiro enganado”.
No mandato sem representação, o interposto actua por conta e no interesse de outrem, mas em nome próprio produzindo-se os efeitos do negócio jurídico celebrado na sua esfera jurídica e não directamente na do mandante (art. 1180º do Código Civil).
O mandato sem representação importa “a) o interesse de certa pessoa na realização de um negócio sem intervenção pessoal, b) interposição de outra pessoa a fazer o negócio por incumbência não aparente do titular do interesse, c) celebração do negócio pela interposta pessoa sem referência ao verdadeiro interessado e d) transmissão para o mandante dos direitos obtidos pelo mandatário” (RC, de 17/2/1981, CJ/1,46), constituindo esta transmissão como que o epílogo normal deste contrato.
Nesta espécie de mandato ocorre uma real interposição de pessoas, aparecendo o interposto a negociar por conta e no interesse do verdadeiro interessado mas sem referência a este, que fica na sombra ou oculto, o que não significa que haja qualquer intuito de enganar terceiros, nomeadamente o declarante, ou simulação.
Não afasta essa qualificação o facto do mandato ou do interesse do mandante ser conhecido de terceiros (que participem nos actos ou sejam seus destinatários – art. 1180º do CC). O que releva é a inexistência de referência ao verdadeiro interessado no negócio e que o interposto actue em nome próprio e sem incumbência aparente daquele. Significa que o facto do banco conhecer o destino final das importâncias mutuadas não afasta, por si, a qualificação do acordo entre a embargante e os co-executados como mandato sem representação e bem pode assim qualificar-se o acordo celebrado entre a embargante e os co-executados em face dos factos descritos nos pontos 8, 9, 10, 11 e 12 da matéria de facto. Estes, se bem que beneficiários, não intervieram na celebração do mútuo, antes e apenas a embargante.
Não se descortina, no âmbito factual apurado, que o banco ou o seu funcionário F............... haja intervindo nesse acordo entre a embargante/mutuária e os co-executados avalistas.
Neste aspecto, não se discordando da decisão recorrida, para ela se remete no demais. E, a ser assim, os efeitos do contrato celebrado entre o B.......... e a recorrente projectam-se nas suas esferas jurídicas, sendo a recorrente sujeito das obrigações dele (mútuo) decorrentes para com o recorrido.
Sendo este o negócio que constitui a relação subjacente à emissão da livrança, e por não estar afectado de vício que determine a sua invalidade, a embargante responde pelas obrigações cartulares emergentes da livrança exequenda.

IX. Pelo exposto, acorda-se nesta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Porto, 02 de Junho de 2005
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira