Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0735715
Nº Convencional: JTRP00041051
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
FORMA
CONTA CORRENTE
Nº do Documento: RP200801310735715
Data do Acordão: 01/31/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 746 - FLS. 119.
Área Temática: .
Sumário: I – Nos termos do disposto no art. 1016º, nº2, do CPC, a não apresentação das contas sob a forma de conta-corrente pode determinar a sua rejeição, mas não determina obrigatoriamente essa rejeição, uma vez que esta não é imposta pela lei como consequência inevitável e inexorável.
II – Ainda que não apresentadas sob a forma de conta-corrente, as contas deverão ser apreciadas segundo o prudente arbítrio do julgador, apreciação jurisdicional necessariamente “não arbitrária”, efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade, que oriente os critérios de conveniência e de oportunidade que estão na sua base sempre em função da realização dos fins do processo (a justa composição do litígio com respeito pelos direitos e garantias processuais das partes).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

B…………….. instaurou a presente acção especial de prestação de contas nos termos do previsto no artigo 1014º do Código de Processo Civil contra C………….., peticionando, como herdeira, o cumprimento do dever consagrado no artigo 2093º do CC por parte do demandado.
Alega, em síntese, que a 27.10.95 faleceu D……………. no estado de casada com E………….. que faleceu, no estado de viúvo, a 20.12.1997, momento a partir do qual o requerido, a quem foi deferido o cargo de cabeça de casal, nunca prestou contas aos demais interessados.

Citado o Réu, este vem dizer que sempre prestou contas a todos os herdeiros em conselho de família que sempre foram aprovadas, contestando, por isso a obrigação de prestar as contas.
Juntou documentos e indicou testemunhas.

Respondeu a A., dizendo que há vários anos não tem qualquer contacto com o Réu e que, por isso, não corresponde à verdade que alguma vez este haja prestado contas que por ela hajam sido aprovadas, não lhe tendo sido entregues quaisquer justificativos das despesas apresentadas, nem que estas hajam sido realizadas no interesse da herança ou da A.. Disse ainda que o R. teve proveitos além dos refere, nomeadamente € 93.934,64 em 16.06.04 e € 47.889,36 em 21.07.04, no âmbito de processo de expropriação nº ……/9, do ….º Juízo Cível deste Tribunal. Destes valores o R. distribuiu por cada um dos herdeiros € 20.015,24, tendo ficado por distribuir o montante de € 41.743,10 de cujo destino a A. desconhece. Impugna a contestação do Réu e pugna por que este seja condenado como litigante de má-fé.
Junta documentos. Requer o depoimento de parte do Réu e indica testemunhas.
Cumpriu-se o contraditório relativamente à alegada má fé.

Foi proferido despacho nos termos seguintes:
“…in casu, o réu entende que ao longo do tempo foram prestadas contas nos moldes dos documentos de fls. 36 onde se pode ler “contas do ano 2004-2005”, sem que, na verdade se compreenda o conteúdo ali inscrito e sem que dali resulte a aprovação por parte dos herdeiros; a fls. 37, não está identificado o ano a que se referem as contas mas vem identificado um saldo positivo de Esc.67.776$00 para cada um, sem que, na verdade se compreenda o conteúdo ali inscrito e sem que dali resulte a aprovação por parte dos herdeiros; contas a partir de Março até Agosto de 1999”, sem que, na verdade se compreenda o conteúdo ali inscrito e sem que dali resulte a aprovação por parte dos herdeiros; a fls. 39 “contas de Agosto 99 – 2000”, sem que, na verdade se compreenda o conteúdo ali inscrito e sem que dali resulte a aprovação por parte dos herdeiros; a fls. 40 “estas contas foram feitas no dia 23 de Agosto do ano de 2001”, sem que, na verdade se compreenda o conteúdo ali inscrito e sem que dali resulte a aprovação por parte dos herdeiros; a fls. 41 “as contas de 21 de Agosto de 2001 a vinte e cinco de Agosto de 2002”, sem que, na verdade se compreenda o conteúdo ali inscrito e sem que dali resulte a aprovação por parte dos herdeiros; a fls. 42 “as contas de 2002 a 2003”, sem que, na verdade se compreenda o conteúdo ali inscrito e sem que dali resulte a aprovação por parte dos herdeiros e a fls. 44 “contas do ano 2003 – 2004”, sem que, na verdade se compreenda o conteúdo ali inscrito e sem que dali resulte a aprovação por parte dos herdeiros.
Resulta, por isso, documentalmente insuficiente a prestação de contas alegada o que não pode ser suprido com prova testemunhal. Os documentos que foram juntos não têm qualquer suporte documental e as declarações de fls. 32 a 35 são meramente genéricas e não relativamente a cada uma das reuniões de aprovação das contas apresentadas, não podendo ser valoradas (até porque pela data nelas apostas tudo leva a crer que foram elaboradas apenas e só porque em 08.06.05 deu entrada em juízo a petição destes autos).”

Este despacho culmina na seguinte decisão:

“ … nos termos do previsto no n.º 3 do artigo 1014º - A, do Código de Processo Civil e sem necessidade de qualquer outra prova por ser desnecessária, decido que existe obrigação de prestar contas por parte do réu.
Cumpra o n.º 5 do artigo 1014º-A, do Código de Processo Civil.”

Inconformado com tal decisão, dela veio o requerido apelar para este Tribunal, oferecendo as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

1. O artigo em causa estabelece que as contas devem ser apresentadas em forma de conta-corrente (artigo 1016 n.º 1 do CPC), estatuindo o seu n.º 2 que a inobservância desta disposição, pode determinar a rejeição das contas.
2. O termo “conta-corrente” significa “escrituração do crédito e do débito de uma pessoa ou entidade”, Grande Dicionário de Língua Portuguesa, P. 231.
3. Uma Prestação de Contas sob a forma de Conta-Corrente é uma forma simples de escrituração de transacções, em rubricas de (deve e haver), (débitos e créditos), que releva a situação patrimonial de uma conta em cada momento, ou num determinado período de tempo, através do saldo resultante das entradas/receitas/créditos e das saídas/despesas/débitos.
4. Apresentar as contas sob a forma de conta-corrente é uma das formas de contabilidade, é uma das artes de escriturar as contas.
5. No Acórdão da Relação de Lisboa de 24.03.1976, in Col. Jur., 1976, 2° - 461, escreveu-se: “... Quando se diz — as contas devem ser apresentadas em forma de conta corrente — quer-se aludir a uma forma gráfica de contabilidade, a um determinado método de dar a conhecer as operações de crédito e débito entre duas pessoas.
6. A espécie gráfica conta-corrente decompõe-se em três elementos fundamentais: receitas, despesas e saldo.
7. As contas apresentam a expressão ou a forma gráfica de conta corrente, quando em colunas separadas se inscrevem as verbas de receitas, as verbas de despesa e o saldo resultante do confronto de umas e de outras.
8. As verbas de receita inserem-se em coluna que tem a rubrica Haver, as verbas de despesa em coluna encimada pela palavra Deve.”
9. A apresentação das contas sob a forma de conta corrente visa a representação do movimento patrimonial e monetário, a exposição sintética de todos os dados e movimentos monetários da actividade de uma determinada entidade, (no caso concreto seria da actividade de gestão do Réu).
10. A lei não impõe como consequência inevitável e inexorável a rejeição das contas.
11. A não apresentação das contas sob a forma de conta-corrente pode determinar a sua rejeição mas não determina obrigatoriamente essa rejeição.
12. O que foi o que a Meritíssima Juiz a quo fez.
13. O preceito legal afirma literalmente “pode determinar” e não “determina”.
14. A redacção deste normativo não impõe que sempre que as contas não sejam apresentadas sob a forma de conta-corrente o Juiz tenha obrigatoriamente de as rejeitar.
15. Pode ter de o fazer mas não é obrigado a fazê-lo.
16. Como se disse supra o presente processo visa fundamentalmente determinar o quantitativo que uma parte deve à outra, ou dito de outro modo determinar o saldo existente nas contas.
17. E a apresentação das contas segundo a técnica contabilística de escrituração na forma de conta-corrente pretende facilitar a análise dos dados que são levados ao processo.
18. Mas como se sabe a apresentação ou escrituração das contas de uma determinada entidade (colectiva ou singular) pode revestir outras formas.
19. Uma delas é a que foi apresentada pelo Réu.
20. Ora, ainda que as contas não tenham sido apresentadas segundo a forma que a lei aconselha (a forma de conta-corrente) isso não impunha obrigatoriamente que a Sra. Juiz a quo as rejeitasse, uma vez que é possível determinar-se e avaliar-se o saldo final da gestão do Réu.
21. Podemos afirmar que o Réu apresentou as contas segundo uma técnica imperfeita, próxima do processo contabilístico de “demonstração de resultados e balanço”, (sendo certo que não existem elementos documentais de suporte dos valores apresentados), não usando a forma de escrituração que a lei aconselha (o processo de escrituração designado por conta-corrente).
22. A Sra. Juiz a quo, apesar de o Réu não ter apresentado as contas sob a forma de escrituração que a lei aconselha (por conta-corrente), devia ter apreciado essas contas ainda que, se assim o entendesse, colhesse as informações que tivesse por convenientes ou mesmo se incumbisse pessoa idónea para dar parecer sobre as contas apresentadas para.
23. As contas apresentadas ainda que não sob a forma de conta corrente deveriam ser apreciadas segundo o prudente arbítrio do julgador.
24. Em suma e em conclusão entendemos que pelo mero facto de o Réu não ter apresentado as contas sob a forma de escrituração aconselhada pela lei, ou seja a conta-corrente, tendo-as apresentado sob uma outra forma de escrituração contabilística, não podia a Sra. Juiz ter rejeitado as contas apresentadas, devendo pronunciar-se sobre as mesmas.
25. Impõe-se, assim, a procedência das conclusões e consequentemente do presente recurso.
26. O Réu já apresentou as contas, não da forma prevista na lei, mas apresentou-as e sobre elas só agora a Autora vem pronunciar-se.
27. O que consubstancia também abuso de direito.
28. Não deixa de impressionar o facto de a A., durante muitos e muitos anos, ter aceite, sem nunca a questionar, a “nota sumária” que lhe era apresentada pela R. E recebido, sem qualquer reparo, as notas apresentadas pelo R.
29. Essa longa passividade e aceitação da prática seguida legitima a convicção, por parte da R., que a A. Não mais viria a exigir a prestação de contas, até porque entre eles não existiam boas relações, sendo que tal exigência traduziria o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente, ou seja, um “venire contra factum proprium”.
30. Estaríamos perante uma situação a que alguma doutrina vem designando por “suppressio” , e que os alemães designam por “verwirkung”: “situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé” (Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, II, 797).
31. Segundo Baptista Machado, Obra Dispersa, I, 421, para que a “verwirkung” opere exige-se a verificação das seguintes circunstâncias:
32. “a) o titular do direito deixa passar longo tempo sem o exercer;
33. b) com base neste decurso do tempo e com base numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a outra parte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido;
34. c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado”.
35. Ou seja, dado o longo tempo decorrido, a situação objectiva de confiança criada e o “investimento” feito com base nessa situação de confiança, não seria exigível à contraparte – face ao resultado a que o exercício tardio do direito conduziria – conformar-se à pretensão do titular do direito e suportar esse resultado.
36. Também Menezes Cordeiro escreve (ob. cit, 820) que, na chave da suppressio, está a protecção da confiança da contraparte, estando-se perante “uma situação tal que o exercício retardado do direito surja, para a contraparte, como injustiça, seja em sentido distributivo, por lhe infringir uma desvantagem desconexa na panorâmica geral do espaço jurídico, seja em sentido comutativo, por lhe acarretar um prejuízo não proporcional ao benefício arrecadado pelo exercente, tendo em conta a distribuição normal a operar pelo direito implicado”.

Nestes termos, nos de direito e com o sempre mui douto suprimento de v. Ex.as, deve o presente recurso ser dado como provado e procedente, revogando-se o douto despacho por outro que decida pela não obrigatoriedade de apresentação de contas, assim se fazendo inteira e sã justiça.

Não foram produzidas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo presente que o recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

À nossa decisão interessa a tramitação supra referida.

APRECIANDO:

Num primeiro momento, o agravante põe em causa o despacho recorrido na medida em que este determina a apresentação das contas sob a forma de conta corrente.
Parece-nos que equivocamente o faz, uma vez que em parte alguma a decisão recorrida alude à dita forma de apresentação das contas, apenas ordenando, ao abrigo do nº 3 do art. 1014º do CPC (que alude à decisão subsequente à produção dos meios de prova), o cumprimento do art. 1014º nº 5 do mesmo diploma (que ordena a notificação do réu para apresentar contas dentro de 20 dias, sob penas de não poder contestar as que o autor apresente).

É o art. 1016º nº 1 do CPC que refere que “as contas que o réu deva prestar são apresentadas em forma de conta corrente e nelas se especificará a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo”.
Nos termos do n.º 2 deste preceito, a inobservância desta disposição, pode determinar a rejeição das contas.
O termo “conta-corrente” significa “escrituração do crédito e do débito de uma pessoa ou entidade”.
Tal como bem explica o Ac. desta Relação de 28 de Maio de 2007[1]“uma Prestação de Contas sob a forma de Conta-Corrente é uma forma simples de escrituração de transacções, em rubricas de (deve e haver), (débitos e créditos), que releva a situação patrimonial de uma conta em cada momento, ou num determinado período de tempo, através do saldo resultante das entradas/receitas/créditos e das saídas/despesas/débitos.
Este tipo de escrituração deve ser efectuado num só documento do tipo:





Apresentar as contas sob a forma de conta-corrente é uma das formas de contabilidade, é uma das artes de escriturar as contas.”
Refere este aresto jurisprudencial o Acórdão da Relação de Lisboa de 24.03.1976[2]segundo o qual “... Quando se diz — as contas devem ser apresentadas em forma de conta corrente — quer-se aludir a uma forma gráfica de contabilidade, a um determinado método de dar a conhecer as operações de crédito e débito entre duas pessoas. A espécie gráfica conta-corrente decompõe-se em três elementos fundamentais: receitas, despesas e saldo. As contas apresentam a expressão ou a forma gráfica de conta corrente, quando em colunas separadas se inscrevem as verbas de receitas, as verbas de despesa e o saldo resultante do confronto de umas e de outras. As verbas de receita inserem-se em coluna que tem a rubrica Haver, as verbas de despesa em coluna encimada pela palavra Deve.”
A apresentação das contas sob a forma de conta corrente visa a representação do movimento patrimonial e monetário, a exposição sintética de todos os dados e movimentos monetários da actividade de uma determinada entidade.
A lei não impõe como consequência inevitável e inexorável a rejeição das contas. A não apresentação das contas sob a forma de conta-corrente pode determinar a sua rejeição mas não determina obrigatoriamente essa rejeição.
O preceito legal afirma literalmente “pode determinar” e não “determina”.
A redacção deste normativo não impõe que sempre que as contas não sejam apresentadas sob a forma de conta-corrente o Juiz tenha obrigatoriamente de as rejeitar. Pode ter de o fazer mas não é obrigado a fazê-lo.
Como se disse supra o presente processo visa fundamentalmente determinar o quantitativo que uma parte deve à outra, ou dito de outro modo determinar o saldo existente nas contas, sendo que a apresentação das contas segundo a técnica contabilística de escrituração na forma de conta-corrente pretende facilitar a análise dos dados que são levados ao processo.
Mas como se sabe a apresentação ou escrituração das contas pode revestir outras formas, até menos perfeitas sob o ponto de vista das artes contabilísticas, ponto é que resulte esclarecido o saldo final da gestão visada.
Mesmo quando não apresentadas sob a forma preferida pelo legislador, o Tribunal não pode rejeitá-las imediatamente, antes se impondo a sua meticulosa apreciação e, se for caso disso a realização de diligências instrutórias adequadas ao apuramento das contas e à melhor apreciação técnica das mesmas, se necessário mediante a nomeação de perito idóneo competente para o efeito[3]

Ainda que não apresentadas sob a forma de conta corrente, as contas deverão ser apreciadas segundo o prudente arbítrio do julgador, apreciação jurisdicional necessariamente “não arbitrária”, efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade, que oriente os critérios de conveniência e de oportunidade que estão na sua base sempre em função da realização dos fins do processo (a justa composição do litígio com respeito pelos direitos e garantias processuais das partes).[4]

Aqui chegados, depois destes diversos considerandos, voltando ao nosso caso, diremos, tal como já deixámos apontado, que a censura feita pelo apelante ao despacho recorrido não tem qualquer sentido, tanto quanto é certo o facto de tal despacho não fazer a menor referência ao método de conta corrente a que alude a lei.
Analisando as contas prestadas, o Senhor Juiz entendeu fundamentadamente que a apresentação efectuada foi “insuficiente”, quer por se revelar incompreensível o conteúdo de vários dos documentos apresentados, quer porque dos mesmos não resulta a aprovação por parte dos co-herdeiros, mais considerando que essa insuficiência é insusceptível de ser suprida por prova testemunhal.
Daí que tenha decidido no sentido da prestação de contas por parte do requerido, ao abrigo do art. 1014º nº 5 do COC, sem que daí se possa extrair a obrigação da prestação das mesmas sob a forma de conta corrente, questão esta que só ulteriormente, após a apresentação das contas, é susceptível de ser apreciada.
A Senhora Juíza não se limitou a rejeitar as contas apresentadas, antes as apreciou, concluindo pela sua insuficiência, conclusão em nada resultante da circunstância de as contas não terem sido apresentadas sob a forma de conta corrente.
Diga-se mesmo que o recurso, neste aspecto, se revela descentrado da decisão recorrida, já que pretende pôr em causa uma conclusão não alcançada por esta – a de que a Senhora Juíza rejeitou as contas apresentadas, porque estas não foram apresentadas sob a forma de conta corrente.

Pelo que fica exposto, não merece o agravo, nesta parte, ser provido.

II

Num segundo momento, o apelante vem apodar de abuso de direito a actuação da A. pelo facto de só agora se pronunciar quanto às contas por si apresentadas, uma vez que sempre aceitou a forma como as mesmas eram por si apresentadas, nunca fazendo qualquer reparo.
Qualifica a postura da A. como “venire contra factum proprium”.

Vejamos:
O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso independentemente da intenção do agente, bastando que essa a actuação contrarie objectivamente aqueles valores.
Como ensina o Professor Antunes Varela:
“Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido”, em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.[5]
No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória – “venire contra factum proprium” – que se enquadra no âmbito da violação do princípio da confiança, que ocorre quando o agente assume conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função da forma ou modo como antes agira.
O abuso do direito – “como válvula de escape” – só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito.

Como ensina o Prof. Menezes Cordeiro[6]“o venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”

Ensina também este Mestre[7]serem quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”: (...) 1°- Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”

“Quando o titular do direito se deixou cair numa longa inércia sem a respectiva exercitação, susceptível de criar na contraparte a fundada convicção de que o direito não mais será exercido e que a sua posição jurídico-substantiva se encontra consolidada, nela tendo investido, em conformidade, as suas expectativas e o seu capital é ilegítimo e abusivo em tais circunstâncias, o exercício do direito, que, por isso, não deve ser reconhecido.”[8]

“A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança.
Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé.
A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito[9]

Será que no caso vertente existiu abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”?
Será que a conduta da Autora criou no Réu, de forma razoável, uma expectativa factual, sólida, de poder confiar que esta jamais viria exigir judicialmente a prestação de contas?
Será que a conduta da A., ao pretender que o Réu preste as contas do seu cabeçalato trai objectivamente o “investimento de confiança” feito pela contraparte, redundando aquela pretensão em clamorosa e evidente injustiça?
Apreciando, diremos que a posição ora assumida pelo apelante parte do pressuposto de que as contas sempre por si foram apresentadas à A. e que esta sempre as teve como boas, como que decidindo ela agora, depois de ter criado tal estado de confiança no Réu, vir colocar em causa as contas bem como o método de prestação das mesmas.

Ora, tal circunstancialismo, para além de ter sido rejeitado pela A. nos seus articulados, especialmente quando afirmou que “há vários anos que não têm qualquer tipo de relacionamento ou contacto e que nunca aprovou quaisquer contas (vide resposta à contestação), não resultou minimamente apurado, nem demonstrado ficou que entre ambos tenha sido criado qualquer elo de confiança que agora esteja de alguma forma a ser quebrado e traído pela A., pelo que não pode a pretensão do agravante, de abuso de direito por parte da demandante, deixar de improceder.

Para além de inverificado a abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, diga-se também que a pretensão da A., de prestação de contas por parte do Réu, apesar de pouco vulgar, sempre constitui um acto de administração do seu próprio património perfeitamente respeitável, aceite pela consciência social e económica dominante e espelhada na lei, traduzindo postura de exigência quanto à boa gestão dos recursos económicos próprios e a vigilância da correcta administração do património comum por parte de outrem, procedimento que a lei protege e disciplina.

Não vislumbramos, assim, que a presente acção de prestação de contas inculque pretensão desmesurada que de alguma forma possa macular o desiderato económico subjacente ao direito exercido, ante lhe fazendo “jus”.

Improcede, assim, o invocado abuso de direito.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao agravo e confirmar inteiramente o despacho recorrido.

Custa pelo agravante.

Porto, 31 de Janeiro de 2008
Nuno Ângelo Raínho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
Manuel José Pires Capelo
__________
[1]ocesso nº 0752489, in www.dgsi.pt.
[2] CJ, 1976, 2º, 461.
[3]ste sentido, Alberto dos Reis, Processos especiais, Vol. I., 322
[4]pes do Rego, in Comentários ao CPC, 135.
[5]r. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ, de 7.1.93, in BMJ, 423-539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, 19.
[6] “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745
[7] “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964
[8]. do STJ, de 7.6.2001, JSTJ00041444, in www.dgsi.pt .
[9]. STJ de 21.01.2003, Proc. 2970/02 da 1ª secção – Relator Ex. Conselheiro Dr. Azevedo Ramos.