Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0321355
Nº Convencional: JTRP00035739
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL COMUM
Nº do Documento: RP200305060321355
Data do Acordão: 05/06/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J MAIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CPA91 ART178 N1 N2 H.
CCIV66 ART1154.
Sumário: Os contratos mediante os quais um engenheiro mecânico se obriga, perante várias escolas, a proceder, mediante retribuição, a uma inspecção anual das instalações de gás propano nesses estabelecimentos, são contratos de direito privado, sujeitos à disciplina do artigo 1154 do Código Civil, sendo competente para o seu conhecimento o tribunal comum.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO :

RELATÓRIO
Joaquim....., casado, engenheiro mecânico, residente na Rua....., ....., ....., propôs no -º Juízo do Tribunal Judicial da...., a presente acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra o Ministério da Educação e o Estado Português, pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia de 2.040.935$00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, invocando como fundamento desta pretensão a existência de contratos de prestação de serviços com várias escolas, através dos quais o Autor realizava, mediante remuneração, a inspecção à rede de propano desses estabelecimentos de ensino.

O Ministério Público, em representação do Estado Português, contestou a acção, arguindo a incompetência absoluta do Tribunal, defendendo que o Tribunal materialmente competente para conhecer dos autos é o Tribunal Administrativo do Círculo, dado que os contratos em causa são administrativos.

A esta excepção respondeu o Autor, mantendo ser o Tribunal Judicial da Maia o competente.

No despacho saneador proferido em 13 de Novembro de 2002, julgou-se improcedente a excepção, reconhecendo-se competência material ao Tribunal Judicial da Maia para conhecer da acção.

Desta decisão recorreu o Ministério Público.
Esse recurso foi admitido como sendo de agravo, com subida imediata e em separado, com efeito meramente devolutivo (v. fls. 166).

Nas alegações de recurso o Ministério Público formula as seguintes conclusões :
1. Os contratos de fls. 50, 52, 64, 72, 74, 76, 84 e 92 são contratos administrativos.
2. Neles, o particular (A.) obrigou-se a prestar o serviço de inspecção da instalação de gás propano, mediante o pagamento duma retribuição, porque a escola precisava deste serviço para poder funcionar e esta relação contratual era duradoura, cabendo à escola sempre o poder de fiscalizar a boa execução dos trabalhos ou as deficiências detectadas.
3. Esta é a noção de contrato administrativo que nos dão os mestres atrás citados e as decisões jurisprudenciais referidas.
4. E que vêm hoje insertos nos arts. 178º, n.º 1, do CPA e art. 9º, n.º 1, do ETAF.
E como contratos administrativos que são, os mesmos estão impregnados da nulidade invocada nos artigos 20º a 25º da contestação.
E sendo, como são, contratos administrativos, o conhecimento da presente acção, nos termos do art. 51º, n.º 1, al. g) do ETAF, é da competência dos Tribunais Administrativos de Círculo.
Foram violadas as disposições legais atrás citadas e o disposto no art. 105º, n.º 1, do CPC.

Não houve contra-alegações.

A Mmª Juiz sustentou o despacho impugnado (fls. 170).

Foram colhidos os vistos legais.
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O âmbito do recurso é limitado pelas conclusões do recorrente - arts. 684º, n.º 3, e 690º do CPC.
Por isso, a única questão a dirimir é a de saber se o Tribunal Judicial da Maia é o competente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção.
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FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Há alguns factos que, estando assentes nos autos, nos permitem classificar a natureza dos contratos em causa.
Assim:

1. O Autor é licenciado em engenharia....., sendo detentor da licença de projectista de redes de gás n.º...., emitida pela D.G.E., e da licença de técnico de gás n.º ....., emitida pela A.P.G.C./I.T.G.
2. O Autor celebrou, por escrito, “contratos de prestação de serviços” com os seguintes estabelecimentos de ensino: Escola Preparatória de......, Escola C+S de ....., Escola Secundária de....., Escola Preparatória de....., Escola Secundária de....., Escola Secundária de..... (em.....), Escola Secundária de..... (na.....), Escola E.B. 2/3 ..... (em....), Escola Secundária de..... e Escola C+S de..... - docs. fls. 50, 52, 64, 72, 74, 76, 84 e 92 a 94, cujos conteúdos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
3. Através desses contratos, o Autor obrigou-se, mediante retribuição, a «fazer a inspecção e ensaio de estanquicidade à instalação de propano» desses estabelecimentos, elaborando o relatório técnico «no qual serão mencionadas as pressões de ensaio dos diversos tramos da rede, bem como anomalias verificadas, quer no referido ensaio como também nos órgãos ou aspectos da instalação que não estejam em conformidade com a legislação em vigor».
4. Todos esses contratos tinham um prazo de duração de três anos, prorrogável por igual período, com excepção dos contratos documentados a fls. 74 e 84, cujos prazos eram, respectivamente, de um e de dois anos.
5. Em cada um desses contratos discriminava-se, sob a cláusula 4ª, o mês durante o qual, em cada ano, ocorreria o serviço de inspecção.
6. Na cláusula 6ª de cada um desses contratos estipulou-se ainda que: «situações que obriguem a mais de uma inspecção anual, serão objecto de acordo fora do âmbito do presente contrato».
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O DIREITO

Conforme ensina Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, 1963, pág. 89), para se decidir qual a norma de competência aplicável «deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes).
Depois de salientar que a competência do tribunal «se determina pelo pedido do Autor», acrescenta que «é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão».
Seguindo estes ensinamentos, ter-se-á de atentar nos termos em que a acção foi proposta e na causa de pedir que lhe serve de substrato fáctico.
Por isso, a solução a dar à questão da competência material suscitado no recurso passa, obrigatoriamente, pela definição da natureza dos contratos firmados entre o Autor e cada um dos estabelecimentos de ensino acima enumerados.
São contratos administrativos ou contratos de direito privado?

A primeira dificuldade prende-se com a definição de contrato administrativo.
O art. 178º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo DL 442/91, de 15.11., define contrato administrativo como o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.
Neste conceito amplo, o n.º 2 do mesmo artigo inclui, de modo exemplificativo, os contratos de empreitada de obras públicas, concessão de obras públicas, concessão de serviços públicos, concessão de exploração do domínio público, concessão de uso privativo do domínio público, concessão de exploração de jogos de fortuna ou azar, fornecimento contínuo e prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública.

A doutrina tem considerado como elementos constitutivos definidores do contrato administrativo os seguintes:
- a necessidade de um dos sujeitos contratantes ser uma pessoa colectiva de direito público, quer de carácter territorial, quer de carácter institucional;
- a imediata conexão do contrato com as atribuições da pessoa colectiva pública;
- a associação duradoura e especial do particular à realização do fim administrativo.
Este último elemento, não é aceite por alguns administrativistas como decisivo ou essencial para a qualificação de um contrato como contrato administrativo, com o argumento de que há contratos administrativos em que essa associação duradoura do particular ao fim público é bastante ténue (contrato de fornecimento de coisas) e outros em que essa associação se esgota instantaneamente (contrato de empréstimo público).

O Prof. Marcelo Caetano (Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, 1º Vol., pág. 585) refere, contudo, que o traço característico do contrato administrativo é a associação duradoura e especial do particular à realização do fim administrativo de tal modo que a sua actividade fique vinculada à regularidade e à continuidade do serviço, traduzindo-se tal vinculação na submissão do particular à direcção dos órgãos da entidade servida, e não se verificando essas associação e vinculação quando o particular se compromete com a Administração a fazer-lhe unicamente as prestações que lhe sejam solicitadas no exercício da sua livre actividade profissional ou desde logo concretizada nas estipulações contratuais.

Vejamos a situação concreta dos autos.
Nos contratos de prestação de serviços celebrados pelo Autor com diversos estabelecimentos de ensino, obrigou-se aquele a realizar certo resultado da sua actividade, ligada à engenharia mecânica, mediante retribuição.
E, pese embora o facto de na maioria dos contratos ter ficado clausulado que essa actividade se desenrolaria num período de três anos, prorrogável por igual período de tempo, não se pode considerar tal circunstância contratual como definidora de um vínculo duradouro do contratante à realização do fim administrativo em nome do qual foi contratado. Repare-se, além do mais, no facto de só estar prevista e contratualmente estipulada uma única deslocação anual do Autor a cada escola para realização da inspecção à instalação de gás propano e também no que se deixou acordado na cláusula 6ª (sujeitar a novo acordo, fora do âmbito do contrato, a eventual necessidade de realização de mais do que uma inspecção anual - v. ponto 6. da matéria de facto).

Por outro lado, sendo o Autor um profissional liberal, somente se obrigou perante os órgãos directivos das várias escolas a proceder a um trabalho de natureza técnica, sem qualquer vínculo de subordinação àqueles. A sua actividade não ficou submetida à autoridade e direcção dos estabelecimentos com os quais contratou.

Finalmente, como resulta do art. 178º, n.º 2, al. h), do CPA são contratos administrativos os contratos de prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública.
O fim visado nos contratos em causa não serve de modo imediato e directo um interesse público.
Como defende Marques Guedes (O Contrato Administrativo - Boletim da DGCI, 1960, n.º 15, pág. 269) não basta que da prestação de serviços derive para a colectividade uma qualquer vantagem: é indispensável que a satisfação de necessidades determinadas seja a consequência actual e necessária da sua produção. Não como efeito remoto ou meramente fortuito; mas como efeito imediato e directo.
Há-de convir-se que a rotina de inspecção às instalações de gás propano das escolas, embora se inscreva nos procedimentos normais de preservação e funcionamento dos equipamentos escolares, não visa directa e imediatamente a satisfação de um fim público. Quando muito, poderá servi-lo de modo remoto ou acessório.

Por todas estas razões, pensamos que se decidiu bem na 1ª instância.
Conclui-se, então, que os contratos mediante os quais um engenheiro mecânico se obriga, perante várias escolas, a proceder, mediante retribuição, a uma inspecção anual das instalações de gás propano nesses estabelecimentos, são contratos de direito privado, sujeitos à disciplina do art. 1154º do CC, sendo competente para o seu conhecimento o tribunal comum.
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DECISÃO
Nestes termos, nega-se provimento ao agravo, confirmando-se o douto despacho recorrido.

Sem custas, por o agravante delas estar isento.
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PORTO, 6 de Maio de 2003
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
Alziro Antunes Cardoso