Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4494/09.0TJVNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: HERANÇA INDIVISA
LEGITIMIDADE
INTERVENÇÃO ESPONTÂNEA
Nº do Documento: RP201109264494/09.0TJVNF.P1
Data do Acordão: 09/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – Atribuindo a lei personalidade judiciária à herança jacente, por analogia baseada em argumento de maioria de razão é também de considerar que a atribui à herança indivisa (já aceite mas ainda não partilhada) – como tal, não estando ainda efectuada a partilha é em nome da herança (ou contra a herança), embora carecida de personalidade jurídica, que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário;
II – Tal entendimento é desde logo confirmado pelo disposto nos arts. 2079º, 2088º, 2089º e 2091º nº1 do C. Civil, nos quais se prevê o exercício pelo cabeça de casal e/ou por todos os herdeiros, conforme os casos, dos “direitos relativos à herança” (expressão expressamente utilizada no último daqueles preceitos e que abarca as situações ali previstas e, como ali mesmo se refere e dali decorre, as previstas naqueles outros preceitos);
III – A intervenção espontânea de herdeiros destinada a que a herança indivisa passe a figurar representada por todos os herdeiros é desde logo de admitir com base no disposto no art. 23º nº1 do CPC – onde se prevê a sanação da irregularidade de representação mediante a intervenção ou citação do representante legítimo – e não é sequer necessário que a mesma tenha que revestir a forma do incidente da intervenção principal espontânea previsto no art. 320º e sgs. do CPC, já que esta forma de intervenção, como do âmbito traçado à mesma no art. 320º se vê, destina-se a acautelar a legitimidade plural (que não está em causa quando quem propõe e deve propor a acção é a herança e mais ninguém) e não a irregularidade de representação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº4494/09.0TJVNF.P1 (apelação)
(2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão)
Relator: António M. Mendes Coelho
1º Adjunto: Ana Paula Carvalho
2º Adjunto: Caimoto Jácome
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

A “Herança Ilíquida e Indivisa de B…”, representada pelo seu alegado cabeça de casal C…, residente na Rua …, …, 2º Esquerdo, Braga, propôs acção sumária contra D… e esposa E…, residentes na Rua …, .., …, Vila Nova de Famalicão, pedindo a condenação destes a reconhecer que tal herança é proprietária de bens imóveis que identifica e dos bens móveis neles existentes, a reconhecer a resolução de contrato de comodato relativo a tais bens e a entregá-los imediatamente à autora e a pagar à autora 5 euros por cada dia de atraso por tal entrega desde 9 de Maio de 2009.
Alegou para tal a sucessiva aquisição da propriedade de tais bens por via da sucessão por morte dos seus titulares e ainda a sua aquisição por usucapião, que foi cedida aos réus por F… (da qual a falecida B… foi instituída única e universal herdeira) a utilização gratuita de tais bens através de contrato de comodato celebrado sob a forma verbal, que os réus têm vindo a fazer uma utilização imprudente de tais bens e que em 9 de Maio de 2009 o herdeiro G…, mandatado pelos restantes, interpelou os réus para deixarem de imediato os bens em causa e que estes se recusam a proceder à sua entrega.
Os réus contestaram nos termos constantes de fls. 50 e sgs., começando por questionar, em sede capacidade judiciária, a representação da herança autora por parte de C…, depois por impugnar os factos alegados pela autora no sentido da existência do contrato de comodato, defendendo que foi celebrado um contrato de arrendamento rural, e terminam por aludirem a uma “reconvenção” (epígrafe dos artigos 62 e sgs. da contestação) “em caso de hipotética procedência da acção” (expressão utilizada no artigo 64) em que falam em obras e benfeitorias por si efectuadas mas à qual não dão sequência pois acabam por não deduzir qualquer pedido reconvencional contra a autora.
A autora apresentou réplica a fls. 78 e sgs., na qual aproveitou para deduzir a intervenção principal espontânea de H…, I… e G…, dado serem estes, a par do C…, os únicos herdeiros da falecida B…, os quais, no mesmo articulado, aderem a tudo o anteriormente alegado na acção em representação da autora; impugnou ainda os factos alegados pelos réus nos artigos 5 a 81 da sua contestação (que basearam a impugnação de factos por estes efectuada e a aludida “reconvenção” por estes deduzida).
Os réus vieram expressamente dizer que não se opõem ao incidente de intervenção deduzido.
Seguidamente foi proferida decisão que indeferiu a intervenção principal espontânea supra referida e que, considerando verificada a falta de personalidade judiciária da autora, absolveu os réus da instância (fls. 105 a 108).
De tal decisão veio a autora a interpor o presente recurso – pugnando pela sua revogação e pelo prosseguimento dos demais termos da acção –, tendo na sequência da sua motivação apresentado as seguintes conclusões, que ora se transcrevem:

A) Não podem os Recorrentes aceitar a sentença de que se recorre, desde logo porque esta espelha unicamente uma decisão demasiado formalista e até kafkiana.

B) A herança ilíquida e indivisa constitui património típico, possuindo afectação especial, e como tal atribui-lhe a lei personalidade judiciária, art.º 6 Cód. Proc. Civil. (neste sentido vide Lições de Direitos Reais do Prof. Pires de Lima coligidas por Daniel Augusto Fernandes, 1941, pág. 22 e Ac. RC de 26.02.1981, CJ 1981 1.º -94),

C) Aliás, por analogia à figura da herança jacente, baseada no argumento a maiori ad minus, entende-se que, não estando ainda efectuada a partilha, é em nome da herança, embora carecida de personalidade jurídica, que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender os interesses do acervo hereditário, sendo a herança representada pelo cabeça de casal, nos termos do art.º 2088 e 2089 Cod. Civil.

D) E sempre se poderá destacar, a não se entender assim, que é manifesto que o facto de na herança já aceite mas ainda não partilhada (Art. 2050º do Cód. Civil), já serem conhecidos os sucessores do de cujus torna redundante a expressa atribuição, na lei processual, de personalidade judiciária àquela.

E) Salienta o Prof. Miguel de Sousa, in “As partes, o objecto e a prova na acção declarativa”, pág. 18, que acrescenta que, mesmo depois da herança partilhada, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo (Art. 2068º e 2071º do Cód. Civil), sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe ser atribuída ou não personalidade judiciária,

F) Já que é deveras manifesto que a tem!! (vide Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, pág. 20.)

G) O julgador da primeira instância com desusado afã e numa afirmação kafkiana, entendeu, em suma e incorrectamente, que tem de ser intentada uma outra acção, com o mesmo pedido e com a mesma causa de pedir, só que com uma nova designação quanto à Autora (e isto a não se entender que não é de deferir, em último caso, a supra referida intervenção principal espontânea)

H) A herança é uma universitas juris representada, enquanto subsiste, pelo cabeça de casal.

I) A herança ilíquida e indivisa é representada em juízo pelo cabeça de casal, quando a sua intervenção se situe no âmbito dos poderes de administração, ou, fora desse caso, e para além da situação excepcional prevista no Art. 2078º do Cód. Civil, pelo conjunto de todos os herdeiros em litisconsórcio necessário legal.

J) E até bem se pode entender que o caso sub júdice se enquadra no disposto no Art. 2088º do Cód. Civil que estabelece que o cabeça de casal pode pedir a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que um terceiro tenha em seu poder, ilegitimamente. (Vide Ac. RL 28-4-1994, CJ, 1994, 2.ª-131).

K) no caso sub Júdice, intervieram até todos os herdeiros, com o objectivo de defender os bens da herança, evitando a sua saída do acervo hereditário.

L) Pelo que, se assim não se entender, o que não se concede, com tal intervenção espontânea dos restantes herdeiros, para além do cabeça de casal,

M) Está, devida legal e completamente, preenchido o requisito da representação da herança ilíquida e indivisa do caso sub júdice, através da figura jurídica - litisconsórcio necessário legal - o que leva, forçosamente, à conclusão que deve ser deferida a referida intervenção.

N) De salientar, a propósito de tudo isto, que em sede de representação há que atentar no disposto nos Art. 22º 23º, n.º1 e 24º do Cód. Proc. Civil,

O) O que sempre conduziria a uma solução diferente daquela que, erradamente, foi tomada na decisão recorrida,

P) O juiz não está sujeito à alegação das partes quanto à qualificação jurídica dos factos alegados pelas mesmas (art.º 664 C.PC.).

Q) Que o tribunal é juridicamente livre nessa qualificação, ou seja, que pode qualificar numa moldura diferente da apresentada pelas partes os factos que aquelas apresentam.

R) E assim, no caso sub judice, os Recorrentes não têm o ónus de qualificar juridicamente a factualidade que alegam, bastando expor esta, cabendo depois ao Tribunal a qualificação e enquadramento jurídico da mesma.

S) Esta não sujeição do juiz está, como todos conhecem ou deviam conhecer, expressa no brocado latino “ jura novit cúria.”

T) O julgador se preocupou, apenas, com razões formais que, a serem aceites, o que não se concede, colocavam os Recorrentes numa situação equivalente ao “Processo de Kafka”…

U) Pelo que deve a mesma ser revogada, prosseguindo a presente acção os seus regulares termos.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões (art. 684º nº3 do CPC), são essencialmente duas as questões a tratar:
a) – apurar se é de reconhecer à herança indivisa personalidade judiciária;
b) – apurar do cabimento legal da intervenção espontânea dos herdeiros H…, I… e G….
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II – Fundamentação

A factualidade a ter em conta é a já referida no relatório desta peça.
Vamos então ao tratamento da primeira questão enunciada.
A lei, no art. 6º do CPC – onde se prevêem excepções ao princípio da correspondência entre personalidade jurídica e personalidade judiciária previsto no art. 5º nº2 –, atribui na alínea a) de tal preceito personalidade judiciária à herança jacente, isto é, à herança cujo titular ainda não esteja determinado (art. 2046º e sgs. do C. Civil).
Atribuindo tal personalidade à herança jacente, por analogia baseada em argumento de maioria de razão é também de considerar que a atribui à herança indivisa (já aceite mas ainda não partilhada) – expressamente neste sentido vide “Manual de Processo Civil” de A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 111 (texto e nota 1 referida em tal página), onde se refere a tal propósito que embora não estando ainda efectuada a partilha é em nome da herança (ou contra a herança), embora carecida de personalidade jurídica, que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário.
Aliás, tal entendimento é desde logo confirmado pelo disposto nos arts. 2079º, 2088º, 2089º e 2091º nº1 do C. Civil, nos quais se prevê o exercício pelo cabeça de casal e/ou por todos os herdeiros, conforme os casos, dos “direitos relativos à herança” (expressão expressamente utilizada pela lei no último daqueles preceitos e que abarca as situações ali previstas e, como ali mesmo se refere, as previstas nos restantes preceitos).
Acrescente-se ainda que chegou a ser proposta pela chamada “comissão Varela” de revisão do Código de Processo Civil a previsão da atribuição expressa de personalidade judiciária à herança não partilhada ao lado da herança de titular indeterminado, mas acabou por se decidir [na redacção da alínea a) do preceito em análise, que é a resultante do Dec.Lei 329-A/95 de 12 de Dezembro)] não o fazer porque se entendeu que tal fórmula “ia longe demais na atribuição de personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante” [como nos dá conta Lebre de Freitas, no seu “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, Vol. 1º, a págs. 18 e 20 (anotações 1 e 3 ao art. 6º), citando Teixeira de Sousa, “As partes, o objecto e a prova na acção declarativa”, Lisboa, Lex, 1995, pág. 18].
Deste modo, e em conformidade com o que se referiu, é de, contrariamente ao defendido na decisão sob recurso e dando procedência ao entendimento da recorrente, reconhecer que a herança indivisa – como a ora autora – tem personalidade judiciária, devendo, por isso, ser em seu nome (como o foi) que a presente acção deve ser proposta.
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Passemos agora à segunda questão enunciada.
A herança indivisa pode, conforme os casos, estar em juízo representada pelo cabeça de casal ou por todos os herdeiros (arts. 2088º, 2089º e 2091º nº1 do C. Civil).
Tendo a acção sido proposta em nome da herança só por um herdeiro que alegou ser o respectivo cabeça de casal, tendo sido questionada tal qualidade em relação a tal herdeiro e tendo a acção por objecto a reivindicação de imóveis da herança, a intervenção de todos os herdeiros, face ao disposto no art. 2091º nº1 do C. Civil (onde se preceitua que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”), assegura de forma eficaz a regularidade daquela representação.
Efectivamente, tal intervenção ultrapassa e inutiliza a questão de se saber se o herdeiro que teve a iniciativa de propor a acção em nome da herança é que deve ser considerado ou não o cabeça de casal e ainda a eventual questão de saber se acção cabe dentro da previsão do art. 2088º nº1 (casos em que age em representação da herança apenas o cabeça de casal), já que além de cobrir qualquer possível irregularidade de representação da herança cobre também qualquer possível insuficiência da representação da herança só por aquele herdeiro relacionada com o objecto da acção (dadas as diferentes exigências para a representação da herança previstas nos arts. 2088º nº1 e 2091º nº1 do C. Civil).
A intervenção espontânea dos herdeiros H…, I… e G… assegura que a regularidade de representação da herança exigida pelo art. 2091º nº1 do C. Civil fique garantida nos termos sobreditos.
Tal intervenção é desde logo de admitir com base no disposto no art. 23º nº1 do CPC, onde se prevê a sanação da irregularidade de representação mediante a intervenção ou citação do representante legítimo (no caso trata-se da intervenção das restantes pessoas necessárias a assegurar a representação), e não é sequer necessário que a mesma tenha que revestir a forma do incidente da intervenção principal espontânea previsto no art. 320º e sgs. do CPC, já que esta forma de intervenção, como do âmbito traçado à mesma no art. 320º se vê, destina-se a acautelar a legitimidade plural (que aqui não está em causa, pois quem propõe e deve propor a acção é, como já vimos, a herança e mais ninguém) e não a irregularidade de representação.
É pois de admitir a referida intervenção espontânea nos autos dos herdeiros supra identificados.
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Sumariando o decidido (art. 713º nº7 do CPC):
I – Atribuindo a lei personalidade judiciária à herança jacente, por analogia baseada em argumento de maioria de razão é também de considerar que a atribui à herança indivisa (já aceite mas ainda não partilhada) – como tal, não estando ainda efectuada a partilha é em nome da herança (ou contra a herança), embora carecida de personalidade jurídica, que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário;
II – Tal entendimento é desde logo confirmado pelo disposto nos arts. 2079º, 2088º, 2089º e 2091º nº1 do C. Civil, nos quais se prevê o exercício pelo cabeça de casal e/ou por todos os herdeiros, conforme os casos, dos “direitos relativos à herança” (expressão expressamente utilizada no último daqueles preceitos e que abarca as situações ali previstas e, como ali mesmo se refere e dali decorre, as previstas naqueles outros preceitos);
III – A intervenção espontânea de herdeiros destinada a que a herança indivisa passe a figurar representada por todos os herdeiros é desde logo de admitir com base no disposto no art. 23º nº1 do CPC – onde se prevê a sanação da irregularidade de representação mediante a intervenção ou citação do representante legítimo – e não é sequer necessário que a mesma tenha que revestir a forma do incidente da intervenção principal espontânea previsto no art. 320º e sgs. do CPC, já que esta forma de intervenção, como do âmbito traçado à mesma no art. 320º se vê, destina-se a acautelar a legitimidade plural (que não está em causa quando quem propõe e deve propor a acção é a herança e mais ninguém) e não a irregularidade de representação.
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III – Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, revogando-se a decisão recorrida, admite-se a intervenção nos autos dos herdeiros H…, I… e G… para assegurar a regularidade de representação da herança autora e ordena-se o prosseguimento dos ulteriores termos do processo.
Sem custas.
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Porto, 26/09/2011
António Manuel Mendes Coelho
Ana Paula Vasques de Carvalho
Manuel José Caimoto Jácome