Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0744023
Nº Convencional: JTRP00040854
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
Nº do Documento: RP200712120744023
Data do Acordão: 12/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 292 - FLS. 264.
Área Temática: .
Sumário: Se o arguido se conformou com o exame efectuado por alcoolímetro, não pedindo a contraprova, não pode depois, quando já não é possível essa contraprova, pôr em causa a fiabilidade dos resultados daquele exame.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto:

No tribunal Judicial de Ovar foi decidido condenar o arguido B………., como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p e p. pelo art. 292º, n.º 1 e art. 69º, ambos do Código Penal, na pena de 110 dias de multa, à razão diária de €3,00, o que perfaz a quantia global de €330,00 (trezentos e trinta Euros) e ainda na sanção acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 10 meses, nos termos do disposto no art.º 69º, n.º 1 do Código Penal de 1995, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 77/2001, de 13/07.
Inconformado recorre o arguido rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. É facto notório que os testes qualitativos de despistagem de álcool no sangue efectuado pelos aparelhos Drager, não são 100% fiáveis e contêm uma margem de erro.
2. Tal é verificável pelas declarações dos senhores agentes e pelos inúmeros despachos emitidos pelo governo e demais institutos que, consubstanciados em estudos científicos mandam aplicar uma margem de erro.
3. Perante tal evidência cumpre ao Ministério Público, com funções de carrear prova para o processo e ao tribunal enquanto julgador assegurar a eliminação de dúvidas, que seriam dissipadas pela análise ao sangue.
4. Não tendo as dúvidas sido dissipadas, sob a esteira do princípio in dubio pro reo, constitucionalmente consagrado deve o arguido ser absolvido.
5. A sentença in casu ao não considerar a existência de uma margem de erro, ao não considerar a dúvida real e reconhecida sobre qual o montante de álcool no sangue, violou o princípio in dubio pro reo.
6. Deveria ter sido dado por provado que para além do arguido ter esperado 3 horas para conduzir, esteve quase 4 horas a dormir, antes de conduzir.
7. Tal consubstancia um erro sobre as circunstâncias, atento que, sem censura, o arguido pensava-se em condições de conduzir, pensando legitimamente, que não acusaria uma taxa de alcoolemia proibida.
8. Sem prescindir a aplicação de uma multa aplicada a um desempregado, casado com uma doméstica deve ser substituída por trabalho comunitário.
9. A sanção acessória de inibição de condução deve ser reduzida para metade.

Admitido o recurso o Ministério Público respondeu concluindo pela manutenção da decisão recorrida. Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi e parecer que o recurso não merece provimento.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do Código Processo Penal.
Após os vistos, realizou-se a audiência.

Factos:
No dia 26 de Março de 2007, cerca das 10:00 horas, o arguido conduzia o veiculo automóvel de matricula ..-..-MH, na Rua ………. - Ovar, com uma taxa de alcoolémia no sangue determinada em pelo menos 2,46 g/l, como se veio a apurar com o teste efectuado no aparelho DRAGER modelo 7110 MKIII P.
O arguido agiu de forma voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que daquela maneira exercia, em via pública, a condução de veículo em estado de embriaguez e conhecia esta sua conduta como ilícita e criminalmente punível, e, não obstante, não se absteve de realizar, de forma deliberada livre e consciente.
O arguido é casado, sendo a sua esposa doméstica; O arguido encontra-se desempregado, tendo requerido o Rendimento de Inserção Social, o qual ainda não lhe foi concedido; O arguido vive em casa de familiares; O arguido tem um filho de nove anos de idade a seu cargo; O arguido possui o veículo automóvel da marca Mazda … do ano de 1998; Não são conhecidos antecedentes criminais aos arguido;

O Direito:
O recorrente suscita três questões:
a) A sua absolvição pela aplicação do princípio in dubio pro reo;
b) A substituição da pena de multa por trabalho comunitário;
c) A redução da sanção de inibição a metade.

A - Absolvição do arguido pela aplicação do princípio in dubio pro reo.
Questiona o recorrente a não consideração das faladas margens de erro, numa dimensão inusitada e maximalista: porque há margem de erro, o arguido por via da aplicação do princípio in dubio pro reo, deve ser pura e simplesmente absolvido.
A questão merece ponderação[1].
A Circular que o arguido refere foi emitida pela Direcção-Geral de Viação e pretendeu «esclarecer» que «tendo em conta o erro máximo admissível [legalmente fixado, por remissão para a norma NF X 20-701, da AFNOR] para (...) [os alcoolímetros], a taxa de álcool no sangue (TAS) pode situar-se num intervalo, para mais ou para menos, em relação ao valor registado, o que significa que, através dos alcoolímetros aprovados nos termos legais e regulamentares, só é possível, com rigor, apurar que o condutor apresentava uma TAS compreendida entre “x” e “y”, sendo “x” a TAS registada menos a margem máxima de erro e “y” a TAS registada mais a margem máxima de erro admissível»; e por isso mesmo, «uma vez que a referida falta de exactidão apenas pode funcionar em benefício dos infractores, só devem ser levantados autos de contra-ordenação por condução sob o efeito do álcool quando a TAS registada, deduzida da margem máxima de erro, for igual ou superior a 0,50 g/l», o que haveria igualmente valer no tocante à qualificação de determinada TAS como integrando o tipo de crime de condução em estado de embriaguez.
Os alcoolímetros são os instrumentos destinados a medir «a concentração de etanol através da análise do ar profundo dos pulmões, e que pode[m] ser utilizado[s] para fins de prova judicial», na definição da Recomendação OIML R 126 (1998), da Organização Internacional de Metrologia Legal[2].
No caso do alcoolímetro em causa nestes autos – o Alcotest MK III, da Dräger –, a medição da concentração de álcool etílico no ar expirado é realizada através de dois sistemas analíticos independentes, um por espectroscopia de infravermelhos e outro por análise electroquímica, cujos resultados são depois ponderados antes da determinação da taxa de alcoolemia por parte do equipamento, o que naturalmente aumenta o rigor e fiabilidade do resultado da medição.
A Direcção-Geral de Viação, através da Circular atrás mencionada, no entanto, veio lançar dúvidas sobre a exactidão das medições realizadas com recurso aos alcoolímetros (e naturalmente também ao Alcotest MK III), apontando para a margem de erro máximo que legalmente lhes está fixada para justificar a sua posição e para fixar, no valor dessa mesma margem de erro, a correcção que, em seu entender, tem de introduzir-se nas medições efectuadas com os referidos instrumentos para que as mesmas mereçam credibilidade ao nível probatório. Mas existirá, realmente, o «problema» alegadamente detectado pela Direcção-Geral de Viação, e será admissível a solução que para ele por esta é indicada?
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Subjacente à posição da Direcção-Geral de Viação parece estar a consideração do princípio in dubio pro reo.
O julgador não pode deixar, antes de tomar qualquer decisão (designadamente em matéria probatória), de enquadrar as questões no seu contexto sistemático e técnico-científico, e no caso, em especial, no contexto dos ensinamentos da metrologia, enquanto ciência da medição, no seio dos quais a problemática em discussão tem verdadeiramente de ser colocada e resolvida. Vejamos, pois, o que nos ensina tal ciência com interesse a este respeito.
Medir é o procedimento experimental pelo qual o valor momentâneo de uma grandeza física é determinado como um múltiplo e/ou uma fracção de uma unidade, estabelecida por um padrão, e reconhecida internacionalmente. O conceito de medição evoca, por isso, uma ideia de comparação entre uma dada grandeza com outra da mesma espécie, tomada como unidade (idealmente, esta medição deveria revelar o valor «verdadeiro» da grandeza a determinar, embora se opere normalmente com o conceito de valor verdadeiro convencional, por aquele não ser possível de alcançar). Uma medição perfeita, isto é, isenta de erros, no entanto, só poderia existir se existisse também um instrumento de medição perfeito e a grandeza sob medição tivesse um valor único, perfeitamente definido e estável. O problema, porém, é que não existem instrumentos de medição perfeitos, e por isso mesmo, nenhuma medição está isenta de erro, caracterizado como a diferença entre o valor da indicação do instrumento de medição utilizado e o valor verdadeiro (no sentido indicado) do que se pretende medir. Ignorando os grosseiros (de todo imponderáveis e que só a definição de protocolos de medição adequados, e a sua estrita aplicação na prática, poderá, em princípio, evitar), há erros há que, sendo sistemáticos, podem ser conhecidos e, consequentemente, cujos efeitos podem ser controlados, e há erros que, sendo aleatórios, não podem ser (ou não podem ser totalmente) compensados.
Para além disso, ainda que todos os componentes de erro conhecidos ou suspeitos tenham sido avaliados, e com base nos seus valores tenham sido realizadas todas as correcções adequadas e possíveis, permanecerá sempre uma dose de incerteza sobre a correcção do resultado, isto é, uma certa insegurança acerca de quão correctamente o resultado da medição representa o valor da grandeza objecto de medição.
Do ponto de vista metrológico é, pois, importante distinguir entre erro e incerteza. O erro é um valor único, que consiste na diferença entre um resultado individual e o valor verdadeiro daquilo que se pretende medir, e que se for conhecido pode ser aplicado na correcção do resultado; já a incerteza toma a forma de um intervalo de valores que podem com razoabilidade ser atribuídos ao objecto da medição (precisamente porque se desconhece o seu valor verdadeiro), sendo predicável de todos os resultados que sejam obtidos em condições similares.
Na linguagem comum, a palavra incerteza está associada ao conceito geral de dúvida. No entanto, e na perspectiva do metrologista, falar-se de incerteza da medição não implica que se coloquem dúvidas sobre a validade dessa medição, porquanto o conhecimento da incerteza implica, precisamente, uma confiança acrescida na validade do resultado de uma medição.
Nestas circunstâncias, pois, o jurista não pode, considerando os conceitos (metrológicos) de incerteza ou erro, concluir, sem mais, sempre que com eles se tope, pela inevitável existência de uma dúvida («razoável») para efeitos jurídico-penais. A fazê-lo, estaria a transpor, sem os entender, conceitos próprios da ciência metrológica, ignorando o seu sentido técnico rigoroso e utilizando-os, antes (de forma ilegítima), como sinónimos dos conceitos equivalentes da linguagem comum quando, como se vê, estão muito longe dela.
Ora, como facilmente se compreende, um dos aspectos que pode influenciar fortemente o resultado de uma medição é, naturalmente, a precisão do instrumento nela utilizado, termo que se utiliza aqui, num sentido não totalmente rigoroso, para aludir à margem de erro máximo admissível (do ponto de vista metrológico) para esse mesmo instrumento, entendida como a faixa de valores, centrada em torno do zero, que, com uma probabilidade definida, contém o maior erro do qual pode estar afectada qualquer indicação por ele apresentada, considerando os erros sistemáticos e aleatórios em toda a sua faixa de medição, sempre respeitando as condições de operação especificadas pelo respectivo fabricante.
O erro máximo de um instrumento de medição é um parâmetro característico desse mesmo instrumento e não de um processo de medição em particular, afigurando-se-nos não ser correcto dizer-se, sem mais, que toda e qualquer medição se encontra necessariamente afectada de um erro equivalente à margem de erro máximo que metrologicamente é admissível para instrumentos da classe de exactidão do instrumento para ela utilizado. A definição da margem de erro máximo de um instrumento de medição visa, ainda e sempre do ponto de vista metrológico, a determinação dos limites máximos do erro de medição associado a esse instrumento nas suas condições normais de operação e que se entendem ainda toleráveis para que se possa reconhecer às medições por ele efectuadas aptidão ou idoneidade para a finalidade a que se destinam.
Instrumentos destinados a efectuar medições similares podem, naturalmente, ter margens de erros (máximo) diferentes, consoante os fins a que se destinam: numa balança de um supermercado poderá admitir-se uma margem de erro máximo que seria de todo impensável aceitar numa balança utilizada num laboratório farmacêutico, por exemplo. Mas em qualquer dos casos, precisamente porque a margem de erro é definida dentro de limites considerados toleráveis para a respectiva finalidade, pode atribuir-se fiabilidade ou credibilidade às medições obtidas através de um ou outro dos instrumentos.
Isto para dizer, no fundo, que ao definir as margens de erro máximo admissíveis para a validação/certificação de um instrumento de medição como alcoolímetro capaz de produzir medições susceptíveis de serem utilizadas, num processo judicial, como prova efectiva da presença de uma determinada concentração de álcool etílico no sangue do sujeito submetido a exame, o legislador não pretendeu lançar sobre o resultado de tais medições qualquer dúvida (ou reconhecer que esse resultado pode ser susceptível de qualquer dúvida), mas antes assegurar que, mantendo-se os eventuais erros de medição dentro das margens de erro máximo legalmente previstas, os resultados de quaisquer medições por eles realizadas devem ter-se por credíveis. Precisamente o oposto, afinal, do entendimento defendido pela Direcção-Geral de Viação[3].
Aliás, se se aceitasse a existência de uma dúvida razoável – a exigir uma decisão pro reo – sempre que uma medição fosse efectuada por um instrumento para cuja classe de exactidão estão metrologicamente previstas margens de erro máximo (e tal, pela própria natureza do processo de medição, acaba por ser, como se disse já, praticamente inevitável), então seria impossível (ou muito difícil) trabalhar com «certezas» no processo penal, uma conclusão que, cremos, poucos estarão dispostos a aceitar, atendendo até a que o processo judicial visa uma verdade prática, e não a afirmação de uma qualquer verdade metafísica (leia-se, absoluta).
Muito sucinta e conclusivamente, sem entrar em linha de conta com todas as questões que o problema suscita, diremos que, quer o direito penal, quer o contra ordenacional encontra-se, formatado pelo princípio da legalidade. Ele implica, na formulação do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição, que «ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior». Segundo o artigo 1.º, n.º 1 do Código Penal: «só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática»; o art.º 2º do RGCO dispõe por sua vez que «só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática».
Na sua vertente formal – e no que aqui concretamente nos interessa – o princípio da legalidade impõe que só a lei (no seu preciso sentido jurídico-constitucional) pode valer como fonte directa de direito penal ou contra-ordenacional, isto é a definição do ilícito, penal ou contra-ordenacional, cabe necessariamente ao legislador e apenas a ele. No caso, o respeito por este princípio vem a implicar, que ao julgador ou às autoridades administrativas a quem compete aplicar a legislação (penal) pertinente não é lícito substituir – ou, sponte sua, frustrar –, sem mais, o esquema legalmente instituído de punição da condução rodoviária sob influência do álcool, em favor do sistema que, em abstracto, entendam mais adequado, se não tiverem motivos técnico-científicos ponderosos, tal como, aliás, impõe o artigo 163.º do Código de Processo Penal, atenta a natureza de prova pericial (lato sensu) das medições efectuadas pelos alcoolímetros.
Ora se em 1994 o legislador aprovou o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, e definiu – considerando o estado dos conhecimentos técnico-científicos, que no essencial se mantêm válidos ainda hoje – a (inevitável) margem, positiva e negativa, de erro máximo admissível em tais instrumentos para que os mesmos pudessem ser certificados e calibrados, e assim cumprir a sua função probatória no âmbito do processo judicial (ou contra-ordenacional); se tal margem de erro associada a tal exame de natureza pericial foi valorada pelo legislador, como não podia deixar de ser, e considerada (metrologicamente) irrelevante na sua definição de um dado regime punitivo, parece que aos tribunais e demais autoridades encarregadas de aplicar tal regime, não cabe, adaptando o sistema legal, desvirtuá-lo, introduzindo-lhe correcções que não encontram, no texto da lei ou no âmbito dos conhecimentos científicos pertinentes, qualquer acolhimento.
Dir-se-á, no entanto – ignorando tudo quanto se escreveu já sobre a verdadeira natureza e alcance da definição de margens de erro máximo admissível para a certificação e/ou calibração dos alcoolímetros – que para a prolação de um juízo de censura jurídico-penal, ao menos nos casos de valores limite ou de fronteira entre os domínios da punição ou não punição, os Tribunais não deverão ignorar as margens de erro máximo em que as medições efectuadas pelos alcoolímetros se podem mover. Nesses casos, o conceito de dúvida razoável deveria ser mais flexível, de modo a evitar todo e qualquer risco de uma condenação potencialmente injusta.
Mas das duas umas: ou o resultado alcançado pelo alcoolímetro é válido para fins de prova, ou não é; a ideia de que poderá sê-lo depois de correcções não legalmente previstas e totalmente arbitrárias (porque nenhuma garantia há que efectivamente afectem o resultado das medições concretas efectuadas), afigura-se-nos uma terceira hipótese sem qualquer fundamento.
Com efeito, se se entende que as margens de erro máximo admissível (metrologicamente) definidas para os alcoolímetros (como para todos os instrumentos de medição em geral) põem em causa a validade dos resultados obtidos através de tais instrumentos, então não há – a partir deste raciocínio próprio do senso comum – uma dúvida razoável quanto a esses resultados mas relativamente a todo o processo de medição, implicando que o método de pesquisa de álcool no sangue através do ar alveolar expirado teria de ser recusado para efeitos de determinação, em tribunal, da taxa de alcoolemia, ao menos quando estivesse em causa a utilização de alcoolímetros como o em causa nestes autos.
E isto porque o erro em metrologia, como se disse, não se restringe ao erro sistemático (que até pode ser determinado e controlado), mas abrange igualmente erros grosseiros e aleatórios, muitas vezes imponderáveis, que podem ser determinados por inúmeras fontes, algumas intrínsecas ao próprio instrumento (e processo) de medição utilizado, outras extrínsecas, relacionadas com factores tão diversos como o tipo de grandeza a medir, ou de natureza fisiológica e/ou ambiental, etc. (sendo que estes factores, como é sabido, influem profundamente na medição da taxa de alcoolemia no ser humano, como a descrição atrás efectuada já deixa antever), já para não falar do grau de incerteza que afecta toda a medição, e portanto também a medição efectuada por um alcoolímetro, o que mais inculcará a ideia de que é todo o processo de medição da concentração de álcool no ar alveolar expirado, e não apenas o resultado obtido numa sua medição concreta, que uma dúvida a respeito do funcionamento dos alcoolímetros imporá.
Se se entende, pelo contrário, como defendemos, que o resultado determinado por um alcoolímetro que obedeça aos legais requisitos (designadamente em matéria de margem de erro máximo admissível das suas medições) se deve ter, de acordo com os conhecimentos técnico-científicos e metrológicos actuais aplicáveis, como válido – como inequivocamente pretende o legislador, com base no que é cientificamente possível no actual estado do conhecimento – então não há, em nossa opinião, que falar, por referência a uma margem de erro abstracta, de incerteza (rectius, de dúvida) a propósito de uma medição concreta.
Como refere David Goodstein[4], «[o] erro (…) é intrínseco a qualquer medição e, longe de o ignorar, de o esconder ou mesmo de tentar eliminá-lo, os autores de qualquer texto sobre uma experiência científica não deixarão de nele incluir uma cuidadosa análise dos erros, de modo a determinar os níveis da incerteza que afecta o resultado obtido. Enganar-se, podemos dizê-lo, é humano, mas o erro é intrínseco à nossa interacção com a natureza e faz, portanto, parte da ciência».
O importante, pois, não será tanto que se possa assegurar que qualquer medição efectuada por um alcoolímetro se encontra livre de todo e qualquer erro (no sentido metrológico apontado), mas que, do ponto de vista científico, se possa ainda reconhecer, em geral, às medições efectuadas por tal instrumento, plena validade.
E que se pode reconhecer tal validade ao funcionamento dos alcoolímetros é também o que demonstram estudos experimentais que têm sido efectuados relativamente à fiabilidade de vários instrumentos dessa natureza, e designadamente ao em causa nestes autos, que revelam que as medições por eles realizadas, por via de regra, são credíveis (fiáveis), tendendo mesmo a produzir resultados globalmente inferiores aos que são alcançados através da realização de exames hematológicos, o que naturalmente torna as dúvidas suscitadas pela Direcção-Geral de Viação nesta matéria pouco (ou nada) «razoáveis»[5].
De todo o modo, é preciso não olvidar que os condutores não se encontram totalmente desprotegidos contra possíveis medições incorrectas efectuadas pelos alcoolímetros. Tal só seria assim se se tivesse de concluir que o legislador, na conformação do sistema de pesquisa de álcool no sangue alveolar expirado que gizou, trabalhou ao arrepio dos conhecimentos técnico-científicos e metrológicos actuais (ou ao menos sem qualquer apoio neles), assim o tornando arbitrário, acabando por vincular o condutor apanhado nas suas malhas ao resultado de medições pouco credíveis.
Ora, nenhuma destas hipóteses se verifica entre nós: por um lado, o sistema criado pelo legislador respeita os princípios que, de acordo com o actual estado do conhecimento metrológico e científico, são comummente aceites pela comunidade científica nesta matéria. Para além disso, o legislador nunca ignorou a possibilidade de erro na medição efectuada pelos alcoolímetros, razão pela qual os sujeitou a controlo metrológico adequado e rigoroso, quer na sua fase de validação/certificação, quer na subsequente fase de utilização, estabelecendo os critérios indispensáveis a assegurar que a margem de erro máximo dos mesmos não punha em causa a validade dos resultados através deles obtidos, designadamente pela remissão para os parâmetros definidos na já citada norma NF X 20-701, da AFNOR.
Por outro lado, o legislador reconhecendo que o modo de minimizar o erro e/ ou incerteza é aumentar o número de ensaios/exames, consagrou expressamente a possibilidade de o arguido, a quem seja diagnosticada uma taxa de alcoolemia eventualmente geradora de responsabilidade contra-ordenacional ou criminal, requerer a realização de uma contraprova, designadamente através da realização de exames hematológicos que são aqueles que dão maiores (mas, ainda assim, também não absolutas) garantias, do ponto de vista analítico, de aproximação ao «real» valor da taxa de álcool no sangue.
Acontece que o recorrente submetido a exame, conformou-se com o resultado obtido, não tendo requerido a realização de contraprova destinada a infirmar tal resultado e, nessa medida, estabelecer, de forma (mais) inequívoca, a sua taxa de alcoolemia. Se o não faz, optando por aceitar – ou conformando-se com – o resultado do exame efectuado através do alcoolímetro, não pode depois, quando já não é possível realizar a contraprova, invocar qualquer dúvida na prova da sua taxa de álcool no sangue através desse mesmo resultado.
Neste contexto não se verificam os pressupostos para chamar à colação o princípio in dubio pro reo. Cumpre lembrar que em processo penal, e mesmo em sede pericial, a verdade que se tenta atingir não é a «verdade formal», mas a «verdade material». Mas porfia-se pela «verdade material» com a consciência de que não é «absoluta» ou «ontológica», mas uma «verdade judicial, prática e processualmente válida»[6]. Uma última precisão: se os agentes da administração devem obediência às directivas dos seus superiores, já os tribunais «apenas estão sujeitos à lei» art.º 203º da Constituição.

B - A substituição da pena de multa por trabalho comunitário;
A crítica de que a multa aplicada a um desempregado, casado com uma doméstica deve ser substituída por trabalho comunitário, é, no mínimo, precipitada. Como resulta expressamente do art.º 48º do Código Penal, a substituição da multa por trabalho está dependente, além do mais, de requerimento do condenado, pressuposto que não se verificou.

C. - Redução da sanção de inibição a metade.
A medida da inibição varia no caso entre três meses e três anos. Foi-lhe aplicada sanção acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 10 meses.
Na fixação da medida da pena acessória deve atender-se ao critério da determinação da pena referido no art.º 71º do Código Penal[7]. À proibição de conduzir deve assinalar-se e pedir-se um efeito de prevenção geral de intimidação, dentro do limite da culpa. E deve esperar-se que esta pena acessória contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano[8]. Esta pena acessória destina-se a dar «uma lição exemplar»[9] ao arguido pela sua conduta. Importa pôr termo a comportamentos deste jaez, em face dos elevados índices de sinistralidade rodoviária com que se defronta o nosso País, nos quais, a condução sob influência de álcool vem tendo uma larga contribuição[10]. A vida e a integridade física dos demais utentes das vias públicas não pode ficar à mercê de comportamentos criminosos, resistentes a sucessivas campanhas profiláticas. Impõe-se que o direito assuma, dentro do limite da culpa, a sua inestimável função de prevenção geral de intimidação, de modo a contribuir, em medida significativa, para a emenda cívica dos condutores recalcitrantemente imprudentes. Agora também não se pode perder de vista que ao direito penal não cabem tarefas estranhas às suas finalidades. Pretende o arguido que a inibição seja reduzida a metade da que lhe foi fixada. Esquece o recorrente que a medida de inibição foi fixada abaixo do terço inicial.
A posição do recorrente é tributária de uma tradição que se vai instalando nos nossos tribunais, mas sem qualquer justificação, de que as proibições do art.º 69º do Código Penal devem ser fixadas, em princípio, o mais próximo possível do limite mínimo, o que não tem qualquer apoio legal.
Considerando as necessidades de prevenção geral e especial, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo e fazendo apelo ao princípio da proporcionalidade das reacções penais[11] julgamos suficiente e proporcionada a proibição de conduzir veículos com motor aplicada, pelo período de dez meses.

Decisão:
Julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 8 UC.
Honorários de tabela.

Porto, 12 de Dezembro de 2007.
António Gama Ferreira Ramos
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
Abílio Fialho Ramalho
Arlindo Manuel Teixeira Pinto

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[1] Na exposição subsequente acompanhamos de perto a argumentação expendida na decisão proferida no processo comum n.º794/06 1º Juízo Criminal da Comarca de Paredes, subscrita pelo Ex.mo juiz Pedro Meneses.
[2] Disponível online, no endereço http://www.oiml.org/, na secção «publications», que se visitou no dia 15/03/2007; entre nós, o artigo 2.º do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, aprovado pela Portaria n.º 748/94, de 13 de Agosto, define os alcoolímetros como «os instrumentos destinados a medir a concentração de álcool por análise do ar alveolar expirado».
[3] (sobre a conclusão alcançada, mais desenvolvidamente, vd. Maria do Céu Ferreira/António Cruz, Controlo metrológico de alcoolímetros no Instituto Português da Qualidade, comunicação ao 2.º Encontro Nacional da Sociedade Portuguesa de Metrologia, disponível online no endereço http://www.spmet.pt/2encontro_SPMET_1024.htm).
[4] How Science Works, em Federal Judicial Center, Reference Manual on Scientific Evidence, 2.ª ed., 2000, pág. 80.
[5] Assim: M. D. Taylor/B. T. Hodgson, Blood/Breath correlations: Intoxilyzer 5000C, Allocates 7110, and Breathalyzer 900A Breath Alcohol Analysers, «Canadian Society of Forensic Science Journal», vol. 28, 1995, pág. 153 e segs.; B. T. Hodgson/M. D. Taylor, Evaluation of the Draeger Alcootest 7110 MKIII Dual C Evidential Breath Alcohol Analyser, «Canadian Society of Forensic Science Journal», vol. 34, 2001, pág. 95 e segs.; Alan Wayne Jones/Lars Andersson, Variability of the Blood/Breath Alcohol Ratio in Drinking Drivers, «Journal of Forensic Sciences», vol. 41, 1996, págs. 916 e segs. [embora neste caso o alcoolímetro testado não tenha sido o Alcotest 7110]; Rod G. Gullberg, Breath Alcohol Measurement Variability Associated with Different Instrumentation and Protocols, «Forensic Science International», vol. 131, 2003, págs. 30 e segs.).
[6] Castanheira Neves, Sumários de processo criminal, 1968, p. 50-1, F Dias, Direito Processual Penal, 1974, 193-4.
[7] Acórdão da RE de 14.5.96, CJ XXI, tomo III, pág. 286, Acórdão desta Relação de 19.1.94, Ac do Supremo Tribunal de Justiça de 1.3.00, citados por Leal Henriques e Simas Santos, CP anotado, 3.ª ed. pág. 800 e 803, respectivamente, e Ac da RE de 14.5.96 CJ XXI Tomo III, pág. 296.
[8] F. Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, pág. 165, Giuseppe Bettiol, Direito Penal, Parte Geral, IV, pág. 204 e Ac. da RC de 7.11.96, CJ XXI, Tomo V pág.47.
[9] H H Jescheck e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, parte general, 5ª ed. 2002, p. 842.
[10] Segundo os valores obtidos pelo Instituto nacional de Medicina Legal, em 2003 em cerca de oito mil análises ao sangue 53% dessas vítimas tinham consumido bebidas alcoólicas antes dos acidentes, sendo que 33% apresentavam taxas iguais ou superiores a 1,2 g/l, Expresso de 16 de Outubro de 2004, pág. 12.
[11] E. Correia, Direito Penal III (1), 1980, pág. 8 e F. Dias Direito Penal –2 pág. 255.