Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1231/09.3JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE ESCRAVIDÃO
ELEMENTOS DO TIPO
ESCRAVIDÃO LABORAL
Nº do Documento: RP201301301231/09.3JAPRT.P1
Data do Acordão: 01/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O crime de escravidão previsto no art° 159° do C. Penal visou consagrar a que tal respeito se dispõe na Convenção de Genebra sobre a escravatura, assinada em 25/09/1926.
II - Assim sendo, o tipo legal tem de ser interpretado e aplicado à luz dos conceitos e princípios constantes desse texto de Direito Internacional.
III – Por escravatura entende-se «o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade».
IV- Consequentemente, é escrava toda e qualquer pessoa que tenha tal estado ou condição.
V – No entanto, o conceito tem de ser densificado perante as circunstâncias sociais, históricas e políticas contemporâneas, e de acordo com as concepções ético-filosóficas dominantes.
VI – Por isso, cabe na previsão legal a escravidão laboral, nos casos em que a vítima é objecto de uma completa relação de domínio por parte do agente, vivenciando um permanente “regime de medo”, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 1231/09.3JAPRT.P1
Círculo Judicial de Lamego do T. J. de Moimenta da Beira

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Círculo Judicial de Lamego do T. J. de Moimenta da Beira, processo supra referido, foram julgados B… e C…, tendo sido proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:
“a) Absolver o arguido C… da prática de um crime de escravidão, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 159.º, n.º 1, al. a) do C.P.;
b) Condenar o arguido B… pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de escravidão, p. e p. pelo artigo 159.º, al. a) do C.P., na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.
c) Condenar o arguido C… pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de escravidão, p. e p. pelo artigo 159.º, al. b) do C.P., na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
d) Condenar também os arguidos no pagamento das custas do processo crime (artigos 513.º e 514.º do C.P.P.), fixando-se, individualmente (para cada um dos arguidos) a taxa de justiça em 5 (cinco) U.C..
Notifique e deposite.
Comunique-se ao Instituto de Reinserção Social (cfr. fls. 1273).
Prisão preventiva.
Cumpre, neste momento, proferir decisão de reexame dos pressupostos da prisão preventiva oportunamente aplicada aos arguidos (cfr. artigos 213.º, n.º 1, al. b) do C.P.P.), para a qual, atenta a fase processual em que nos encontramos, se torna dispensável a audição prévia dos arguidos (cfr. artigo 213.º, n.º 3 do C.P.P.).
E, assim, por se encontrarem agora reforçados (com a decisão condenatória proferida por este Tribunal) os pré-existentes pressupostos de facto e de direito que motivaram a aplicação aos arguidos C… e B… da medida de coação prisão preventiva, atendendo ainda a que o seu prazo máximo não se encontra esgotado, decide-se pela sua manutenção.
Nos termos e pelos fundamentos explanados, decide-se manter a prisão preventiva oportunamente aplicada aos arguidos, aguardando os arguidos, nessa medida, os ulteriores termos do processo.”
*
*
Deste Acórdão recorreram os condenados B… e C…, formulando as seguintes conclusões:
“1. Os recorrentes B… e C…, foram condenados como autores do crime de escravidão, nas penas, respectivas de 7 anos e seis meses de prisão e 5 anos e seis meses de prisão;
2. Não se conformam com tal condenação, porque entendem não ter cometido tal crime;
3. Daí o presente recurso para Vªas Exªas em que pretendem que seja alterada a matéria de facto dada como provada reapreciando-se a prova gravada, nos termos adiante indicados e devendo concluir-se pela absolvição dos arguidos pelo crime por que foram condenados;
4. Ou, subsidiariamente, que seja alterada a incriminação relativa ao arguido B…, ou ainda subsidiariamente, sejam alteradas as penas a aplicadas, e a sua execução, nos termos adiante indicados;
5. Como introdução às suas alegações, não podem deixar de referir a exigência do elevado grau de certeza jurídica, no que respeita à prova, a severidade da punição prevista, no artº 159º do C. Penal;
6. E, na mesma sede, não podem deixar de invocar os termos em que, a investigação do caso dos autos se processou, considerando-se entender-se o caso presente como um crime de catálogo, em que se procurou, salvo o devido respeito, encaixar na mesma, os requisitos ideologicamente estabelecidos para a verificação desse crime;
7. Os recorrentes entendem que devem ser alterados parte dos factos dados como provados, pelo Tribunal Colectivo;
E assim,
8. Entendem dever ser dados como não provados os pontos 6, 12, 15, 16, 18, 20, 21, 22, 25, 26 parte final, 27, 28, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37;
9. Como devem ser alterados os factos dados como provados, nos pontos 1 e 38, no que respeita à época em que ocorreram;
10. Tudo pelas razões invocadas no texto desta motivação, que aqui se dão por reproduzidas;
11. E que nomeadamente respeitam à prova documental, às declarações dos arguidos, às declarações do assistente D…, aos depoimentos das testemunhas e à prova indirecta circunstancial por simples induções ou presunções utilizadas pelo Tribunal Colectivo, para fixar a matéria de facto impugnada;
E assim, resumindo:
12. No que respeita à prova documental, constante de fls. 833, verifica-se que, o D…, iniciou trabalho em Espanha em 29/05/2007, pelo que a época indicada no ponto 1 dos factos provados, está incorrectamente julgada;
12. Também o ponto 38 dos factos provados está incorrectamente julgado, porque há recibos juntos a fls. 202 e seguintes, que indicam que o E… trabalhava em Espanha, no mês de Janeiro de 2007, e há outro recibo do C…, que trabalhava em Espanha em Dezembro de 2006, Se trabalhavam em Espanha não podiam encontrar-se em Mirandela no inicio do ano de 2007, o que imporá alteração da matéria de facto nesse ponto;
13. Igualmente da prova documental atrás citada resulta que as residências dos arguidos B… e C… eram diferentes em Espanha como também eram diferentes em Portugal, o que leva a concluir que não tinham os contactos profissionais que, o Tribunal considerou existentes nos pontos 27, 30, 34 e a fls. 21 parte final, do Acórdão;
14. O que, conjuntamente com as outras razões atrás invocadas no texto da motivação, deverá levar a que tais factos se dêem como não provados;
15. As declarações dos arguidos foram abertas e colaborantes e deverão ser valorizadas como tal;
16. Já no que respeita *as declarações do assistente, a sua credibilidade está manifestamente afectada, pelo que baseando-se a convicção do Tribunal essencialmente em tais declarações - já que nenhuma das testemunhas de acusação teve conhecimento directo dos factos – os factos indicados na conclusão 8ª deverão ser dados como não provados;
17. A credibilidade das declarações do assistente é nenhuma, porque é parte interessada e interesseira, constituindo-se assistente e procurando uma indemnização,
18. Porque se trata de pessoa influenciável, de um alcoólico, desenraizado social e familiarmente, com lapso de memoria frequentes depondo de uma maneira pouco clara, imprecisa e contraditória, inventando situações como as relativas à carrinha Ford, e com contradições entre o que declarou para memoria futura e o que declarou perante o Tribunal Colectivo.
19. Declarações aliás contraditadas, pelo depoimento das testemunhas de defesa F…; G… e H…, cuja credibilidade não deve ser posta em causa, sendo as únicas testemunhas que tiveram convencimento presencial dos factos ocorridos em Espanha;
20. Por toda estas as razões e as mais invocadas no texto desta motivação, as declarações do assistente, não podem servir de prova bastante, para dar como provados os factos indicados no ponto 8 destas alegações;
21. O depoimento das testemunhas de acusação, em nada relevam para a fixação dos factos integradores do crime do artº 159º;
22. O recurso, a prova indirecta, ou extracção de ilações ou presunções, do modo como o Tribunal Colectivo o fez, aparece como ilegal e injustificada, contrariando frontalmente, os princípios invocados no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça atrás citado de 9/02/2012;
23. Todas estas razões deverão levar a que os factos da conclusão 8ª, sejam sindicados por este Tribunal, no sentido de serem dados como não provados; Se assim se não entender,
24. As razões invocadas são suficientes para criar no julgador uma dúvida legítima, duvida essa que o Tribunal Colectivo devia ter acolhido, e que o não fez;
25. Violando então, os princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo, constantes do artº 2º e 32º da Constituição da Republica Portuguesa, que assim terá sido violada;
26. Mesmo considerando os factos dados como provados na sentença, entendem os recorrentes que não praticaram o crime de escravidão porque foram condenados;
27. O crime do artº 159º do C. Penal. exige que o agente disponha do ofendido como uma coisa, que seja tratado como objecto ou propriedade em regime de sujeição absoluta, o que se não verifica no caso presente, pelo que tal disposição legal foi violada;
28. Tal como resulta da fonte deste artigo, Convenção de Genebra de 1926 e, dos ensinamentos de Maia Gonçalves, Vítor Sá Pereira, nos locais atrás citados;
29. Não se verifica tal coisificação do assistente D…, não se verificando assim a prática do dito crime;
30. Aliás o mesmo assistente D… usava de todas as facilidades que vêm referidas no texto das alegações de fls. 80 e aqui se dão por reproduzidas por economia processual;
31. A haver alguma responsabilidade penal do arguido B…, tal responsabilidade enquadrar-se-ia no crime do artº 160º do C. Penal. se vier a entende-se que houve exploração do trabalho do assistente, valendo-se o arguido de alguma situação de vulnerabilidade do mesmo, disposição legal que terá sido violada;
32. Assim sendo, a pena a aplicar seria dentro da moldura penal de 3 a 10 anos, não devendo ser-lhe aplicada pena superior a 3 anos e meio;
33. Por simples alteração da qualificação jurídica, ou com reenvio à 1ª Instância do processo para cumprimento do disposto no artº 358º do C.P. Penal, que neste caso teria sido violado;
34. Então a execução da pena a aplicar ao arguido B… deveria ser suspensa, pelas razões constantes de fls. 83, desta motivação que aqui se dá por reproduzida;
Subsidiariamente e sem prescindir;
35. Se este Alto Tribunal, não acolher – o que por cautela de patrocínio tem de admitir-se – as razões atrás invocadas, então a pena aplicada ao arguido B…, deverá ser reduzida, consideravelmente, dentro da moldura legal;
36. Tal pena aparece como excessiva e desproporcional, excedendo notoriamente as exigências da prevenção geral (não há noticia de condenações em Portugal por tal crime), e excede manifestamente a culpa do arguido;
37. O Tribunal não valorizou devidamente a personalidade do arguido, a sua colaboração com a Justiça, o facto de ser um delinquente primário, ser pobre e ter 5 filhos menores de tenra idade a seu cargo, sendo assim violado o disposto no artº 71º do C. Penal;
38. A pena a aplicar-lhe devia ser muito próxima do mínimo legal e nunca superior a 5 anos e meio;
39. Como já se conclui o arguido C… não terá cometido o crime de escravidão previsto na alínea b) do artº 159º do C. penal;
40. Não se prova o dolo especifico – intenção – elemento do tipo previsto no artº 159º alínea b) do C. Penal, que assim terá sido violado;
Por outro lado,
41. Tendo-lhe sido imputado o crime a titulo de dolo eventual, tal não se verificará, já que os pontos 24, 27 e 30, dos factos provados foram incorrectamente decididos, já que se atribuem ao arguido C…, factos que apenas foram praticados pelo arguido B…;
42. Houve desse modo, erro notório na apreciação da prova, no que respeita a tais pontos de facto, o que constitui erro notório na apreciação da prova, vicio previsto no artº 410º nº 2 da alínea c) do C.P. Penal, que terá sido violado;
43. Deverá pois o arguido ser absolvido pela prática do crime de que foi condenado;
Só por cautela de patrocínio;
44. Se assim se não entender, o que só por hipótese tem de admitir-se então a pena aplicada ao arguido C… não devia ser superior ao mínimo legal de 5 anos, dada a sua diminuta culpa e as circunstâncias atenuantes existentes a seu favor, em obediência ao disposto no artº 71º do C. Penal, que terá sido violado; E,
45. O que a verificar-se deverá conduzir à suspensão da execução da pena, pelas razões indicadas a fls. 88 destas alegações, aqui dadas por reproduzidas por economia processual;
46. Deve pois revogar-se a douta sentença, nos termos acima indicados, com todas as legais consequências;
Assim farão Vªas Exªas
Justiça.”
*
Em1ª Instância, o MºPº defendeu a improcedência do recurso, concluindo pela seguinte forma:
“a. O Tribunal errou ao julgar provados os factos vertidos nos pontos nº 5 a 11 dos factos provados da forma como o fez.
b. No mais, a prova produzida foi correctamente valorada, pelo que não se verifica qualquer erro de julgamento da matéria de facto.
a. Não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova.
b. Não foi violado o princípio in dubio pro reo.
c. Os factos cometidos pelos recorrentes B… e C… integram, respectivamente, a prática de um crime de escravidão, p. e p. pelo art. 159.º al. a) e b) do Código Penal.
d. As penas de prisão concretamente aplicadas foram correctamente doseadas e são adequadas às finalidades de prevenção que com ela se visam alcançar e proporcionadas ao grau de culpa dos agentes.
e. Não foram violadas quaisquer normas jurídico-constitucionais, jurídico-penais, nem jurídico-processuais penais.
Porém, V. Exas. farão a costumada
Justiça”
*
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, igualmente, pela improcedência do recurso, subscrevendo a resposta do MºPº em 1ª Instância.
*
Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor do Acórdão recorrido.
Factos Provados:
“1. Em data, não concretamente apurada, do ano de 2006, D… encontrava-se a residir temporariamente num Centro de Acolhimento (“I…”) em Lisboa/…, quando ali surgiu um indivíduo de etnia cigana que não conhecia e que depois soube tratar-se do arguido B…, que lhe propôs a ida para a atividade agrícola em Espanha, informando-o que teria de permanecer naquele país até ao fim da campanha (vindima), isto é, até ao final do mês de Outubro.
2. Como contrapartida para a prestação daquele serviço, iria auferir a importância diária de €20,00/dia (a receber, em “bolo”, no final de cada mês), “com tudo incluído” (transporte, alojamento e alimentação); à parte, cabia-lhe suportar os custos do consumo de tabaco e álcool.
3. Porque se encontrava desempregado, sem perspectivas de trabalho e vivendo sérias dificuldades financeiras, aceitou a proposta formulada, decidindo acompanhá-lo para aquele país.
4. Foram ainda acompanhados por dois outros indivíduos/trabalhadores.
5. Fizeram-se transportar na viatura do arguido B…, tratando-se de um furgão Mercedes-Benz, de cor verde, de matrícula desconhecida.
6. Deslocaram-se de imediato para a residência que aquele mantinha arrendada em Espanha/…/…, ali ficando instalados com aquele e respectiva família (a companheira, J…, o “sogro”, o arguido C… e a “sogra”);
7. Os três trabalhadores ficaram alojados no sótão do imóvel, acompanhados de outros trabalhadores que já ali se encontravam; 8. De imediato o arguido B… solicitou aos trabalhadores os respectivos Bilhetes de Identidade, alegando necessitar dos mesmos para regularização da situação laboral / “dar de alta”, mantendo aquele documento na respectiva posse e devolvendo-lhos volvidos alguns meses;
9. O arguido B… acompanhou-os ainda a uma instituição bancária, ali tendo procedido à abertura de uma conta, co-titulada pelo referido arguido (aquele havia argumentado que tal procedimento era condição para recebimento das remunerações pagas pelos patrões espanhóis).
10. A partir daquele momento e durante cerca de três anos coube a D… a realização de todo o tipo de tarefas agrícolas na província de …/Espanha, por conta do arguido B… (efectuou ali diversas campanhas agrícolas, designadamente vindima - Setembro/Outubro, poda - Dezembro/Janeiro, apanha do pimento, da couve e da maçã).
11. Como as tarefas eram realizadas em diferentes pontos daquela província, iam-se também deslocando, ficando, nessas alturas, D… alojado inicialmente num camião onde dormia em beliches do tipo militar e, posteriormente, em tendas de campismo, sendo que o arguido e demais elementos da respectiva família ficavam em “camiões-vivenda”/caravanas/roulottes, formando acampamentos.
12. O arguido B… avisou D… que não poderia abandonar os “acampamentos” sem a sua autorização. Este chegou a sair algumas vezes, sempre com a autorização daquele, deslocando-se a cafés nas imediações.
13. O trabalho (rotina diária) em Espanha processava-se normalmente da seguinte forma:
- De manhã (no Verão às 07H00, no Inverno às 08H00) deslocavam-se para as “fincas” nas “carrinhas” daqueles (Mercedes-Benz, de cor verde, Ford …, Citroen …, e Toyota …, de cor amarela, com matrícula portuguesa desconhecida), usualmente pelo arguido B… ou pelo arguido C…;
- Pelas 10H00, efectuavam uma pequena paragem para “a merenda”;
- Almoçavam no período compreendido entre as 12H00/12H30 e as 13H00/13H30; as refeições ocorriam no “campo” e eram compostas, normalmente, de arroz/massa, “espinhaço/osso de frango” e lentilhas.
- O arguido e os elementos da respectiva família alimentavam-se nos mesmos locais, cabendo-lhes a “melhor parte da comida - a carne”; aqueles também trabalhavam, orientando as tarefas dos restantes trabalhadores e controlando/fiscalizando a prestação laboral; quando se apercebiam da paragem de qualquer trabalhador, logo intervinham, impondo a continuação do trabalho;
- Regressavam ao “acampamento” pelas 18H00/19H00, ali jantando, após tomarem banho num qualquer rio/riacho/canal que houvesse nas imediações;
- Faziam as necessidades fisiológicas “no campo”;
- Não se encontravam “fechados”, mas o arguido B… impunha alguns condicionalismos às saídas dos “acampamentos” (tal sucedia apenas quando o mesmo permitia e visando a deslocação a cafés; ás companheiras cabiam as “tarefas domésticas”).
14. Quanto à remuneração, no final de cada mês, o patrão espanhol entregava ao arguido B… os cheques correspondentes às remunerações devidas aos trabalhadores, deslocando-se aquele com os trabalhadores ao banco, entregando a cada um, apenas à entrada do mesmo, o respectivo cheque e aguardando pela saída dos trabalhadores, altura em que lhes retinha os valores correspondentes.
15. Se questionado, o arguido B… respondia que “não tinha dinheiro para lhes entregar”; se reclamavam eram agredidos fisicamente por aquele (designadamente, com murros) o que sucedeu por diversas vezes com o assistente D….
16. Durante aquele período de cerca de três anos, até ao dia 12 de Agosto de 2009, e enquanto prestou o seu trabalho por conta do arguido B…, este apenas lhe entregou, em alguns fins-de-semana, a importância de € 5,00; ademais, por alturas de um Natal (e uma única vez), entregou-lhe cerca de € 50,00.
17. Durante aquele período, deslocaram-se a Portugal sempre por alturas da Páscoa e no mês de Agosto, onde permaneciam por períodos que duravam entre 10 dias a 1 mês.
18. Em Portugal dedicavam-se à venda ambulante de chapéus, guarda-chuvas, cestos e balões em diversas feiras e festas populares (nomeadamente, em … e …) -, sendo que D… pernoitava normalmente nas condições supra relatadas; as necessidades fisiológicas eram feitas “ao ar livre” e banhava-se “nas fontes e riachos”;
19. D…, em Portugal, chegou a pernoitar também na residência de uma filha do arguido C…, situada em …, … (ocupou a respectiva cave; quando se encontrava naquele local, o arguido B… acompanhou-o ao registo civil para renovação do B.I., tendo indicado como morada aquele imóvel);
20. Nas festas e feiras era controlado pelo arguido B…, que, pelo menos, no final de cada dia “lhe exigia contas” (sempre que se verificava uma diferença de valor, mesmo que decorrente de um erro, aquele agredia-o fisicamente);
21. Em indeterminado momento em Espanha, porque o arguido B… não dispunha de trabalho para manter D… ocupado, entregou-o ao arguido C….
22. Enquanto esteve entregue ao arguido C… e para ele prestou trabalho, o modo como o trabalho se desenvolvia e as condições de vida de D… eram exactamente as mesmas que ocorriam quando prestava trabalho por conta de B…, até porque a maior parte do tempo, os ditos arguidos trabalhavam e residiam nos mesmos locais.
23. O arguido C… não lhe pagou qualquer montante pela sua prestação laboral.
24. Todavia, este nunca o agrediu, nem o ameaçou.
25. Após, em data não concretamente apurada, o arguido C… “entregou” D… ao arguido B…, passando então o assistente a prestar novamente o seu trabalho por conta do arguido B….
26. Não obstante, as “condições laborais e de vida” de D… mantinham-se. Durante aquele período, contactou telefonicamente, algumas vezes, com os seus familiares em Portugal, através do telemóvel do arguido B… que, invariavelmente, “controlava” o teor das conversas, assistindo ao seu decurso.
27. Pese embora durante aquele lapso temporal tenha tido algumas hipóteses de fuga (por ausência/distância daqueles), nunca as concretizou por receio de represálias sobre a sua integridade física e vida; em Espanha sentia-se “perdido”, por desconhecimento do território. D…, além das quantias indicadas em 16., nunca recebeu qualquer outro tipo de compensação, monetária ou outra, pelo trabalho prestado. Quando reivindicava/reclamava junto do arguido B… com vista ao recebimento do seu salário, era vítima de agressões. A força dos arguidos advinha do “clima de intimidação” que o arguido B… criava nos trabalhadores, nomeadamente através das ameaças (dizendo ao ofendido D… que o mandava para o rio; dizendo-lhe que o pendurava) e agressões perpetradas pelo arguido B….
28. O arguido B… afirmou a D… que era portador de uma arma de fogo/pistola, dizendo-lhe: “um dia espeto-te um tiro”.
29. As condições de vida em que D… viveu naquele período em nada correspondiam àquilo que lhe fora inicialmente proposto/prometido.
30. O poder dos arguidos em Espanha advinha do facto de:
- B… criar um clima de intimidação entre os trabalhadores, por intermédio de ameaças e agressões;
- Os arguidos controlarem permanentemente a localização de D…;
- De D… se encontrar em território para si desconhecido.
31. Uma vez em território nacional, os arguidos estreitavam o controlo sobre D…, dificultando-lhe a solicitação de auxílio.
32. D… vive num clima de intranquilidade, receando vir a ser encontrado por aqueles e obrigado a com eles regressar.
33. O arguido B…, ao agir da forma supra descrita, actuou com o propósito concretizado de causar medo e inquietação a D…, fazendo-o temer pela sua integridade fica e pela sua vida, pois este receava que a qualquer momento aquele o poderia ofender na sua integridade física e mesmo causar a sua morte, e desse modo, obrigando-o contra a sua vontade a trabalhar sob as ordens dos arguidos.
34. O arguido C…, tendo conhecimento das condições laborais e de vida do assistente D… enquanto este havia trabalhado por conta do arguido B…, nomeadamente, do medo, inquietação e intimidação criados ao assistente pelo arguido B… por intermédio de ameaças e agressões – como também sabia o arguido C… – aceitou que D… lhe fosse entregue, aproveitando tal circunstancia para o obrigar a trabalhar sob as suas ordens. Posteriormente, ao entregar novamente o assistente D… ao arguido B…, o arguido C… sabia que o arguido B… sujeitaria o assistente ao mesmo tratamento que para com este havia anteriormente adoptado, conformando-se o arguido C… com esse facto.
35. Os arguidos, ao agir da forma descrita, actuaram em conjugação de esforços e de intentos e de acordo com um plano previamente delineado, com o propósito de manterem o assistente D… controlado espacialmente.
36. Os arguidos sabiam que:
a) Pelo facto de manterem o assistente controlado espacialmente;
b) Pelo facto de o arguido B… agredir o assistente D…;
c) Pela circunstância de o arguido B… ameaçar o assistente D…;
d) Pela circunstancia de B… coagir o assistente D…, e;
e) Pelo facto de o cederem entre si nos termos referidos em 21. a 25.;
Constrangiam o assistente na sua liberdade e dignidade, com o objectivo de obter vantagens económicas decorrentes do trabalho do mesmo, e que reduziam D… á condição de escravo, como pretenderam.
37. Os arguidos sabiam que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
38. No início do ano de 2007 o ofendido K1… encontrava-se em Mirandela a arrumar automóveis (estava sozinho, sem abrigo e padecia de dependência do álcool), junto da praça/mercado municipal, quando foi abordado por um indivíduo de etnia cigana que não conhecia e que depois soube tratar-se do arguido C…;
39. Este propôs-lhe então vir a trabalhar por sua conta, na venda ambulante em festas e feiras em território nacional. Como contrapartida para a prestação daquele serviço, ofereceu-lhe a importância mensal de “trinta contos” (150€) (a receber no final de cada mês), estando incluído o transporte, o alojamento e alimentação.
40. Pelo facto de se encontrar desempregado, sem perspectivas de vida e de trabalho e vivendo sérias dependências e dificuldades financeiras, aceitou a proposta formulada, vindo a acompanhá-lo para a respectiva residência, em … (junto à Biblioteca e Igreja), volvidos 2 ou três dias, quando aquele o ali recolheu, conforme acordado – fazia-se transportar num veículo Mitsubishi …, de caixa aberta, com toldo de cor cinzento e com matrícula portuguesa (desconhecida) -.
41. Uma vez em …, E… conheceu a família daquele, sendo que nenhum outro trabalhador se encontrava no local.
42. Enquanto aquela família ficou instalada e pernoitava na respectiva residência (em reboco de cimento, sem tinta, constituída apenas por r/c, cozinha com lareira e três quartos), E… pernoitava no interior de um furgão (compartimento da caixa, com um colchão) Ford …, de cor branca, com matrícula portuguesa (desconhecida) que o arguido C… ali mantinha, fazendo as necessidades fisiológicas no campo e banhava-se numa bacia com água tépida.
43. Manteve-se naquele local durante algum tempo, cabendo-lhe, designadamente, a tarefa de recolha de lenha. Por diversas vezes acompanhou aqueles para algumas festas (onde se dedicavam à venda ambulante), que decorriam em localidades relativamente próximas (…, …, … – …, etc.), onde se instalavam e permaneciam durante quatro ou cinco dias, “montando o toldo” (barraca tipo tenda).
44. Cabia-lhe vender todo o tipo de artigos, designadamente chapéus, cestos, brinquedos, guardas-chuva e balões, entregando a totalidade dos montantes auferidos ao arguido C….
45. E… pernoitava naquele furgão, fazendo as necessidades fisiológicas “ao ar livre”.
46. E… conheceu entretanto o arguido B… (companheiro da filha do arguido C…) numa daquelas festas, já que este se dedicava ao mesmo tipo de actividade.
47. Não obstante o passar do tempo, e pese embora confrontado por E… com a ausência de pagamento, invariavelmente o arguido C… protelava a entrega de qualquer remuneração, dizendo, designadamente, “recebes depois, quando receberes todo juntinho até é melhor”.
48. Volvidos cerca de seis meses após a chegada a …, o arguido C… informou-o que iriam deslocar-se para Espanha, visando ali trabalhar na actividade agrícola, alegando que E… “ali iria ganhar muito mais dinheiro”.
49. E… acompanhou-os então para aquele país, ficando alojados em “acampamentos/tendas” que instalavam nas imediações das fincas onde havia trabalho, na província de … (…).
50. Durante o tempo em que permaneceram em Espanha, vários outros trabalhadores portugueses trabalharam por conta do arguido C…, que os recrutava, designadamente nas artérias/ruas daquela província espanhola.
51. Mais tarde, o arguido C… adquiriu uma residência naquele local, ficando os trabalhadores alojados num sótão daquela casa.
52. Em momento e circunstâncias não concretamente apuradas o arguido C… apossou-se do Bilhete de identidade do ofendido E…, não mais lho tendo devolvido.
53. Sempre que o ofendido E… solicitava o bilhete de identidade, o arguido C… recusava a entrega daquele documento, dizendo, designadamente, “não precisas do Bilhete de Identidade para nada”.
54. A partir do momento em que se deslocou para Espanha e durante cerca de um ano e meio, coube-lhe a realização de todo o tipo de tarefas agrícolas na província de …/Espanha, por conta do arguido C….
55. Efectuou ali as diversas campanhas agrícolas, designadamente vindimas (Setembro/Outubro), poda (Dezembro/Janeiro), apanha da “acelga” e do pimento.
56. Como as tarefas eram realizadas em diferentes pontos daquela província, iam-se também deslocando, ficando os trabalhadores alojados em tendas de campismo e os elementos daquela família em “camiões-vivenda”/caravanas/roulotes, formando “acampamentos”.
57. O arguido C… avisou-o que não poderia abandonar os “acampamentos” sem a sua autorização.
58. E… saiu algumas vezes, deslocando-se a cafés nas imediações.
59. O trabalho (rotina diária) processava-se normalmente da seguinte forma:
- De manhã (por volta das 06.00 horas, cabia a E… a tarefa de acender o lume) deslocavam-se para as “fincas” em “carrinhas” (Fiat …, de cor verde, matrícula espanhola e Toyota …, de cor amarela, com matrícula portuguesa desconhecida) usualmente conduzidas pelo arguido C…;
- Aí iniciavam o seu trabalho por volta das 8 horas da manhã;
- Entre as 10.00 e as 10.30 horas, efectuavam uma pequena paragem para “a merenda”;
- Almoçavam no período compreendido entre as 13H00 e as 14H00; tais refeições sucediam no “campo”. Os elementos da família do arguido alimentavam-se nos mesmos locais.
O arguido C… também trabalhava, orientando as tarefas dos trabalhadores que havia angariado e controlando/fiscalizando a prestação laboral.
- Cessavam o trabalho nas “fincas” por volta das 18.00 horas, altura em que regressavam ao “acampamento”, ali jantando, após tomarem banho numa bacia.
Faziam as necessidades fisiológicas no campo.
60. E… não se encontrava “fechado”, mas o arguido C… impunha alguns condicionalismos às saídas dos “acampamentos”, pretendendo que tais saídas apenas sucedessem quando o mesmo permitisse e visando a deslocação a cafés.
61. No final de cada mês, os patrões espanhóis entregavam ao arguido C… os valores correspondentes às remunerações devidas aos trabalhadores, que aquele retinha.
62. Numa única vez, o arguido C… entregou a E… um cheque que havia recebido de um daqueles patrões, no valor de € 1.200,00, acompanhando-o a uma entidade bancária, onde E… efectuou o respectivo levantamento, sendo aguardado no exterior pelo arguido C… e pela respectiva mulher.
63. À saída, a esposa do arguido C… solicitou a E… a entrega da totalidade daquele valor, ao que este acedeu, “por recear represálias”. Nessa altura o ofendido E… pediu que lhe entregassem, pelo menos, € 50, tendo a esposa do arguido C… manifestado resistência à pretensão de E…, mas acabando por lhe entregar os € 50,00 após intervenção nesse sentido da parte do arguido C….
64. Durante aquele período de dois anos, o arguido C…, além da quantia indicada em 62., apenas lhe entregou, por uma única vez, €100,00 (quando o deixou em Mirandela).
65. Durante aquele período, deslocaram-se a Portugal duas ou três vezes, aqui permanecendo por períodos que duraram entre 10 dias a 1 mês.
66. Em meados do ano de 2009, regressaram a território nacional, deixando E… em Mirandela, dizendo o arguido C… que voltaria a recolhê-lo após a passagem de ano.
67. O bilhete de identidade de E… não lhe foi devolvido, sendo que este apenas desejava não voltar a vê-los.
68. Entretanto, o arguido voltou a procurar o ofendido, E…, em Mirandela, sem sucesso.
69. Por duas ou três vezes, outros indivíduos ciganos (cujas identidades se desconhece, mas que mantinham ali outros trabalhadores portugueses) abordaram o arguido C… durante o tempo em que o ofendido E… permaneceu com o arguido C…, para “comprarem o E…”, dizendo, “dou-te cem contos pelo homem”, tendo o arguido C… respondido “este não, eu não o vendo por nada, ele já é da família”.
70. Com excepção do referido em 62. e 64., E… nunca recebeu qualquer tipo de compensação, monetária ou outra, pelo trabalho prestado ao serviço do arguido C….
71. As condições de vida em que viveu naquele período em nada correspondiam àquilo que lhe fora inicialmente prometido.
72. No mês de Janeiro de 2010, quando andava a vaguear pelas ruas de Mirandela, foi ajudado por um casal daquela cidade, que o encaminhou para uma instituição de recuperação social, sendo que ainda hoje se mantém em instituições semelhantes, com “sucesso”.
73. No dia 14 de Setembro de 2011, foi efectivada diligência de busca domiciliária visando a morada sita no …, n.º ., …, …, correspondente à residência do arguido C… e respectiva esposa, ali tendo sido recuperado Bilhete de Identidade (original) n.º …….., referente ao ofendido E….
74. Não são conhecidos antecedentes criminais aos arguidos.
75. O arguido B…:
a) Nasceu no dia 09-11-1981, no seio de uma família de etnia cigana, fixada no concelho de Vila Flor.
b) Frequentou o ensino, embora com pouco sucesso, completando o 4.º ano de escolaridade, após várias reprovações.
c) Aos 14 anos começou a desenvolver actividade laboral na agricultura, área a que dedicou grande parte da sua vida profissional.
d) Aos dezoito anos “casou” segundo os costumes de etnia cigana com J… (filha do arguido C…), abandonando então o agregado de origem e passando a residir em …, onde habitavam os familiares da companheira.
e) B… manteve a actividade laboral na agricultura, que exercia sobretudo em Espanha, onde se deslocava em campanhas agrícolas sazonais. Recolhia também sucata, o que ocupava o arguido quando permanecia no local onde morava. Também confecionava e vendia cestos e chapéus nas feiras.
f) Em 2010 o arguido decidiu recorrer ao apoio estatal, passando a auferir o rendimento social de inserção.
g) Por sugestão da Segurança Social, o seu agregado familiar abandonou a caravana onde habitava e fixou-se, arrendando uma casa na localidade do …, do mesmo concelho de …, pagando de renda € 50 mensais.
h) Aufere na actualidade apoio estatal no valor de € 695,00/mês, a que acresce o abono de família, recebendo, na totalidade, o valor de € 975,00.
i) É pai de cinco filhos com idades compreendidas entre os onze anos e os dez meses de idade.
j) Encontra-se preso preventivamente à ordem do presente processo desde o dia 15-09-2011.
k) Tem revelado um comportamento adequado no EPR de Lamego.
76. O arguido C…:
a) Nasceu no dia 25-05-1958 no seio de uma família de etnia cigana, oriunda do concelho de ….
b) É analfabeto.
c) Começou a trabalhar aos 11 anos de idade, para agricultores próximos do local onde vivia, para quem desenvolvia tarefas indiferenciadas e que lhe forneciam alojamento e alimentação e cujo salário era integralmente gerido pela progenitora e pelo seu padrasto.
d) Foi exercendo a sua actividade laboral da forma descrita até contrair matrimónio, mantendo-se a trabalhar na agricultura na companhia da cônjuge, mas de forma nem sempre regular, auferindo um salário diário.
e) O casal começou por ocupar uma barraca num acampamento cigano de …, sendo que passados alguns anos conseguiu adquirir um pequeno terreno onde construiu uma outra barraca.
f) Há anos atrás decidiu deslocar-se para Espanha com a cônjuge e alguns dos seus filhos para trabalhar na época das vindimas. Desde essa altura que passou a deslocar-se para o país vizinho para desenvolver tarefas agrícolas sazonais e acabou por vender a sua habitação e adquirir uma outra em Espanha.
g) Retomou ao acampamento cigano de … e passou então a dedicar-se à recolha e venda de sucata, bem como à confecção e comercialização de artigos (nomeadamente, de cestos e chapéus) em festas populares sobretudo na época estival.
h) Do casamento nasceram nove filhos, sendo que o mais novo tem 16 anos de idade.
i) Há cerca de um ano que tem residência voluntária numa freguesia de Sernancelhe, local onde conseguiu adquirir uma habitação.
j) Tal casa é constituída por r/c e dois pisos e está dotada das infra-estruturas necessárias, apresentando porém um baixo índice de habitabilidade atentos os elementos que nela residem. Ali vivia o arguido (antes de ser preso preventivamente), a sua cônjuge, uma filha de dezasseis anos, dois netos em idade escolar, uma outra filha do arguido (K…) e os seus três descendentes, um filho e respectiva companheira e um descendente deste casal.
k) C… paga de prestação mensal da casa o valor de € 150,00 e que tem conseguido solver.
l) O arguido e seu agregado familiar beneficiam de atribuição do rendimento social de inserção, que no caso de C… ascende a € 300,00 mensais.
m) Encontra-se preso preventivamente à ordem do presente processo desde 15-09-2011.
n) Não existe qualquer referência negativa à sua conduta em meio prisional.”
*
Motivação da convicção do Tribunal:
“Para formar a sua convicção o Tribunal alicerçou-se, genericamente, na prova documental junta aos autos e bem assim, nas declarações dos arguidos, nas declarações do assistente D…, e ainda, nos depoimentos das testemunhas, tudo concatenado com as regras da experiência comum.
Assim, desde logo, o Tribunal tomou em consideração o teor dos seguintes documentos:
- Ficha de carta de condução relativa ao arguido B… (cfr. fls. 9);
- Ficha de carta de condução relativa ao arguido C… (cfr. fls. 10);
- Resultado de pesquisa de veículos registados na CRA em nome de B… (cfr. fls. 13 a 18), através do qual se pode constatar que, em 21-01-2010, o arguido tinha registadas em seu nome 5 viaturas automóveis (entre as quais, uma viatura de marca “Ford”, modelo “…”, de cor azul – cfr. fls. 15); Informação das autoridades espanholas constante de fls. 817 a 821 (e respectiva tradução de fls. 966 a 970) através da qual se pode constatar que tal arguido, à data da informação, tinha registados em seu nome, no Reino de Espanha, 4 veículos automóveis;
- Resultado de pesquisa de veículos registados na CRA em nome de C…, através do qual se pode verificar que, em 21-01-2010, tal arguido tinha registados em seu nome 8 veículos automóveis (cfr. fls. 19 a 27); Informação das autoridades espanholas constante de fls. 830 e 831 (a tradução encontra-se a fls. 977 e 978) através da qual se pode constatar que tal arguido, á data da informação, tinha registado em seu nome, no Reino de Espanha, 1 veículo automóvel;
- Pedido do Bilhete de Identidade do arguido B… (cfr. fls. 38 a 42);
- Pedido do Bilhete de Identidade do arguido C… (cfr. fls. 43 a 47);
- Auto de Busca e apreensão constante de fls. 199 e 200 à residência situada no …, n.º ., …, …, realizada em 14-09-2011 aí tendo sido apreendido, além do mais, recibos de vencimento de E… do ano de 2007 já em Espanha (cfr. fls. 202 e ss.), o bilhete de identidade do ofendido E… (cfr. fls. 216); Reportagem fotográfica de fls. 231 e ss. inerente a tal busca domiciliária;
- Documentos de fls. 404 e ss. (nomeadamente, atestado de residência do arguido C…, constante de fls. 404; Ficha de Eleitor de C…; Atestado de residência do arguido B… de fls. 405; Certificados de matricula dos filhos de B… de fls. 409 e ss; Comprovativo de transferência do CDSSS de Viseu para conta do arguido B… de € 223,60; relatório de consulta no Hospital …, EPE relativo ao arguido C… – cfr. fls. 437 -).
- Documentos de fls. 550 e ss. (especialmente, fotocópia da certidão de nascimento de L…, filha de B… – cfr. fls. 550 e 555 - ; Fotocópia do cartão de cidadão de M… – cfr. fls. 551 -; Fotocópia do cartão de cidadão de J… - cfr. fls. 552 - ; Fotocópia do cartão de cidadão de N… - cfr. fls. 553 -; Fotocópia do cartão de cidadão de O… - cfr. fls. 554 –
- Dados laborais existentes no Reino de Espanha sobre B… (cfr. fls. 808 a 812 e respectiva tradução a fls. 957 a 961);
- Dados de domicilio, rendimentos e contas bancárias do arguido B… em Espanha no ano fiscal de 2010 (cfr. fls. 814 a 815 e respectiva tradução a fls. 963 a 964);
- Dados laborais existentes no Reino de Espanha sobre o arguido C… (cfr. fls. 824 a 826, sendo que a tradução de tais documentos consta de fls. 971 a 973);
- Dados de domicílio do arguido C… no Reino de Espanha no ano Fiscal de 2010 (cfr. fls. 829 sendo que a inerente tradução consta de fls. 976);
- Dados laborais existentes no Reino de Espanha sobre D… (cfr. fls. 833 a 835, sendo que a sua tradução consta de fls. 980 a 982);
- Dados de domicilio e rendimentos inerentes ao ano fiscal de 2009, existentes no Reino de Espanha e relativos ao assistente D… (cfr. fls. 838, constando a inerente tradução a fls. 985);
- Resultado da consulta das bases de dados do Reino de Espanha relativamente á informação sobre E… (cfr. fls. 987 e ss.).
- Informações das autoridades espanholas sobre a existência de seguros relativos ás viaturas de matricula espanhola (cfr. fls. 1000 e ss.).
- Informação das autoridades espanholas acerca da titularidade, por parte do arguido C…, de um numero de telemóvel espanhol (cfr. fls. 1032).
- CRC’s dos arguidos de fls. 140, 142, 1233 e 1234.
- Relatórios sociais de fls. 1236 e ss. (relativo ao arguido B…) e 1315 a 1318 (respeitante ao arguido C…), no que tange à situação pessoal e económica dos arguidos.
Entrando agora na apreciação critica dos depoimentos dos arguidos B… e C…, importa referir que admitiram eles uma boa parte dos factos cuja prática lhes era imputada nos presentes autos, sendo certo que tal admissão é consentânea e coerente com a demais prova produzida nos presentes autos (especialmente, com os documentos constantes dos autos e com as declarações de D… e de E…).
Nessa parte, pois, os depoimentos dos arguidos convenceram o Tribunal (sendo certo que o mesmo sucedeu no tocante aos depoimentos dos arguidos atinentes á respectiva situação pessoal e económica, uma vez que eles se mostraram, grosso modo, corroborados, pelos relatórios sociais constantes dos autos).
Já na parte em que os depoimentos dos arguidos foram no sentido da infirmação de alguns dos factos vertidos no libelo acusatório, não lograram eles obter credibilidade probatória.
Em primeiro lugar, porque seus depoimentos nesta sede se mostraram interessados (os arguidos são os principais afectados por uma possível e eventual sentença/acórdão condenatória a proferir nos presentes autos).
Em segundo lugar, nesse âmbito, os depoimentos dos arguidos mostraram-se incongruentes e ilógicos quando analisados em face das regras da experiência comum.
Assim, por exemplo, não faz qualquer sentido, em face das máximas da experiência comum, a justificação oferecida pelo arguido B… para a circunstancia de que, logo que recebia os cheques da entidade empregadora, os entregava aos seus trabalhadores e de imediato os acompanhava à respectiva instituição de crédito para que estes procedessem ao inerente levantamento e, logo à saída do banco (ou, caso fossem imediatamente para “casa”, neste local), lhe entregassem todo o dinheiro que assim haviam recebido.
Como igualmente carece de sentido, em face das regras da experiência, a afirmação do arguido B… de que, por vezes, o dinheiro que os trabalhadores recebiam não chegava para lhe pagar as “despesas” que aquele havia tido com eles (com vinho e tabaco).
Como também não tem lógica a afirmação (proferida pelo arguido B…) de que nunca agrediu o assistente D… e que este “saía quando queria e entrava quando queria” quando a verdade é que D… trabalhou (nas condições descritas nos factos provados) para o arguido B… durante cerca de 3 anos e, nesse período, apenas dele recebeu, em alguns fins-de-semana, a importância de € 5 e, uma única vez pelo Natal, a importância de € 50,00. De facto, nenhuma razão explicaria que D… (que conta já com cerca de 50 anos e que à data contava já com uma experiência de vida assinalável – note-se que D… que antes havia estado já a trabalhar em Sevilha e tendo ali, depois de ficar desempregado, sobrevivido através do que recebia a estacionar carros e pedir em frente ás igrejas, dormindo, nessa altura, ao relento e que, depois disso, se encontrava a residir no Centro de Acolhimento …) se submetesse, durante cerca de 3 anos, a tais provações se não existissem circunstancias excepcionais que lhe impusessem a necessidade de as suportar.
Talqualmente, carece de lógica a explicação, produzida pelo arguido C…, para a circunstância de, durante todo o período em que E… trabalhou por “sua conta” (por conta do arguido C…), apenas lhe ter dado a quantia de € 100,00 (adiantando que, uma outra vez, lhe “emprestou” € 50,00) – o arguido referiu que se tratava do “saldo” positivo resultante da subtração das despesas por tal ofendido efectuadas com tabaco e álcool ás receitas por tal ofendido geradas com o seu trabalho.
Em terceiro lugar, porque essas declarações produzidas pelos arguidos no sentido da infirmação dos factos descritos na acusação foram, em larga medida, frontalmente contrariadas pelas declarações do assistente D… e pelo depoimento da testemunha E….
E, relativamente ás declarações do assistente D… e da testemunha E…, importa afirmar que elas se mostraram espontaneamente desenvolvidas e, tanto quanto possível (considerando a concreta materialidade constante da acusação e o período de tempo da sua ocorrência), pormenorizadas sendo, ademais, sustentadas em indiscutível razão de ciência.
Alem disso, a descrição que o assistente D… e a testemunha E… fizeram dos factos é inteiramente lógica em face das regras da experiência comum (dando-se aqui por reproduzidos grande parte dos argumentos atrás expendidos acerca da falta de coerência da versão apresentada pelos arguidos quanto aos factos por eles infirmados, argumentação essa que, agora, pela inversa, de “per si” sustenta uma parcela considerável dos factos confirmados pelo assistente D… e dos factos cuja veracidade foi asseverada pela testemunha E…).
Por outro lado, mesmo quando analisadas internamente (v.g. confrontadas as declarações prestadas em audiência pelo agora assistente D… com as declarações para memória futura por si oportunamente prestadas; concatenado o depoimento da testemunha E… com as declarações para memória futura que este também prestou nos autos) não se vislumbram quaisquer incoerências sensíveis, susceptíveis de abalar a sua credibilidade probatória.
Por essas razões, o Tribunal lançou mão das declarações de D… e do depoimento de E… para a confirmação dos factos dados como demonstrados (e nos exactos termos em que o foram).
Relativamente à prova testemunhal deverá afirmar-se que a primeira testemunha inquirida foi P…, inspector da Policia Judiciária, que efectuou diligencias no âmbito do inquérito dos presentes autos.
Esta testemunha não demonstrou qualquer conhecimento directo dos factos em discussão nos presentes autos, pelo que o seu depoimento em nada convenceu o Tribunal.
Posteriormente, procedeu-se à inquirição da testemunha Q…, guarda da G.N.R. que, de modo calmo, sereno e directo transmitiu ao Tribunal o motivo pelo qual foram encetadas as diligencias no sentido do estabelecimento de contacto com o assistente D…, o modo como tal contacto ocorreu e a reação do dito assistente.
Desta forma, o depoimento desta testemunha auxiliou o Tribunal na formação da sua convicção.
S…, amigo do ofendido E…, aposentado da função pública, foi também inquirido como testemunha nos presentes autos.
Esta testemunha não mostrou conhecimento directo dos factos vertidos na acusação. No entanto, a testemunha demonstrou saber as condições de vida deste ofendido anteriores à alegada prática dos factos descritos na acusação e, mesmo, as suas actuais condições de vida.
Esta testemunha respondeu, tanto quanto possível, de forma directa ás questões que lhe foram sendo colocadas, sendo certo que o seu depoimento aparentou ser completamente desinteressado relativamente à decisão que vier a ser tomada no presente feito crime.
Por tais razões, ao depoimento desta testemunha foi atribuída inteira credibilidade probatória.
T… (casado, reformado, residente em …), U… (residente em …, a cerca de 150 metros da residência do arguido C…), V…, W… (vizinha do arguido B…) e T…, apresentaram também o seu testemunho.
O depoimento destas testemunhas, no essencial, foi no sentido da abonação do carácter dos arguidos, tendo sido, como tal, considerados.
Alguns destes testemunhos versaram também sobre a situação pessoal e económica dos arguidos, tendo nessa sede sido valorados positivamente na parte em que foram concordantes com as declarações dos próprios arguidos e com o teor dos relatórios sociais a que acima já se fez referência.
F…, Y…, G… e H… foram também inquiridos como testemunhas.
O depoimento destas testemunhas, no importante, foi no sentido de terem estado em Espanha a trabalhar para o arguido B… (testemunha F…, Y…, G…) ou em sociedade para o qual o arguido B… também trabalhou (testemunha H… – que afirmou ter trabalhado para a empresa “Z…”).
Analisando criticamente os depoimentos destas testemunhas, importa afirmar que elas em nada foram consideradas na formação da convicção do Tribunal.
Com efeito, aos referidos depoimentos não se podem atribuir os predicados necessários (v.g. precisão, clareza, segurança, firmeza, coerência, espontaneidade nas respostas oferecidas, a circunstancia de as testemunhas responderem directamente ás perguntas e do mesmo modo ás perguntas que lhes iam sendo colocadas pelos sujeitos processuais) para que, com base neles, o Tribunal pudesse chegar a qualquer conclusão segura acerca da confirmação ou infirmação dos factos que constituem o objecto do presente processo criminal.
Basta, a esse título, atentar-se às patentes e notórias contradições existentes entre tais depoimentos para se chegar à falada conclusão (v.g. a testemunha F… inicialmente referiu que “hoje tenho a vida que tenho derivado do apoio financeiro deles” [reportando-se ao arguido B…] para, posteriormente, afirmar que não conseguiu juntar tanto dinheiro quanto isso; O depoimento da testemunha F… foi no sentido de que inicialmente se deslocou para Espanha na companhia de Y… [sua actual companheira], sendo que a testemunha Y… referiu que quando se deslocou para Espanha F… já se encontrava naquele país; o depoimento de G… foi no sentido de que se deslocou para Espanha na companhia de F… e de Y…, enquanto esta testemunha referiu que quando fez tal deslocação o seu actual companheiro [F…] já para ali se havia deslocado; O depoimento de F… foi no sentido de que nos acampamentos existiam balneários/contentores nos quais se podia tomar banho enquanto o depoimento de Y… foi no sentido de que nos acampamentos não existiam instalações para se tomar banho [o banho era tomado no rio]; O depoimento da testemunha G… foi no sentido de que depois de trabalharem vinham tão cansados que, quando chegavam a casa/acampamento, nem sequer dali saíam, enquanto o depoimento de H… foi no sentido de que, depois do dia de trabalho era costume deslocarem-se ao café [nomeadamente, a testemunha G…]).
Por todos os expostos motivos, aos depoimentos das ditas testemunhas não foi atribuído relevo probatório.
Em sede de convicção probatória, o Tribunal considerou não só a prova directa mas também a prova indirecta ou circunstancial, em que a actividade probatória recaiu sobre factos a partir dos quais, através de indução lógica, se pode afirmar a verificação dos elementos típicos dos ilícitos em causa nos autos.
E, neste âmbito, o Tribunal considerou, designadamente, que se demonstrou a existência de uma relação de enorme e especial proximidade entre os arguidos B… e C… (relação de grande proximidade que deriva, nomeadamente, do facto de o primeiro ser “casado” segundo os costumes ciganos, com uma filha do arguido C…; que dimana também do facto de ambos de dedicarem ás mesmas actividades, normalmente, nos mesmos locais [v.g. note-se que não é por acaso que aquando da identificação de D… pela Guarda Nacional Republicana e que originou o auto de noticia de fls. 3 e 4, os dois arguidos se deslocaram espontaneamente para o Posto – cfr. especialmente fls. 12 das declarações para memória futura de D…] e que permitiu até que se verificasse uma “cedência” do assistente “das mãos” do arguido B… para “as mãos” de C…, tendo, depois, este “devolvido” o assistente ao arguido B…) de modo que, por um lado, C… não podia deixar de saber a concreta forma como B… tratava o assistente, aproveitando-se disso quando o assistente passou a trabalhar para si (arguido C…) e, pelo outro, não podia deixar de saber que após a entrega do assistente novamente ao arguido B… este continuaria a tratar o assistente da mesma forma como anteriormente o havia tratado.
No que toca aos factos dados como não provados, ficarem eles a dever-se à falta de elementos seguros que os pudessem confirmar.”
*
Enquadramento Jurídico-Penal:
“Na acusação pública imputou-se:
- Ao arguido B…, na forma consumada e em autoria material, a prática de um crime de escravidão, p. e p. pelo artigo 159.º, als. a) e b) do C.P.;
- Ao arguido C…, na forma consumada e em autoria material, a prática de dois crimes de escravidão, p. e p. pelo artigo 159.º, als. a) e b) do C.P.;
Analisemos, pois, se os arguidos praticaram os crimes que lhes são imputados no libelo acusatório.
O crime de escravidão.
Preceitua o 159.º do Código Penal que, quem: a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar, com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior; é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
A redução da pessoa humana à condição de objecto, de coisa (escravidão) é muito mais grave do que um atentado à liberdade física de movimento em que se consubstanciam o sequestro e o rapto, pois que implica e significa a negação não apenas desta espécie de liberdade ou das outras manifestações de liberdade (v.g. de decisão, de acção, sexual, religiosa, etc.) mas a negação da raiz de todas de todas as expressões da personalidade humana, que é a dignidade humana (cfr. Américo Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, Coimbra Editora, 1999, p. 422).
O bem jurídico protegido pela incriminação é, assim, a dignidade da pessoa humana (cfr. Américo Taipa de Carvalho in op. cit., p. 423).
O conceito de dignidade da pessoa humana concretiza-se historicamente, assumindo um valor eminentemente cultural (cfr. Frank Moderne, “La dignité de la personne comme principe constitutionnel dans les constitutions portugaise et française”, in Jorge Miranda, Perspectivas Constitucionais – Nos 20 anos da Constituição, Coimbra Editora, 1996, p. 207, apud Benedita Mac Crorie, “O recurso ao principio da dignidade humana na jurisprudência do Tribunal Constitucional” in Estudos em Comemoração do 10.º Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Almedina, p. 165).
A concretização do princípio da dignidade humana, enquanto “prius” incondicional de todo o direito, faz-se de forma histórico-culturalmente aberta (cfr. Jorge Miranda/Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, t. 1, 2.ª ed., Coimbra Editora, p. 78).
O contexto cultural não é estático e encontra-se em constante mutação, até porque, cada vez mais, este conceito se desenvolve através de um intercâmbio com outras culturas (cfr. Benedita Mac Crorie in op. cit., p. 167).
Relativamente ao tipo objectivo de ilícito importa referir que, como acima se mencionou, na al. a) do dito artigo 159.º do C.P. se prevê a hipótese de redução de outra pessoa ao estado ou à condição de escravo.
Na interpretação deste inciso legal importa, desde logo, tomar em linha de conta o direito internacional.
Com efeito, a Convenção de Genebra sobre Escravatura (assinada em 25-09-1926) define, no seu artigo 1.º, parágrafo 1.º, a escravatura como “o estado de condição de um individuo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade”, sendo, portanto, escravo, toda e qualquer pessoa que tenha tal estado ou condição (cfr. artigo 7.º, al. a) da Convenção Suplementar relativa à abolição da escravatura, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravatura, assinada em Genebra, em 7 de Setembro de 1956).
Essencial e suficiente da caracterização de uma conduta como escravidão é que uma pessoa seja em si mesma tratada como uma coisa de que o agente dispõe como sua propriedade, sendo certo que a escravidão não pressupõe a exploração económica ou sexual da vitima, exploração essa que, historicamente, andava ligada à escravatura (cfr. Taipa de Carvalho in op. cit., p. 423).
A redução de que se fala no preceito pode ser executada por qualquer meio. Ela não implica necessariamente um cativeiro da vítima, mas o cativeiro da vítima é um forte indício da existência de uma situação de escravidão (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à luz da Constituição de Republica e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª ed., Univ. Católica, p. 490).
A redução ao estado de escravidão, tratando-se de vítimas imputáveis, pressupõe, no geral, a prática de coacções (físicas ou psíquicas) ou a exploração de uma dependência económica, sendo embora certo que, como se expendeu, não existe qualquer exigência típica relativamente aos meios (cfr. Américo Taipa de Carvalho in op. cit., p. 424).
A expressão “estado” usada no texto da lei dá uma ideia de permanência, enquanto que a “condição” tem mais que ver com uma situação transitória (cfr. Leal Henriques/Simas Santos in Código Penal Anotado, 2.º vol., 3.ª ed., Rei dos Livros, p. 353; cfr. ainda Américo Taipa de Carvalho in op. cit., pp. 421 e 422).
Na al. b) do artigo 159.º estão em causa actos de transmissão ou de aquisição de propriedade ou plena disposição sobre uma pessoa que já está no estado ou condição de escravo. Trata-se, aqui, de alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter no estado ou condição de escravo.
Sujeito passivo do crime de escravidão pode ser qualquer pessoa, seja homem ou mulher, adulto ou criança, imputável ou inimputável.
Quanto ao grau de lesão do bem jurídico, o crime de escravidão é qualificado como um crime de dano (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in op. cit., p. 490), isto é, pressupõe a efectiva lesão do bem jurídico.
Pode ainda qualificar-se este tipo de crime, quanto ao objecto da acção, como um crime de material ou de resultado (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in op. e loc. cit.), ou seja, um crime que pressupõe um efeito sobre aquilo sobre que incidiu a acção que se distingue espacio-temporalmente da própria acção.
Já no que tange ao tipo subjectivo de ilícito, deverá afirmar-se que se impõe aqui o dolo, em qualquer das suas variantes bastando, pois, o dolo eventual (cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in op. cit., p. 490).
No caso da verificação da hipótese normativa prevista na al. b) do citado artigo 159.º do C.P. é necessário o dolo (em qualquer das suas variantes) quanto à objectiva situação de escravidão, de acordo com a regra geral vertida no artigo 13.º, n.º 1 do C.P..
Também quanto à possibilidade de o adquirente manter a pessoa na situação de escravo é suficiente a conformação com o risco ou a eventualidade de a pessoa continuar nessa condição de escravidão após a transferência de domínio, bastando o dolo eventual (cfr., quanto a esta ultima afirmação, Américo Taipa de Carvalho in op. cit., p. 425).
Depois destas brevíssimas considerações técnico-jurídicas, importa agora voltar à situação dos autos, a fim de analisar e decidir se os factos dados como demonstrados permitem a condenação dos arguidos pela prática dos crimes de que se encontram eles acusados nos presentes autos.
Aqui, considerando o que se deixou exposto e o manancial fáctico dado como demonstrado sob os n.ºs 1. a 21., 25. a 30., 33., 35. a 37, entende este Tribunal Colectivo ter o arguido B… praticado o crime de escravidão a que se reporta a al. a) do artigo 159.º do C.P., em virtude de estarem verificados todos os seus requisitos, a nível objectivo e volitivo.
Com efeito, provou-se que:
- Após ter sido contactado pelo arguido B… com uma proposta laboral que incluía remuneração, alojamento e alimentação (cfr. matéria de facto dada como demonstrada sob os n.ºs 2 e 3), o assistente aceitou tal proposta, vindo a deslocar-se, inicialmente, para Espanha (sendo que também se deslocava a Portugal pontualmente – cfr. matéria de facto dada como provada sob o n.º 17).
- Apesar de ter desempenhado as tarefas laborais que lhe foram destinadas, durante cerca de 3 anos, o assistente apenas recebeu do arguido a importância indicada em 16., sendo que, quando o assistente reclamava o pagamento das quantias que lhe eram devidas a titulo de remuneração, o dito arguido agredia-o fisicamente.
- Além das agressões físicas (cfr. matéria de facto dada como demonstrada sob os n.ºs 15., 20., 27.), o arguido ameaçava o assistente (cfr. matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 27 e 28).
- Após o período inicial em que o assistente ficou a viver num imóvel (cfr. matéria de facto dada como demonstrada sob o n.º 7), e por se deslocarem, o assistente passou a viver num camião onde dormia em beliches do tipo militar e, finalmente, em tendas de campismo.
- Não existiam condições hodiernamente aceitáveis ao nível da higiene (tomavam banho num qualquer rio/riacho/canal que existisse nas imediações do local onde se encontravam; faziam as necessidades fisiológicas no campo – cfr. matéria de facto dada como demonstrada sob os n.ºs 13. e 18.);
- O trabalho realizado pelo assistente era um trabalho que pode definir-se como duro, muito exigente fisicamente, sendo certo que a alimentação que lhe era oferecida era deficiente (cfr. facto dado como demonstrado sob o n.º 13. e 18.).
- O arguido B… controlava permanentemente a localização de D… (cfr. especialmente, matéria de facto dada como demonstrada sob o n.º 30.), e mesmo as conversas que D… tinha com os seus familiares não decorriam com privacidade (essas conversas eram efectuadas através do telemóvel do arguido B… que, invariavelmente, assistia ao teor dessas conversas).
- O arguido B… entregou o assistente ao arguido C…, assim o cedendo (adquirindo-o posteriormente).
Tendo em conta especialmente a dita facticidade pode concluir-se que o arguido B… reduziu o assistente D… ao estado de escravo.
Ao nível do elemento subjectivo, constata-se que o arguido B… actuou com dolo directo (cfr. matéria de facto dada como demonstrada sob os n.ºs 33., 35. a 37.).
Conclui-se, desta forma, ter o arguido B… praticado, em autoria material e na forma consumada, o crime de escravidão p. e p. pelo artigo 159.º, al. a) do C.P..
Adiantando mais um passo, importa agora entrar na análise da comprovada conduta do arguido C….
Nesta matéria, provou-se, desde logo, que em momento indeterminado, em Espanha, porque o arguido B… não dispusesse de trabalho para manter o assistente ocupado, entregou-o ao arguido C…. O modo como o trabalho se desenvolvia e as condições de vida de D… eram iguais às que lhe eram proporcionadas pelo arguido B… (sendo embora certo que o arguido C… nunca o agrediu, nem o ameaçou).
E demonstrou-se, ainda, que o arguido C… “entregou” novamente o assistente D… ao arguido B….
Da falada matéria de facto resulta que o assistente foi cedido pelo arguido B… ao arguido C… para, posteriormente, ser por este cedido ao arguido B….
Verifica-se, desta forma, o elemento objectivo do crime de escravidão p. no artigo 159.º, al. b) do C.P..
Quanto ao elemento subjectivo, pode, no caso dos autos, afirmar-se que ele também se encontra perfectibilizado atendendo à materialidade fáctica dada como provada e vertida sob os n.ºs 34., 35., 36. e 37..
Constata-se, pois, a prática pelo arguido C… do crime de escravidão, p. e p. pelo artigo 159.º do C.P. (perpetrado sobre a pessoa de D…).
Na acusação pública, ao arguido C… vem ainda imputada a prática de um outro crime de escravidão, perpetrado sobre o ofendido E….
A esse propósito, deverá afirmar-se que a análise dos factos consignados na matéria de facto dada como demonstrada leva à conclusão que não se mostram perfectibilizados todos os elementos objectivos e subjectivos configurantes deste crime que a douta acusação pública imputa ao arguido (nomeadamente, por não ter ficado demonstrado: que o dito ofendido E… tivesse estado “preso”; b) que o ofendido E… fosse alvo de constantes ameaças e de agressões; c) Que o almoço deste ofendido fosse composto invariavelmente por comida enlatada e pão e que os elementos da família do arguido se alimentassem de outro tipo de comida; d) o elemento subjectivo do crime.
Deve, pois, o arguido C… ser absolvido do crime de escravidão p. e p. pelo artigo 159., al. a) do C.P
Em suma, este Tribunal Colectivo considera que:
a) O arguido B… praticou o crime de escravidão p. e p. pelo artigo 159.º, n.º 1, al. a) (que tem como vitima D…);
b) O arguido C… praticou o crime de escravidão p. e p. pelo artigo 159.º, n.º 1, al. b) (que tem como vitima D…);
c) O arguido C… não praticou o crime de escravidão p. e p. pelo artigo 159.º, n.º 1, als. a) e b) (que teria como vitima E…), devendo, em concomitância, dele ser absolvido como, a final, se decidirá.”
*
Medida concreta da pena:
“A moldura penal abstracta do crime de escravidão é a seguinte:
- Pena de prisão de 5 a 15 anos.
Dentro destes limites teremos, portanto, de elaborar a dosimetria da pena cingidos à regra do art. 71º do C.P. vigente, valorando: a culpa do agente, a concorrência de circunstâncias agravantes ou atenuantes estranhas à tipicidade e a satisfação das exigências preventivas (geral e especial).
Assim, valora-se:
a) Em desfavor dos arguidos:
- O grau de ilicitude é mediano tanto no crime cometido pelo arguido B… como no crime cometido pelo arguido C…;
- Relativamente ao modo de execução do crime:
• - Deverá ponderar-se que o arguido B… utilizava violência contra a vítima D… (traduzida essencialmente em agressões físicas e ameaças), o que em muito releva em seu desfavor;
• Deve ainda atender-se ao facto de D…, quando foi contactado pelo arguido B…, se encontrar numa situação de extrema debilidade financeira (cfr. matéria de facto dada como provada sob o n.º 3) e, portanto, mais susceptível ao aliciamento efectuado;
• Deve também considerar-se que a redução ao estado de escravo foi operada pelo arguido B…, sendo que o arguido C… se aproveitou daquele estado anteriormente criado pelo arguido B….
- Quanto à gravidade das consequências do crime, atente-se ao facto de o assistente continuar a viver um clima de intranquilidade (cfr. matéria de facto dada como demonstrada sob o n.º 32).
- O dolo é intenso em ambos os crimes (sendo embora, comparativamente, menos intenso no crime praticado por C… pois que actuou ele com dolo eventual relativamente ao elemento contido na parte final da al. b) do artigo 159.º do C.P.).
- No que tange aos fins ou motivos que determinaram a prática do crime, os arguidos actuaram com o objectivo de explorarem o resultado da prestação do trabalho do assistente D… (o que também releva em seu desfavor);
- As exigências de prevenção geral são elevadas. Na verdade, em casos de criminalidade que choca a comunidade, como é o caso da tratada nos presentes autos, e em face do crescente aumento do sentimento de insegurança que se vai generalizando, torna-se necessário uma pena mais elevada para, por um lado, manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e eficácia das normas jurídico-penais como instrumentos de tutela de bens jurídicos e, por outro lado, intimidar a generalidade das pessoas para que não cometam factos semelhantes.
b) Em favor dos arguidos:
- Não lhes são conhecidos antecedentes criminais;
- Têm família constituída.
- O possuírem eles hábitos de trabalho.
- O arguido B… tem revelado um comportamento adequado no EPR de Lamego;
- Não existe referência negativa à conduta de C… em meio prisional;
Destarte, tudo ponderado, atendendo aos limites abstractos da pena prisão acima referidos, fazendo apelo a critérios de justiça, adequada proporcionalidade entre a gravidade do crime e a culpa dos arguidos, concomitantemente com a ideia de uma certa intimidação e dissuasão ou de pura prevenção geral negativa, reputamos como justa a imposição:
- Ao arguido B…, da pena de 7 anos e 6 meses de prisão;
- Ao arguido C…, da pena de 5 anos e 6 meses de prisão.”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que os recorrentes B… e C… pretendem suscitar as seguintes questões:
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
Em matéria de Direito,
- Qualificação jurídica dos factos;
Subsidiariamente,
- Medida da pena a aplicar ao B…;
- Medida da pena a aplicar ao C….
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Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Nessa impugnação começa por se colocar em causa os nºs 1 e 38 dos factos provados, mas apenas «no que respeita à época em que ocorreram».
É essa a única matéria em que têm razão – como se irá ver a seguir –, necessitando os momentos temporais aí referidos de correcção.
O nº 1 diz respeito à altura em que o D… foi contactado pelo B….
Da prova documental junta, em especial a referente aos “dados laborais” existentes em Espanha, respeitantes ao D…, conjugada com as declarações para memória futura do mesmo, resulta que esse contacto terá sido efectuado em 2007, mas em data anterior a Maio.
O nº 38 diz respeito à altura em que o E… foi contactado pelo C…, e embora este recorrente não tenha sido responsabilizado penalmente pela actividade em causa, também aí deve haver uma correcção.
Considerando que o primeiro recibo de “vencimento” do E… em Espanha surge datado de Janeiro de 2007, tem de se concluir que o contacto terá ocorrido em data anterior, cerca de seis meses antes, pois tal como resulta do nº 48 da matéria provada, só “volvidos seis meses” sobre este contacto e a sua ida para …, o C… o levou para Espanha.
A alteração destes momentos temporais é, porém, irrelevante para a efectuada subsunção dos factos ao Direito.
Para além destes, os factos indicados como incorrectamente julgados são «os pontos 6, 12, 15, 16, 18, 20, 21, 22, 25, 26 parte final, 27, 28, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37».
São indicadas como provas que impõem decisão diversa: «a prova documental, as declarações dos arguidos, as declarações do assistente D…, os depoimentos das testemunhas e a prova indirecta circunstancial por simples induções ou presunções utilizadas pelo Tribunal Colectivo».
Na motivação surgem extractos do depoimento do P…, inspector da PJ (que não serviu para formar a convicção do Julgador, por considerar que não teve “conhecimento directo dos factos”); das declarações do D…; das declarações do aqui recorrente B…; do depoimento do Q…, guarda da GNR que elaborou o auto de notícia; do depoimento do S…; das declarações do E…; dos depoimentos do F…; do G… e do H….
Basicamente, pretende fazer-se prevalecer as declarações dos recorrentes (embora só se forneçam extractos das do B…), classificadas de «abertas e colaborantes», às do D…, afirmadas de nenhuma credibilidade «porque é parte interessada e interesseira» e porque «se trata de uma pessoa influenciável, de um alcoólico, desenraizado social e familiarmente» e «com contradições entre o que declarou para memória futura e o que declarou perante o Tribunal Colectivo».
Acrescenta-se que as mesmas são ainda contraditadas «pelo depoimento das testemunhas de defesa F…; G… e H…, cuja credibilidade não deve ser posta em causa».
Como resulta evidente desta síntese, a argumentação fornecida mostra-se parcial e ilógica; os excertos da prova oral que se fornece e a prova documental que invoca não impõem decisão diversa; não se procede a uma efectiva e credível valoração e conjugação, de acordo com as regras da experiência comum e do raciocínio lógico-dedutivo, de toda a considerável prova documental, da obtida através das buscas e apreensões e da oral produzida, ou analisada em Audiência.
Em contraste, na explicitação da sua convicção, o Julgador indica toda a prova documental e oral que conjugou e analisou no seu conjunto, com o recurso às regras da experiência comum.
Começa por indicar a vasta prova documental e a obtida através das buscas e apreensões, referindo detalhadamente a sua localização nos autos e respectivo conteúdo.
Quanto às declarações dos aqui recorrentes, refere que “admitiram uma boa parte dos factos”.
Na parte em que os negaram são referidas as razões pelas quais não foi atribuída credibilidade às suas declarações, “incongruentes e ilógicas” face às regras da experiência comum e do raciocínio lógico-dedutivo.
Efectivamente, as declarações do B… são essencialmente negatórias, com expressões curtas (“não sra.”) e não se mostram credíveis, sendo contrariadas pelos restantes elementos de prova.
São disso nítido exemplo a “explicação” que dá para se apoderar do salário do D…: “a ele pagava 20€ por dia. Pagava 20€, dias trabalhados. Dias trabalhados. Pronto, eu recebia 30 ou 35 já, ou 40. Mas eu tinha que descontar o meu, tinha de lhe pagar os 20€. 20, pagava os 20€, tinha de fazer a conta às despesas, ao que eles pediam durante a semana, o tabaco que eles, que eles pediam dinheiro para ir comprar tabaco, para vinho, para isso tudo. Depois fazíamos as contas, às vezes não chegavam para, para as despesas, eles ao fim-de-semana queriam 50€, em todas as vezes, de semana sempre 5, 10€ para tabaco e vinho.
(…)
Juiz: Diz-se aqui também que o, o trabalho que este sr. D… prestou e nas condições de vida em que viveu naquele período em nada correspondiam àquilo que lhe fora inicialmente proposto, prometido.
B…: Foi, foi sim sra.. Como prometi, foi o que combinámos. Eu paguei-lhe”.
O mesmo sucede com as declarações do C…, que, no entanto, incidem predominantemente sobre a sua actividade relativamente ao E….
São pelo Julgador referidas, por outro lado, as razões pelas quais foi atribuída credibilidade às declarações do D… e do E…, que «se mostraram espontaneamente desenvolvidas e tanto quanto possível pormenorizadas», e produzidas com “indiscutível razão de ciência”.
Foi também considerado que as declarações para memória futura do D… e do E…, comparadas com as que produziram em Audiência, não contém “incoerências sensíveis, susceptíveis de abalar a sua credibilidade probatória”.
E, efectivamente, essas declarações mostram-se credíveis, com o grau de pormenorização adequado às circunstâncias em que são proferidas, sendo corroboradas pelos restantes meios de prova, nomeadamente os documentais e os obtidos através das buscas e apreensões efectuadas.
Entre as prestadas para memória futura, em especial pelo D…, e as prestadas em Audiência – ao contrário do afirmado, sem adequada concretização no recurso – não se detectam contradições relevantes que as descredibilizem.
Acrescente-se que a argumentação para desvalorizar a do D…, acima transcrita, é por si só – e sem necessidade de quaisquer comentários acerca do seu cariz – reveladora da completa sem razão dos recorrentes.
Quanto às testemunhas ouvidas em Audiência e indicadas pelos recorrentes, acima nomeadas (F…, G… e H…), os respectivos depoimentos foram considerados inverosímeis, não porque o Julgador considerasse «as testemunhas de defesa de segunda classe e as de acusação de primeira classe» – tal como se afirma no recurso –, mas pelas razões detalhadamente apontadas na explicitação da sua convicção.
E essas razões mostram-se, a esse respeito, convincentes.
Acaba por se contestar também no recurso, «a prova indirecta, ou extracção de ilações ou presunções, do modo como o Tribunal colectivo o fez».
Argumentação, igualmente, sem nenhuma validade.
A apreciação da prova, em Julgamento, é – pela natureza das “acções humanas” e porque se pretende reconstituir acontecimentos do passado – necessariamente composta, também, por raciocínios lógico-dedutivos [processo raciocinativo pelo qual se passa de proposições conhecidas (premissas) a outra proposição que se apresenta como a consequência lógica, em termos de conclusão].
No caso, esses raciocínios mostram-se correctamente efectuados.
Em conclusão, e tal como já referido, não são fornecidos argumentos válidos e devidamente fundamentados que convençam este Tribunal, de que a decisão deveria ser diversa da efectuada pelo Julgador, no Tribunal recorrido.
Pelo contrário, da análise efectuada conclui-se que o Julgador efectuou uma detalhada análise e procedeu a uma correcta conjugação de toda a prova produzida ou analisada em Audiência – com excepção da correcção efectuada em relação aos nºs 1 e 38 da matéria provada, circunscritas ao respectivo momento temporal – e, com base nela, formulou os juízos lógico-dedutivos adequados com inteiro respeito pelo princípio da verdade material e sem violação dos restantes orientadores do Direito Processual Penal.
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Noutra parte da peça de recurso, e a propósito de um pretenso “não cometimento do crime” por parte do C…, surge a invocação de «erro notório na apreciação da prova».
Num completo desconhecimento do que constitui esse conceito jurídico-processual penal, afirma-se que ele ocorre por «não se ter provado o dolo específico – intenção – elemento do tipo previsto no art. 159º, al. b) do CP», e sendo-lhe imputado o crime a título de dolo eventual, «tal não se verificará, já que os pontos 24, 27 e 30, dos factos provados foram incorrectamente decididos, já que se atribuem ao arguido C…, factos que apenas foram praticados pelo arguido B…».
Como é evidente, este argumentário tem nenhuma validade.
Do texto da decisão recorrida – e tal como decorre do já exposto, pois quem analisa o mais, também analisa o menos – não resulta a existência desse ou de outro vício da decisão sobre a matéria de facto, previstos no art. 410º, nº 2, do CPP.
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Também a propósito da impugnação da matéria de facto acaba por surgir a invocação do princípio in dubio pro reo: «as razões invocadas são suficientes para criar no Julgador uma dúvida legítima, dúvida essa que o Tribunal colectivo devia ter acolhido e não o fez».
Tal como já temos referido noutras decisões, este princípio do Direito probatório, não se traduz num sistemático favorecimento do réu (arguido, na moderna terminologia).
É um princípio do Direito Probatório e significa apenas que, ficando o Tribunal, após a produção das provas, na dúvida sobre se determinado facto se provou, essa dúvida tem de ser resolvida a favor da defesa, considerando-se o facto não provado, se tal o favorecer.
No caso, o Julgador não ficou com dúvidas, chegou a certezas, no respeitante à matéria de facto considerada provada, e é essa certeza, cabalmente explicitada que os recorrentes pretendem pôr em causa.
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Tal como decorre do exposto, a decisão sobre a matéria de facto deve ser mantida, apenas se procedendo à modificação acima relatada.
Assim, decide-se modificar a decisão sobre a matéria de facto – tal como o prevê o art. 431º, al. b) do CPP –, alterando-se os factos provados sob os nºs 1 e 38, pela seguinte forma:
1. Em data, não concretamente apurada, do ano de 2007, mas anterior ao mês de Maio, D… encontrava-se a residir temporariamente num Centro de Acolhimento (“I…”) em Lisboa/…, quando ali surgiu um indivíduo de etnia cigana que não conhecia e que depois soube tratar-se do arguido B…, que lhe propôs a ida para a actividade agrícola em Espanha, informando-o que teria de permanecer naquele país até ao fim da campanha (vindima), isto é, até ao final do mês de Outubro.
(…)
38. Em data não concretamente apurada do ano de 2006, mas posterior ao mês de Julho, o ofendido E… encontrava-se em Mirandela a arrumar automóveis (estava sozinho, sem abrigo e padecia de dependência do álcool), junto da praça/mercado municipal, quando foi abordado por um indivíduo de etnia cigana que não conhecia e que depois soube tratar-se do arguido C….
Mantém-se, na íntegra, a descrição dos restantes factos provados constantes da decisão sob recurso.
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Recurso em matéria de Direito.
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Na peça de recurso, coloca-se em causa a qualificação jurídica dos factos, defendendo-se que os mesmos não integram o crime de escravidão por cuja prática os recorrentes foram condenados.
Afirma-se que «o crime do artº 159º do C. Penal. exige que o agente disponha do ofendido como uma coisa, que seja tratado como objecto ou propriedade em regime de sujeição absoluta, o que se não verifica».
Afirma-se também que «não se verifica tal coisificação do assistente D…» e que este «usava de todas as facilidades que vêm referidas no texto das alegações de fls. 80».
Prossegue-se suscitando a seguinte hipótese: «a haver alguma responsabilidade penal» seria apenas do B…, «tal responsabilidade enquadrar-se-ia no crime do artº 160º do C. Penal. se vier a entende-se que houve exploração do trabalho do assistente, valendo-se o arguido de alguma situação de vulnerabilidade do mesmo».
Vejamos:
O tipo vem previsto no art. 159º (sob a epígrafe “Escravidão”), em redacção de grande simplicidade, e consiste no seguinte:
“Quem:
a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou
b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior;
é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos”.
O seu texto é resultante da revisão do Código introduzida pelo DL nº 48/95, de 15/03, e reproduz, com pequenas alterações formais e diminuição da medida da pena, o art. 161º do Código Penal, na sua versão original, de 1982.
Trata-se da consagração no Direito Penal Português de Direito Internacional a que Portugal se encontra vinculado, nomeadamente a Convenção de Genebra sobre a escravatura, assinada em 25/09/1926.
Assim sendo, a previsão tem de ser interpretada e aplicada tendo-se em conta os conceitos e princípios expressos nesse Direito Internacional (“à luz dos seus textos”).
Trata-se de uma imposição Constitucional decorrente dos artigos 8º e 29º, nº 2, da CRP.
Na decisão recorrida o texto da Convenção de Genebra surge convenientemente referenciado: “a Convenção de Genebra sobre Escravatura (assinada em 25/09/1926) define, no seu artigo 1º, parágrafo 1º, a escravatura como «o estado ou condição de um individuo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade», sendo, portanto, escravo, toda e qualquer pessoa que tenha tal estado ou condição (cfr. artigo 7º, al. a) da Convenção Suplementar relativa à abolição da escravatura, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravatura, assinada em Genebra, em 7 de Setembro de 1956”.
Na resposta do MºPº em 1ª Instância, procede-se ao enquadramento dessa Convenção com os restantes textos do Direito Internacional, referentes à escravatura: “a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art. 4º, estatui que «Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos», a Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagra no art. 4º que «1 – Ninguém pode ser mantido em escravatura ou servidão. 2 – Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou obrigatório» e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no art. 8º, dispõe que «1 – Ninguém será submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, sob todas as suas formas, são interditos. 2 – Ninguém será mantido em servidão. 3 a) – Ninguém será constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório»”.
Como é evidente, a integração contemporânea do conceito pouco ou nada tem a ver com o conceito de escravatura, quando foi decretada, em Portugal, a proibição do tráfico de escravos, em 1836.
O conceito tem de ser densificado perante as circunstâncias sociais, históricas e políticas contemporâneas, e de acordo com as concepções ético-filosóficas dominantes.
Assim, na previsão se pretende integrar, entre outras formas de “escravidão”, a laboral, em que a vítima seja sujeita a uma situação de servidão, sendo objecto de uma completa relação de domínio por parte do agente, vivenciando um permanente “regime de medo”, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição.
O trabalho efectuado em tal situação de servidão ter-se-á de considerar trabalho realizado em condições análogas às de escravo, em que a vítima, colocada sob o domínio do agente, é destituída de toda a dignidade inerente ao ser humano; tal como conclui o MºPº em 1ª Instância, estabelece-se “uma relação tal que o primeiro se apodera totalmente da liberdade pessoal do segundo, ficando este reduzido a um estado de passividade idêntica àqueles que viviam em cativeiro”.
No caso, da matéria de facto provada resulta indubitável a verificação dos seguintes elementos, no que à vítima D… respeita (e é a actividade dos recorrentes em relação a este que aqui está sob análise): desapossamento da documentação; esbulho do salário, com a consequente privação do mesmo por parte da vítima; domínio do modo e horários da prestação de trabalho, que se estendiam por extensos períodos; domínio e controle contínuos da movimentação da vítima, com confinamento a espaços sem condições de higiene ou salubridade e com alimentação deficiente; proibição ou restrição da sua comunicação com o exterior, nomeadamente com a família; isolamento social e geográfico; sujeição a maus-tratos, coacção e ameaças; disposição da vítima como se de uma “coisa” fosse, com a sua “entrega” e consequente “recebimento”, mantendo-a na mesma condição.
Perante estes elementos, tem de se concluir que a vítima D… viu-se esbulhado de toda a dignidade inerente à pessoa humana, sendo tratado como um “ente” sobre o qual podiam ser exercidas faculdades similares às do direito de propriedade sobre coisas ou animais.
Por outro lado, da matéria de facto provada resulta que o C… “recebeu” a vítima, mantendo-a nas mesmas condições, e voltou a “entregá-la” ao B…, agindo com consciência da condição da mesma e conformando-se com ela.
Nos termos expostos, a actividade do B… preenche a previsão do art. 159º, al. a), a título de dolo directo, e a do C… a do art. 159º, al. b), a título de dolo eventual.
Quanto à pretendida responsabilização penal do B… pela prática do «crime do artº 160º do C. Penal. se vier a entender-se que houve exploração do trabalho do assistente, valendo-se o arguido de alguma situação de vulnerabilidade do mesmo».
Tal como bem refere o MºPº em 1ª Instância, na sua resposta, a questão nem se coloca, pois, para além de se encontrar excluída pela verificação da previsão acima analisada, a tal se oporia o princípio da legalidade, constituindo um anacronismo que seja o próprio arguido a pretendê-lo.
Com efeito, este tipo penal, na modalidade de exploração do trabalho, foi introduzido pela Lei 59/2007, de 04/09, entrada em vigor em 15/09/2007 (no regime anterior, constante do art. 169º, o tipo respeitava apenas às actividades de exploração sexual), o que é por completo omitido na peça de recurso.
Complete-se referindo que não tem aqui qualquer cabimento a aplicação retroactiva desse novo regime, pois não se trata de um regime que extinga ou atenue a responsabilidade penal, mas sim de um regime que cria uma nova responsabilidade penal, a acrescer à aqui tipificada.
Em conclusão, a qualificação jurídica efectuada na decisão recorrida mostra-se correcta.
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Medida da pena a aplicar ao B….
Numa moldura penal entre 5 a 15 anos de prisão, foi-lhe imposta a pena de 7 anos e 6 meses de prisão.
Na fixação da medida da pena teve-se em conta o grau de ilicitude dos factos, referenciado pelo modo e circunstâncias da sua execução, e gravidade das suas consequências; o dolo intenso e as exigências de prevenção geral, consideradas elevadas.
A estes factores de medida da pena, na peça de recurso apenas se contrapõe que não se valorizou «devidamente a personalidade do arguido, a sua colaboração com a Justiça, o facto de ser um delinquente primário, ser pobre e ter 5 filhos menores de tenra idade a seu cargo», devendo a pena nunca ser «superior a 5 anos e meio».
A impropriedade deste argumentário é evidente.
A ausência de antecedentes criminais e a condição familiar foram consideradas como atenuantes.
Quanto à «personalidade do arguido», manifestada nos factos, a mesma não foi entendida como atenuante, e bem (a considerar-se expressamente a mesma, teria de ser como agravante).
Quanto à «colaboração com a Justiça», ela não se encontra minimamente retratada nos factos provados, nem no seu comportamento processual (o recorrente contínua, aliás, a negar a sua prática).
Em conclusão, a pena fixada não requer qualquer diminuição.
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Medida da pena a aplicar ao C….
Numa moldura penal entre 5 a 15 anos de prisão, foi-lhe imposta a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
Na fixação da medida da pena teve-se em conta a ilicitude dos factos e as exigências de prevenção geral, consideradas elevadas.
Como factores atenuantes, foi considerada a ausência de antecedentes criminais e a condição familiar, e a acrescer (em relação ao B…) a prática dos factos com dolo eventual.
Na peça de recurso, defende-se que a pena não deve ser «superior ao mínimo legal de 5 anos, dada a sua diminuta culpa e as circunstâncias atenuantes existentes a seu favor» e deverá ser suspensa.
Considerando o grau de ilicitude dos factos, referenciado pelo modo e circunstâncias da sua execução e gravidade das suas consequências, a pena fixada 6 meses acima do mínimo legal, não requer qualquer diminuição.
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Em conclusão, o recurso mostra-se improcedente, não sendo relevante a alteração, a que se procedeu, do descrito nos nºs 1 e 38 da matéria provada.
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Nos termos relatados, decide-se:
- Modificar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos supra relatados;
- Julgar improcedente o recurso, mantendo-se, na íntegra, o dispositivo do Acórdão recorrido.
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Custas pelos recorrentes, fixando-se a Taxa de Justiça devida por cada um deles em 5 UC’s.
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Porto, 30/01/2013
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho