Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0730674
Nº Convencional: JTRP00040090
Relator: COELHO DA ROCHA
Descritores: EXECUÇÃO CAMBIÁRIA
OPOSIÇÃO
ASSINATURA
TÍTULO
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP200702220730674
Data do Acordão: 02/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 707 - FLS 103.
Área Temática: .
Sumário: Se o executado em sede de oposição nega a autoria da subscrição cambiária que lhe é atribuída pelo exequente/credor e portador do título, a este cabe o ónus da prova da autoria da assinatura imputada ao executado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Na .ª secção, do .º Juízo de Execução do Porto, pendem autos de execução comum, com o nº …../05.6 YYPRT em que é exequente B………., SA, e executado C………., para pagamento da quantia certa de € 15.593,29 - titulada pela livrança exequenda - acrescida de juros moratórios e imposto de selo ...

Em 14.12.2005, o executado veio deduzir-lhe oposição,
-excepcionando a incompetência territorial do Tribunal e
-alegando, ter pretendido adquirir, em Outubro de 2002, no D………., L.da um veículo automóvel de marca Citröen, de modelo ………., recorrendo a um pedido de viabilização de financiamento.
Porém, nunca lhe foi fornecida qualquer cópia de documentos que assinou no Stand e nunca contactou qualquer instituição bancária (a exequente).
Nunca lhe foi entregue qualquer veículo automóvel, pelo que deixou de pagar.
A assinatura constante da livrança exequenda não é do seu punho ...
Deve a oposição ser recebida e ser julgada procedente, suspendendo-se de imediato a execução.

Recebida a oposição à execução, a exequente apresentou contestação, defendendo a competência do Tribunal demandado; e contrapondo:
-invocou a outorga pelo executado do contrato de financiamento nº ……, datado de 17.10.2002, do montante de € 15.100,00, pagável em 72 prestações mensais de € 282,09, para aquisição de um automóvel Citröen; de que o opoente ficou com um exemplar;
-sendo-lhe entregue pelo executado a livrança exequenda, devidamente assinada, para garantia do contrato de financiamento, autorizando expressamente o seu preenchimento, em caso de incumprimento.
-O executado apenas efectuou o pagamento de 7 mensalidades ...
-a exequente resolveu o contrato, comunicando-lhe que, se mantivesse a situação de incumprimento, preencheria a livrança; o que, em conformidade com a autorização, fez
-O executado foi quem forneceu todos os seus dados de identificação pessoal para instrução do contrato de financiamento e quem assinou os seguintes documentos: contrato de financiamento, auto de recepção do veículo, declaração de renúncia ao direito de revogação e reflexão, convenção do preenchimento da livrança e autorização do débito em conta e livrança.
E ... para que não subsistam dúvidas relativamente à autoria da assinatura constante da livrança, o exequente requererá, no momento processual próprio, para o efeito, exame pericial à letra e assinatura do executado (item 21º do seu articulado) ...
Conclui pela improcedência da oposição.

Sobre o teor dos documentos juntos pronunciou-se o executado (fls. 53/4).

O Senhor Juiz proferiu saneador-sentença, dando como verificados todos os pressupostos processuais (nomeadamente competente o Tribunal) e, entendendo possuir, desde já e sem mais, os elementos necessários, conheceu do mérito da oposição à execução, julgando-a improcedente, devendo a execução prosseguir os seus termos normais (fls. 61-63).

Irresignado o executado, apelou; e, alegando, concluiu (art.s 684º-3 e 690º-1, CPrC):
.Não constam dos autos todos os elementos para poder, de imediato, ser proferida decisão, necessitando de ocorrer a produção de prova, nomeadamente a pericial, pois invocou
-a não genuinidade da sua assinatura aposta na livrança dada à execução,
-a não entrega de qualquer exemplar do contrato de crédito, implicando a sua nulidade; e cujo ónus de prova cabe ao credor/exequente;
-ocorre a excepção de não cumprimento do contrato, porque o automóvel não lhe foi entregue, havendo coligação entre o contrato do crédito ao consumo e o contrato de compra e venda do veículo.
Deve a decisão recorrida ser revogada, proferindo-se saneador, para apreciação da oposição deduzida.

Não foram apresentadas contraalegações.

Conhecendo.

Entende o executado/opoente/apelante que ainda não facultam os autos todos os elementos fácticos para o Tribunal “a quo” poder proferir, de imediato, decisão final sobre as “questões” suscitadas na oposição deduzida à execução.

Quanto a elas, a matéria de facto é controvertida entre as partes, importando dirimi-la, com a produção de prova a indicar, e, em função da que se vier a ter por provada, considerando a quem cabe o seu ónus, no caso de sucumbência, aplicar-lhe as regras de Direito correspondentes.

Na conformidade do legislado, não pode deixar de ser assim.

Ao Julgador do processo apenas cabe proferir despacho saneador, destinado a conhecer imediatamente do mérito da causa, se o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação do(s) pedido(s) deduzidos ou de alguma excepção peremptória – art. 510º - 1 b), CPrC.

Quanto à alegada falsidade da assinatura aposta na livrança exequenda o Senhor Juiz entendeu que, «atentas as nítidas e patentes semelhanças existentes entre as assinaturas e entre estas e a constante do seu B. I. (análise comparativa), não é curial, sob pena até de litigância de má fé, que o opoente/executado venha dizer que a assinatura a si atribuída, aposta na livrança dada à execução, no local destinado à subscrição, não é do seu punho, pois tal, atentas as circunstâncias (... alegadas), não é credível, não nos convence»...

Sabemos que ao documento particular da livrança exequenda a Lei confere força executiva, atendendo ao interesse do credor na realização rápida e eficaz do seu crédito – art. 46º-1, ibidem.
Contrapõe-se-lhe o interesse do devedor em não ver o seu património envolvido na execução sem que o direito do credor, portador do título de crédito, esteja devidamente comprovado, corresponda à realidade.
A conciliação da prontidão da execução com a exigência de que esta seja justa, faz-se, concedendo a Lei ao devedor a faculdade de debater a relação jurídica substancial ou material na acção de oposição à execução, a esta enxertada por apenso – art.s 813º-1 e 817º-1 “ab initio” ib.
Este processo de oposição é, assim, uma acção declarativa, tendente a verificar se o direito de crédito expresso, formal e abstractamente, no título executivo, é conforme à realidade (A Reis, Processo de Execução, I, 1982, pág.s 57 e 59).
A livrança exequenda tem de certificar e atestar com alguma segurança a existência do direito que se pretende ver satisfeito.
Por isso, a presunção de veracidade atribuída a tal documento funciona unicamente para o impulso da acção executiva; que, se tal veracidade for contestada, a oposição fica sujeita às regras do processo de declaração – art. 817º-2; a repartição do ónus da prova há-de fazer-se de harmonia com os preceitos dos art.s 515º, CPrC; e 342º e 374º-2, CC.
Assim, quando o título executivo se não reveste de força probatória legal – como no caso da livrança – não é à executada que compete a prova negatória dos factos constitutivos do direito, mas sim ao exequente a prova da sua existência.
Aqui, a regra do ónus da prova não sofre alteração, dado que não depende da posição formal das partes no processo, mas tão só da sua posição na relação jurídica material (Anselmo de Castro, Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1970, pág.s 44/5 e 274/5).
Assenta a execução na simples certificação da existência do direito pelo título de crédito (livrança). Posta em causa a validade deste, a não correspondência do direito que atesta com a realidade dos factos, é ao exequente que incumbe provar o seu direito, da mesma forma que o faria na acção declarativa, de que poderia usar, para retirar dúvidas e prosseguir seguro na execução que alicerçaria depois na sentença condenatória.

Assim, e no que concerne aos documentos particulares em que se incluem os títulos de crédito/livrança, estatui o nº 2, do art. 374º, CC, que, se a parte contra quem o documento é apresentado, impugnar a veracidade da letra ou da assinatura ... incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade.

Havendo impugnação da assinatura, como no caso, pelo opoente à execução, C………., é ao apresentante da livrança que incumbe provar a autoria contestada (cfr. P. Lima e A Varela, CC Anotado, 1967, I, 246); tendo de o fazer. Ou seja, continua a pertencer-lhe a prova da respectiva autoria da veracidade da assinatura (A Varela ... Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 414/5).
Se o título tem de ser aceite pelo Tribunal “ab initio”, já o não tem de ser pelo executado; que pode atacá-lo; como, no caso, o fez. E, atacando-o, faz emergir da sombra a causa geradora do título executivo.
«Na oposição de mérito, o executado insurge-se contra o título e não contra a execução; e tem o alcance de fazer prevalecer a relação jurídica substancial sobre o direito instrumental, o fim sobre o meio, o fundo sobre a forma» (A. Reis, ob. cit. pág. 118).
O opoente/executado/apelante, ao dizer que a assinatura aposta no lugar do subscritor não é do seu punho, está a impugnar directamente o direito do exequente à acção executiva. E fá-lo frontalmente, dizendo que o direito constante do título não existe realmente.

Atento o que se deixa explanado, em vista de uma mais ampla justificação da posição aqui a tomar, questão de facto primeira é a de se apurar, se a assinatura aposta no lugar próprio do subscritor da livrança exequenda é do punho do opoente/executado, C………. .

Como, depois, também não se queda por aí. Pois também invoca o opoente que lhe não foi entregue
-qualquer exemplar do contrato de crédito/financiamento, tal implicando, por isso, a sua nulidade;
-nem o veículo automóvel; razão de ser do pedido de financiamento, invocando, por isso, a excepção do não cumprimento do contrato.

Não pode, por ora, no estado dos autos, só com a p. i. e a contestação, em que há matéria de facto articulada controvertida entre as partes, o Senhor Juiz avançar para uma imediata decisão de mérito, sem que primeiramente o exequente/apelado demonstre tais factos subjacentes a tais questões, como se expôs.
Terá o processo de oposição de prosseguir, possibilitando ao exequente, por tal, que, elaborada a especificação (factos assentes) e a base instrutória (BI – os factos controvertidos), as partes apresentem a sua prova (testemunhal – cfr. Ac. STJ, de 26.10. 89, AJ 2º, 89, pág. 13, Ac. Rel. Coimbra, de 9.7.96, BMJ 459, 618); ou outra), requeiram diligências (v. g. exame pericial à letra e assinatura do executado/apelante, conforme previamente fôra anunciado pelo exequente, item 21º sua contestação) – art.s 817º-2, 508º a 512º-A ... CPrC.
Ora, regra é que o Senhor Juiz forme a sua convicção através das provas indicadas pelas partes. E no art. 652º-3 a) c) e d), ib. houve o cuidado de lembrar – se requeridos – a prestação do depoimento de parte, esclarecimentos periciais e inquirição de testemunhas, como diligência prévia do julgamento da matéria de facto – art. 653º-2.
Em relação a estas provas, quando requeridas pelas partes, só estas estão em condições de ajuizar acerca da sua utilidade. Sob pena de se cair em puro arbítrio e desvio do fim legal – demonstrar a realidade dos factos (art. 341º, CC), não pode o Senhor Juiz precludir a sua indicação nem definir quando há a possibilidade de inquirir prova testemunhal, se arrolada; dada a sua impossibilidade de saber antecipadamente o que as testemunhas poderão dizer.
É que o Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las – art. 515º, CPrC.

Não cabendo, afinal, o ónus da prova ao opoente/executado/apelante
-de que a assinatura é do seu punho; antes, incide sobre o exequente/credor/apelado, no sentido de que tal assinatura é do punho do subscritor/opoente; como
-de que a cópia /exemplar do contrato lhe (ao aderente consumidor) foi entregue – art.s 6º, 7º- e 12º, do Dec. lei nº 359/91, de 21.9; ou,
-porventura, de que invocada pelo devedor a “exceptio” do não cumprimento do contrato, se lhe (ao credor) indexa o ónus da prova de que já cumpriu ou então que o seu prazo de cumprimento era posterior (A Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª edição, I, pág. 282, nota 3 em rodapé; Vaz Serra, BMJ 67, 50/1; Ac STJ, de 1.6.1988,BMJ 378, 643),
a liberdade de julgamento das provas do art. 655º, CPrC, pressupõe que elas tenham já sido produzidas e previamente indicadas. O que não é o caso.

Está-se no domínio de contrato de crédito ao consumo coligado com contrato de compra e venda, sujeitos à disciplina do citado Dec. Lei nº 359/91, de 21.9.

Sem a comprovação, ou não, da facticidade alegada pelas partes, inerente a tais suscitadas “questões” e ainda, no estado dos autos, parcialmente controvertida, relevante para a decisão da causa, e segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito (que não apenas aquela a que o Senhor Juiz aderiu), poder-se-á dizer que este ajuizou e decidiu, sem mais, intempestiva e prematuramente.
Impõe-se o prosseguimento dos autos, de forma que ao saneador se siga o condensador, com a selecção dos factos alegados já assentes (especificação) e dos que ainda estão controvertidos (BI).

A final, se for caso disso, não de deve descurar a apreciação do comportamento das partes, para o efeito do normativo do art. 456º-2, CPrC.

Procedem as conclusões da alegação do recurso.

Termos em que se decide,

-julgar procedente a apelação; e, em consequência,

-se revoga o saneador-sentença; e se ordena que o Senhor Juiz, em sua vez,

-proceda à selecção da matéria de facto articulada pelas partes, conforme ao seu respectivo ónus probatório, no cumprimento do disposto no art. 511º-1, CPrC; e fazendo cumprir o demais e subsequente ritualismo legal.

Custas, a final, pela parte vencida.

Porto, 22 de Fevereiro de 2007
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida