Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0635536
Nº Convencional: JTRP00039613
Relator: JOSÉ FERRAZ
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
DEFICIENTE
Nº do Documento: RP200610190635536
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 687 - FLS 164.
Área Temática: .
Sumário: I - Se a embargante, após alegar (embora de forma deficiente, com eventuais consequências em sede de mérito ou inconcludência, e nem sequer se indica prova a indiciar a alegação) que os bens lhe pertencem, a si e à sua família, que não existem bens do executado a penhorar, e alegando que se opõe à penhora de bens da sua família, que a exequente não pode nomear à penhora bens comuns do casal, não pode deixar de entender-se que, na conclusão formulada, está contido (ao menos implicitamente) um pedido de levantamento da penhora (que se presume efectuada), consequência do acolhimento da pertença dos bens (ainda que em contitularidade) à embargante.
II - Há pedido formulado. Se a petição é deficiente (e é-o), os efeitos da insuficiência não se manifestam ao nível da ineptidão ou não projectam, como consequência, a ineptidão da petição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Em 19/10/2001, por apenso à execução ...-B/2000, dos Juízos Cíveis do Porto, veio B………. (mulher de E………., executado nessa execução) deduzir embargos de terceiro (assim se entendendo por serem citados os artigos 351º e sgts. do C. P. Civil), apresentados em Novembro de 2001.
Diz tratar-se de um aceite (suponde-se ter o executado aceitado alguma letra de câmbio) de favor para ajudar, num caso pontual, a empresa “D……….”, sem existir relação negocial entre o aceitante e a empresa, com prejuízo dos interesses do casal e que a embargante nunca aceitaria se tivesse prévio conhecimento.
Diz que empresa referida tem outros bens que possam responder pela dívida, que a embargante se opõe à penhora dos bens da sua família, que o aceitante vive em casa do pai da embargante, com a irmã, seu marido e filha, e que os bens existentes nessa casa pertencem ao pai da embargante, a esta e à sua irmã (sendo aquela e esta herdeiras de uma quota ideal, por morte da sua mãe).
Que a exequente não pode nomear à penhora bens comuns do casal.
Não há bens a penhorar pertencentes ao aceitante.
Conclui que “devem, os presentes embargos serem julgados procedentes, por provados, com as legais consequências, com custas e procuradoria pelo embargado”.

Seguidamente, entendendo o Mmo Juiz que não foi deduzido pedido, “já que a embargante não diz qual a alteração na vida real pretende obter com a acção” julgou a petição inepta e rejeitou liminarmente os embargos.

II. Discordante, recorre a embargante.
Alega e conclui que:
A – A ora recorrente, nos embargos deduzidos, fundamentou o seu pedido alegando:
1) terem sido penhorados, indevidamente, bens comuns do casal e bens indivisos, seus e dos seus familiares, assim se opondo á penhora;
2) não ter assinado nem autorizado o aceite que, até, desconhecia;
3) foi um aceite de favor, não havendo qualquer relação negocial subjacente;
4) a sua qualidade de terceiro;
5) a circunstância de no título executivo não conter a existência de uma relação negocial;
6) não ser, o ora executado, o proprietário dos bens e que este vive em casa do pai da embargante;
7) a circunstância de a ora recorrente não ter sido chamada à acção.
B - Assim, conforme é Jurisprudência pacífica, a recorrente alegou factos materiais e concretos que revelam e fundamentam o seu pedido e a causa de pedir, invocando expressamente, também, o artº 351º e seguintes, do C. P. Civil.
C – Existe portanto, pedido e causa de pedir perfeitamente inteligíveis.
D – Por isso, o tribunal “a quo” fez uma interpretação errónea, quiçá restritiva, de tudo quanto foi alegado pela recorrente nos embargos deduzidos, pelo que violou o disposto no artº 193º nº 1 e 2 al. a) do C. C. Civil r, consequentemente, o preceituado nos artºs 288º nº 1 al. b), 493º nº 2, 4494º al. b) e 495º, todos do C.P.Civil.

Deve, pois, ser revogada a sentença proferida e que ora se recorre, ordenando-se o prosseguimento dos embargos que, a final, deverão ser julgados procedentes, assim se fazendo justiça.
Não houve resposta à alegação da agravante.
Colhidos os vistos cumpre decidir.

III. Os factos a atender – todo o teor da petição de embargos.
IV. Face ao teor das conclusões, que delimitam o objecto do recurso (arts. 684º/3 e 690º/1 do CPC), importa decidir se a petição não é inepta por falta de pedido, por a embargante o formulado perfeitamente inteligível.
Observa-se a incompreensível e injustificável demora do processo (quatro anos sem ser aberta conclusão – fls. 37/38 e 41).
V. Apreciando o recurso.
Os embargos foram rejeitados por ineptidão, tendo o Exmo Sr. Juiz considerado que não foi formulado pedido e, sem pedido, fica-se sem saber o que pretenderia a parte com a acção, que efeito pretende obter ou, como se expressa no despacho recorrido, qual “a alteração na vida real que se pretende obter com a acção”.
Cumpre averiguar se a petição de embargos não é inepta, se dela se pode concluir pelo pedido ou saber qual a pretensão formulada (neste âmbito se limitando a decisão, pois que o objecto do recurso é o acto recorrido, havendo que reponderar a decisão impugnada e não decidir questões novas nela não incluídas, salvo se do conhecimento oficioso).
“Se qualquer acto, diligência judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valor, deduzindo embargos de terceiro” – dispõe o artigo 351º/1 do CPC.
Os embargos de terceiro são o meio apropriado para terceiro (“quem não é parte na causa” – como sem equívocos o prevê a lei) reagir contra a diligência judicialmente ordenada ofensiva da posse ou outro direito incompatível com tal diligência.
Traduzem-se numa acção declarativa, dependente do processo pendente entre outras partes e em que foi ordenada a diligência judicial ofensiva do direito invocado pelo embargante (cfr. artigo 353º/1 do CPC), seja a posse ou outro direito incompatível com o acto ordenado [Com os embargos visa-se “a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de alguma acto judicial de afectação ilegal de um direito patrimonial do embargante” Salvador da Costa, em Incidentes da instância, 2ª edição, 181).].
Pressuposto dos embargos é que haja sido ordenado (e efectivado, tratando-se embargos repressivos, como sucede a maior parte das vezes) um tal acto ou diligência ofensivo desse direito. Se não existe ou não é invocado tal “ofensa” não há lugar para embargos.
Deve invocar os factos que integram a causa de pedir como “o facto jurídico de que deriva o direito” invocado (artigo 498º/4 do CPC), não se limitando a alegar o facto abstracto, mas a materialidade concreta que permita concluir pelo alegado direito, a ‘factualidade integrante desse direito’.
E concluir pelo pedido, ou seja, o efeito jurídico que se pretende obter; a pretensão formulada pelo autor, a providência que requer ao tribunal [“o direito para que ele solicita ou requer a tutela judicial e o modo por que intenta obter essa tutela (providência judiciaria requeria)” em Manuel de Andrade, em Noções Elementares de processo Civil, 1979/111; a providência solicitada ao tribunal que o requerente “julgue adequada para tutela duma situação jurídica ou dum interesse que afirma materialmente protegido”, em J. Lebre, CPC Anotado, 321.].
Os embargos são um meio de terceiro reagir contra uma penhora (ou outro acto ordenado judicialmente) lesiva de direito com ela incompatível.
Com eles reage-se contra uma decisão ilegítima de que decorre a lesão do direito de terceiro e visa-se que a diligência ordenada ofensiva do direito seja levantada [Sempre que os embargos sejam “julgados procedentes, o juiz não faz mais do que confirmar o despacho que recebeu os embargos e deverá, conforme os casos, ordenar o levantamento definitivo da diligência ofensiva da posse (ou, em termos gerais do direito) ou impedir a concretização da diligência judicial”, em Miguel Mesquita, Apreensão de bens em Processo executivo e Oposição de Terceiro, 129). E, como escreve este autor, em nota, “o embargante pretende sempre que o tribunal declare a existência de uma determinada situação oponível ao embargado. Mas a sentença relativa aos embargos, em caso de procedência, não se esgota nesta declaração”; assume “natureza constitutiva”.], ficando sem efeito o acto ou a diligência ofensiva da posse ou de outro direito alegado. No caso de ofensa á posse, o objectivo imediato dos embargos (de feição repressiva) é a restituição da posse.
O que se pretende é que se ordene o levantamento definitivo (ou a não concretização, nos embargos preventivos) da diligência ofensiva da posse ou do direito alegado. É essa a pretensão típica dos embargos de terceiros e o efeito de uma decisão que os acolha é “a revogação da apreensão judicial ilegítima”.
O embargante deve pedir o levantamento da diligência ofensiva (a penhora, na execução para pagamento de quantia certa) do direito invocado e a restituição da posse (se dos bens foi desapossado), devendo esclarecer a que bens se refere e, na procedência, é esse levantamento que se ordena, sendo seu pressuposto ou antecedente lógico o reconhecimento do direito.

A embargante, cônjuge do executado C………., não é parte na execução (que tem por base um título cambiário de que não é signatária), pelo que tem a qualidade de terceiro.
O cônjuge do executado, que tenha a posição de terceiro, pode embargar para defender os direitos relativos aos bens próprios e aos bens comuns que sejam indevidamente atingidos pela diligência da penhora (artigo 352 do CPC), embora o recurso aos embargos para defesa destes (bens comuns) só seja admissível quando os bens são ‘indevidamente atingidos’ pela penhora, o que só acontece se não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 825º/1 [“Na execução movida contra um só dos cônjuges, podem ser penhorados bens comuns do casal, contanto que o exequente, ao nomeá-los à penhora, peça a citação do cônjuge do executado, para requerer a separação de bens”.] do CPC (na redacção à data da suposta diligência de penhora e subsequente dedução dos embargos), o que não consta informado nestes autos.
No seu articulado, de forma confusa, deficiente e sem sequência, além de pretender afastar a comunicabilidade da dívida do executado (único aspecto em que revela alguma clareza) e que a sociedade executada tem outros bens que respondem pela dívida exequenda (o que é irrelevante para a sua defesa e para a decisão do recurso), diz que todos os bens existentes na casa onde vive (com o seu marido) “pertencem ao pai da embargante, a esta e à sua irmã”, como herdeiras por morte da sua mãe, não se tendo ainda efectuado a partilha. E que não há bens a penhorar pertencentes ao aceitante (executado) e a embargante opõe-se a qualquer penhora sobre os bens da sua família (sem que esclareça se se refere à família constituída pelo casal ou à constituída pelo seu pai, por si e pela irmã). Embora só tenha legitimidade para defender por embargos direito seu (ainda que em contitularidade com outrem).
Ao contrário do que agora afirma (nas alegações de recurso), pelo teor da petição fica-se sem saber a razão dos embargos, pois, nela, não se faz referência alguma a penhora que haja sido ordenada e concretizada, nem a que bens concretos ou direitos a penhora se refere.
Nem se indicam os bens penhorados, ou que tenham sido penhorados, quer comuns do casal quer próprios da embargante (ainda que indivisos). Pelo que se desconhece quais os concretos bens penhorados, admitindo-se que haja penhora, pois a mesma é implicitamente reconhecida no despacho recorrido.
A embargante limita-se, ao longo do seu discurso, a afirmar, de forma conclusiva, que os bens existentes na casa onde vive “pertencem ao pai da embargante, a esta e à sua irmã, sendo aquela e sua irmã herdeiras de uma quota ideal” por morte da sua mãe, cuja partilha ainda não teve lugar, e que aí não há bens a penhorar pertencentes ao executado.

E termina a pedir que “devem, os presentes embargos serem julgados procedentes, por provados, com as legais consequências”.
Esta formulação é vaga e, em si mesma, não encerra qualquer pretensão concreta, cuja escolha e definição compete à parte e não ao tribunal que não pode julgar senão em face do pedido e não pode ir além do pedido.
Sem os antecedentes alegados na fundamentação, não seria possível alcançar o objectivo da embargante, o que, de facto, pretendia obter ou, como se diz na decisão recorrida, “qual a alteração na vida real que se pretende obter”.
Mas deve ter-se presente, na situação dos embargos de terceiro e em atenção da alegação fundamento, o objectivo dos mesmos e o efeito típico que se visa obter com a sua dedução, em atenção aos concretos fundamentos alegados (causa de pedir).
Ora, a embargante, após alegar (embora de forma deficiente, com eventuais consequências em sede de mérito ou inconcludência, e nem sequer se indica prova a indiciar a alegação) que os bens lhe pertencem, a si e à sua família, que não existem bens do executado a penhorar, e alegando que se opõe à penhora de bens da sua família, que a exequente não pode nomear à penhora bens comuns do casal, não pode deixar de entender-se que, na conclusão formulada, está contido (ao menos implicitamente) um pedido de levantamento da penhora (que se presume efectuada), consequência do acolhimento da pertença dos bens (ainda que em contitularidade) à embargante. Há pedido formulado. Se a petição é deficiente (e é-o), os efeitos da insuficiência não se manifestam ao nível da ineptidão ou não projectam, como consequência, a ineptidão da petição.
Não pode deixar de considerar-se que, ao concluir como concluiu, o que a embargante pretende é o levantamento da penhora.

VI. Pelo que o douto despacho não deve manter-se e deve ser substituído por outro que não julgue inepta a petição por falta de pedido com prosseguimento do processo, sem prejuízo do conhecimento prévio de quaisquer outras questões que seja legítimo ao Senhor Juiz conhecer nesta fase introdutória, incluindo convidar a embargante ao aperfeiçoamento da petição, se for entendido conveniente (e que melhor se adequaria em tempo oportuno).

VII. Pelo exposto acorda-se neste tribunal da Relação em dar provimento ao agravo, revogando-se o douto despacho recorrido que indeferiu a petição por ineptidão por falta de pedido, que deve ser substituído por outro que não julgue inepta a petição por falta de pedido, dando-se seguimento ao processo, sem prejuízo do conhecimento das questões que deva conhecer, conforme mencionado em VI da fundamentação.
Sem custas.

Porto, 19 de Outubro de 2006
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira