Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
52/08.5TBSJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
SOCIEDADE COMERCIAL NÃO REGISTADA
NATUREZA
BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA
Nº do Documento: RP2010101352/08.5TBSJM.P1
Data do Acordão: 10/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A sociedade comercial não registada não tem personalidade jurídica, porque o registo definitivo do contrato é elemento constitutivo dessa personalidade (art. 5º do CSCom.), mas tem personalidade judiciária por força do disposto no art. 6º, al. d) do CPC: é uma sociedade que não cumpriu todo o processo de formação estabelecido no CSCom. (acto constitutivo inicial, registo e publicação) e, como tal, padece de um vício de formação.
II – A “assunção” referida no art. 19º do CSCom. não se subsume à figura da assunção de dívida ou transmissão singular de dívida prevista nos arts. 595º a 600º do CC, sendo, antes, uma condição classificável como: imprópria, porque a sua estipulação não tem carácter negocial; resolutiva, porque o registo (nas situações previstas no nº1 do citado art. 19º) e a ratificação (nas situações previstas no nº2) são condicionantes resolutivos da pluralidade de responsáveis, isto é, condicionam a exclusão da responsabilidade dos sócios; automática, no caso do nº1 do art.19º, por ser necessário apenas o registo; e exercitável, potestativa, no caso do nº1, por, além do registo, ser necessária uma manifestação de vontade da sociedade.
III – Por maioria de razão decorrente do preceituado no art. 36º, nº2 do CSCom., os sócios que, no período compreendido entre a celebração do contrato e o registo, realizaram negócios em nome da sociedade ou os autorizaram, podem pedir a prévia excussão do património social.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 52/08 – 3ª Secção (Apelação)
Acção Sumária – 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de São João da Madeira

Rel. Deolinda Varão (464)
Adj. Des. Freitas Vieira
Adj. Des. Cruz Pereira


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B………., LDA instaurou acção declarativa de condenação, com forma de processo sumário, contra C………..
Pediu que o réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 10.137,58, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a data de vencimento de cada uma das facturas até efectivo e integral pagamento, calculando os já vencidos em € 2.354,43.
Como fundamento, alegou, em síntese, que forneceu a D………., Lda várias quantidades de contrafortes e testeiras de diversos modelos pelo preço total de € 10.137,58, tendo interpelado para o pagamento através do envio das respectivas facturas; que a D……….… foi constituída por escritura pública, mas não foi registada; que sempre lidou com o réu, que era quem tinha por sócio gerente da D……….….
O réu contestou, invocando a sua ilegitimidade e a prescrição presuntiva, alegando que foi gerente da D……….…, mas que não teve intervenção na compra das mercadorias que a autora alega ter fornecido e impugnando ainda parte dos factos alegados pela autora.
A autora respondeu às excepções, pugnando pela sua improcedência.
No despacho saneador, foram julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade e da prescrição presuntiva.

Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que condenou o réu, subsidiariamente, a pagar à autora a quantia de € 10.137,58, bem como os respectivos juros de mora vencidos, no montante de € 2.354,43, e vincendos desde a data da citação até integral pagamento.

A autora recorreu, formulando as seguintes
Conclusões
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O réu não contra-alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
A autora é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico de componentes para a indústria de calçado. (A)
A sociedade comercial D………., Lda. tem a sua matrícula inscrita no registo em 28.03.07, tendo sede na Rua ………., .., ………., concelho de Santa Maria da Feira. (B)
Em 09.11.07, foi inscrita no registo a designação do ora réu para a gerência daquela sociedade por deliberação da assembleia-geral de 13.03.02. (C)
Em Julho e Agosto de 2005, tal sociedade havia já sido constituída por escritura pública, exercendo já então o ora réu a respectiva gerência, sendo que estava pendente registo provisório desde 07.01.05, que veio a caducar em 28.11.05. (D)
No exercício da sua actividade, a autora fabricou e forneceu à sociedade D……….…, durante os meses de Julho e Agosto de 2005, várias quantidades de contrafortes e testeiras, de diversos modelos, no valor total de € 10.137,58. (2º)
Foram nessa sequência emitidas pela autora, em 29.07.05 e 31.08.05, as facturas cujo teor consta de fls. 5, 6 e 7. (3º)
As quais foram enviadas àquela referida sociedade, que as recebeu e aceitou. (4º)
Tendo como prazo de pagamento 60 dias a contar da sua data. (5º)
Todas as encomendas feitas pela D……….… eram-no com autorização do réu. (6º)
Tendo o réu agido perante a autora, quanto a este e a fornecimentos anteriores, como sócio e gerente da sociedade D……….…. (7º)
As mercadorias não foram pagas. (10º)
Nessa sequência, o réu propôs o seu pagamento em prestações. (11º)
*
III.
A questão a decidir – delimitada pelas conclusões da alegação da autora (artºs 684º e 685º-A do CPC) – é a seguinte:
- Natureza da responsabilidade do réu, enquanto sócio-gerente de uma sociedade por quotas, pelos negócios praticados em nome da sociedade antes do registo desta.

O artº 18º, nº 5 do CSC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem outra menção – estipula a obrigatoriedade de inscrição no registo comercial do contrato de sociedade. Essa mesma obrigatoriedade resulta do disposto no artº 3º, al. a) do CRComercial.
A sociedade comercial não registada não tem personalidade jurídica, porque o registo definitivo do contrato é elemento constitutivo dessa personalidade (artº 5º), mas tem personalidade judiciária por força do disposto no artº 6º, al. d) do CPC.
A sociedade comercial não registada é uma sociedade que não cumpriu todo o processo de formação estabelecido no CSC (acto constitutivo inicial, registo e publicação) e, como tal, padece de um vício de formação.
Segundo Pinto Furtado[1], na actual concepção da lei, deixou de ter cabimento fazer-se corresponder à sociedade eivada de vício de formação a velha categoria de sociedade irregular; se quisermos adoptar uma denominação susceptível de abarcar a realidade global, será preferível chamar-lhe sociedade imperfeita, por ser esta a designação que melhor exprime a ideia de inacabado, que caracteriza o regime jurídico correspondente aos distintos estádios do seu processo formativo ainda por completar.
Como é corrente realizar-se uma actividade comercial em nome de uma sociedade que ainda não cumpriu todo o referido processo de formação, a lei disciplina as relações entre os sócios, bem como as relações com terceiros, quer no período compreendido entre a conclusão do acordo e a celebração do contrato de sociedade, quer no período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o registo definitivo.
No período compreendido entre a celebração do contrato e o registo definitivo, há apenas que tutelar os interesses legítimos de terceiros em face da omissão de registo.
No caso, interessam-nos as relações externas de uma sociedade por quotas não registada com terceiros.
E, quanto a este ponto, diz o artº 40º, nº 1 que, pelos negócios realizados em nome de uma sociedade por quotas, anónima ou em comandita por acções, no período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o seu registo definitivo, respondem ilimitada e solidariamente todos os que no negócio agirem em representação dela, bem como os sócios que tais negócios autorizarem, sendo que os restantes sócios respondem até às importâncias das entradas a que se obrigaram, acrescidas das importâncias que tenham recebido a título de lucros o de distribuição de reservas.
Sobre o que sucede aos negócios referidos no artº 40º, nº 1, após a efectivação do registo definitivo do contrato de sociedade, rege o artº 19º:
- A sociedade assume de pleno direito os direitos e obrigações enumerados nas diversas alíneas do nº 1 do preceito;
- Nos termos do nº 2, os direitos e obrigações decorrentes de outros negócios jurídicos não contemplados no nº 1 podem ser assumidos pelo nº 1 mediante decisão da administração, que deve ser comunicada à contraparte nos 90 dias posteriores ao registo;
- A sociedade não pode assumir obrigações derivadas de negócios jurídicos não mencionados no contrato social que versem sobre vantagens especiais, despesas de constituição, vantagens em espécie ou aquisições de bens (nº 4).
Há assim negócios que são automaticamente assumidos pela sociedade (artº 19º, nº 1), outros que são assumidos por decisão da própria sociedade (artº 19º, nº 2) e outros que não podem ser assumidos (artº 19º, nº 4).
A assunção pela sociedade dos negócios indicados nos nºs 1 e 2 do artº 19º retrotrai os seus efeitos à data da respectiva celebração e libera as pessoas indicadas no artº 40º da responsabilidade aí prevista, a não ser que por lei estas continuem responsáveis (nº 3 do artº 19º).
Como resulta do nº 3 do artº 19º, a assunção prevista nos nºs 1 e 2 do preceito não tem como efeito transmitir a responsabilidade para a sociedade, mas apenas excluir a responsabilidade dos sócios referidos no nº 1 do artº 40º.
Por isso, se entende que a assunção referida no artº 19º não se subsume à figura da assunção de dívida ou transmissão singular de dívida prevista nos artºs 595º a 600º do CC, sendo antes uma condição.
Essa condição poderá classificar-se como: - imprópria porque a sua estipulação não tem carácter negocial; - resolutiva porque o registo (nas situações previstas no nº 1 do artº 19º) e a ratificação (nas situações previstas no nº 2) são condicionantes resolutivos da pluralidade de responsáveis, isto é, condicionam a exclusão da responsabilidade dos sócios; - automática no caso do nº 1 do artº 19º, por ser necessário apenas o registo e exercitável, potestativa, no caso do nº 1, por, além do registo, ser necessária uma manifestação de vontade da sociedade[2].
Resulta do exposto que da assunção pela sociedade dos negócios referidos nos nºs 1 e 2 do artº 19º, nos termos ali previstos, não se pode concluir que, anteriormente, o património social não respondesse já por tais negócios.
O que se pode concluir é tão só que, após o registo, apenas a sociedade responde pelos referidos negócios (pelos indicados no nº 1, automaticamente; pelos indicados no nº 2, após manifestação de vontade nesse sentido).
O regime do artº 19º é um dos dois principais fundamentos da posição maioritária da doutrina no sentido de que, já anteriormente à assunção ali prevista, e independentemente dela, a sociedade era responsável pelos negócios referidos nos nºs 1 e 2 do preceito, conjuntamente com os sócios que se encontrassem nas condições previstas no nº 1 do artº 40º.
O outro principal fundamento reside no regime de responsabilidade da sociedade expressamente previsto no artº 36º, nº 2 para as relações anteriores à celebração do contrato de sociedade: por coerência do sistema, se a sociedade é responsável pelos negócios anteriores à celebração do contrato de sociedade, terá de ser também responsável pelos negócios realizados entre a celebração do contrato e o registo[3].
Não nos vamos alongar sobre a questão da responsabilidade da sociedade, por não vir posta em causa no recurso.
A questão que se coloca é a da natureza da responsabilidade dos sócios no período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o registo.
Trata-se de saber se essa responsabilidade ocorre a título principal (como sustenta a autora), ou a título subsidiário, beneficiando os sócios do benefício da excussão prévia (como se entendeu na sentença recorrida).
O artº 40º, nº 1 fala apenas em responsabilidade solidária e ilimitada, sendo omisso quanto à possibilidade de os sócios exigirem a prévia excussão do património social.
A doutrina assumiu posições divergentes quanto à questão em apreço.
No sentido da natureza subsidiária da responsabilidade dos sócios, o principal argumento emerge da redacção do artº 36º, que rege as relações anteriores à celebração do contrato de sociedade.
Segundo o nº 2 daquele preceito, se for acordada a constituição de uma sociedade comercial, mas, antes da celebração do contrato de sociedade, os sócios iniciarem a sua actividade, são aplicáveis às relações estabelecidas entre eles e com terceiros as disposições sobre sociedade civis.
Ora, o artº 997º do CC diz, no seu nº 1 que, pelas dívidas sociais respondem a sociedade e, pessoal e solidariamente, os sócios, mas acrescenta, no nº 2 que, porém, o sócio demandado para pagamento dos débitos da sociedade pode exigir a prévia excussão do património sócia.
Argumenta-se então que, se, mesmo quando não há contrato de sociedade, há uma responsabilidade subsidiária por parte daqueles que realizaram determinados actos, por maioria de razão, se já foi celebrado o contrato de sociedade, se já estamos perto do momento culminante da constituição da sociedade, que é o registo, então também se justificaria que fosse o património autónomo, constituído pelas contribuições dos sócios ou futuros sócios, a responde por esses actos, designadamente perante os credores[4].
Segundo Ana Peralta[5], estamos em presença de uma lacuna, a ser preenchida pelo meio indicado pelo CSC, no artº 2º: os casos omissos são regulados pela norma do próprio Código para casos análogos e, na falta destas, pelas normas do CC sobre contrato de sociedade. As normas aplicáveis a casos análogos são as que prevêem a responsabilidade subsidiária dos sócios de responsabilidade ilimitada, na sociedade em nome colectivo (artº 175º, nº 1) e na sociedade em comandita (artº 465º, nº 1), assim como a prevista no artº 36º, nº 2, através da remissão para o artº 997º do CC. Relativamente aos membros dos órgãos de gestão, a regra da subsidariedade consta igualmente do artº 78º.
A argumentação de Ana Peralta responde à posição assumida por Paulo Tarso Domingues[6], que defende a responsabilidade solidária (a título principal) entre o património da sociedade e o património dos sócios, por aplicação do regime-regra das obrigações comerciais previsto no artº 100º do CCom[7].
Lebre de Freitas (citado pela autora nas conclusões), afirma que resulta dos artºs 36º e 38º a 40º que a responsabilidade, entre si solidária, dos sócios da sociedade irregular se verifica a título principal (e não subsidiário) [8]. Porém, não fundamenta a sua posição.
Concordamos com a posição doutrinária que defende a possibilidade de os sócios que, no período compreendido entre a celebração do contrato e o registo, realizaram negócios em nome da sociedade ou os autorizarem, poderem pedir a prévia excussão do património social.
O principal argumento é, de facto, quanto a nós, o argumento da “maioria de razão” que resulta da redacção do artº 36º, nº 2: se, quanto aos negócios realizados no período em que nem sequer existe contrato de sociedade, os sócios podem invocar o benefício da excussão prévia, por maioria de razão o poderão fazer quanto aos negócios realizados depois da celebração do contrato de sociedade e antes do registo.
Não se justifica que haja uma maior protecção dos credores no período posterior à celebração do contrato e anterior ao registo do que aquela que há no período anterior à celebração do contrato: depois da celebração do contrato, o processo de formação da sociedade está quase completo, havendo, portanto uma maior certeza e segurança de que a sociedade vai ficar plenamente constituída.

Concluímos, assim, que, no caso, bem andou o Mº Juiz a quo, ao condenar subsidiariamente o réu a pagar à autora o preço dos contratos de empreitada por ele celebrados, em nome da sociedade de que é sócio-gerente, antes de a sociedade estar registada.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência:
- Confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
***

Porto, 13 de Outubro de 2010
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão
Evaristo José Freitas Vieira
José da Cruz Pereira

_________________
[1] Curso de Direito das Sociedades, 5ª ed., págs. 208 e 209.
[2] Ana Maria Peralta, “Assunção Pela Sociedade Comercial de Negócios Celebrados Antes do Registo”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV, págs. 635 e 636.
[3] Cfr. Ana Peralta, estudo citado, págs. 623 e segs., Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, 2ª ed., págs. 123 a 130 e Paulo Tarso Domingues, “O Regime Jurídico das Sociedades de Capitais em Formação”, Estudos em Comemoração dos Cinco Anos da Faculdade de Direito do Porto, pág. 988 e “Os Princípios Regulamentadores do Capital Social”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 33, 2ª ed., pág. 121.
[4] Cfr. Oliveira Ascensão, Direito Comercial, IV, págs. 138 e seguintes, João Labareda, “Sociedades Irregulares - Algumas Reflexões”, Novas Perspectivas do Direito Comercial, págs. 197 e 198 e Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 3ª ed., pág. 208. No sentido da subsidariedade, pronunciam-se também Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, I, págs. 449 e 450 e Coutinho de Abreu, obra citada, pág. 131. Cfr. ainda os Acs. desta Relação de 09.12.98 e da RL de 16.06.05, ambos em www.dgsi.pt.
[5] Estudo citado, pág. 627.
[6] E, segundo este autor, também por Maria Ângela Coelho, no seu ensino oral.
[7] Estudos citados, págs. 986 e 120/121, respectivamente.
[8] A Acão Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª ed., pág. 229, nota 43.