Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0421272
Nº Convencional: JTRP00036864
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
Nº do Documento: RP200404200421272
Data do Acordão: 04/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: É da competência do tribunal comum a acção de prestação de contas movida por sócio contra a gerência da sociedade de que faz parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

B....., casada, residente na Praceta....., ....., intentou a presente acção especial de prestação de contas,

contra

C....., casada, residente na Rua....., em....., ....., pedindo que a ré preste contas da sua gerência efectiva na sociedade F....., Ldª, desde a sua constituição até 28 de Novembro de 2002.

Alega, no essencial, que foi constituída uma sociedade de que, juntamente com a ré, eram seus únicos sócios. A ré exerceu a gerência efectiva da sociedade, mas sempre se esquivou a prestar contas dessa actividade.

Logo no despacho inicial, o Mmº Juiz declarou o tribunal de comércio incompetente em razão da matéria para conhecer desta acção, indeferindo liminarmente a petição, por entender que a acção de prestação de contas extravasava daquelas acções relativas ao exercício de direitos sociais, acções essas sim da competência destes tribunais.

Inconformada com o assim decidido, agravou a autora, pugnando pela revogação da decisão recorrida por continuar a entender que este tribunal de competência especializada é o competente em razão da matéria para conhecer desta acção.
A ré não contra-alegou.
***

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as suas alegações, verifica-se que o inconformismo da agravante radica no seguinte:

1- A agravante, na qualidade de sócia da sociedade irregular (falta de registo) “F....., Lda” requereu Acção especial de Prestação de Contas contra a sócia C..... relativamente ao período em que esta exerceu de facto a gerência efectiva da dita sociedade.

2- Nas sociedades irregulares, à relação entre os sócios, aplica-se o regime estatuído no artigo 37º do C.S.C., ou seja o C.S.C, e demais legislação aplicável.

3- A agravante exigiu o exercício de um direito social, o direito à informação contido nos artigos 181 e 21 do C.S.C..

4- Não pode aplicar na presente a figura de Inquérito Judicial (artigo 450 do C.S.C.) por esta figura exigir que a sociedade esteja regular e devidamente registada.

5- Nos termos do artº 89º, n°1, al. c) da LOFTJ compete aos Tribunais de Comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.

6- Sendo por isso competente o Tribunal a quo para julgar e decidir a acção especial proposta.

B- A verdadeira e única questão controvertida a dilucidar consiste em saber se os tribunais de comércio são competentes para conhecer da acção em que um dos sócios de uma sociedade irregular exige do sócio que de facto exerceu a gerência a prestação de contas durante o período em que desempenhou essas funções.

III. Fundamentação

A- Os factos

Com interesse para decisão da questão controvertida, há a considerar a seguinte factualidade alegada na petição:

1- Em 12 de Julho de 2002, por escritura pública realizada no Cartório Notarial de....., foi constituída a sociedade denominada F....., Lda.

2- Sociedade esta que tinha como sócios a Autora e a Ré.

3- Tendo sido nomeados como gerentes, os referidos sócios outorgantes.

4- Contudo, tal sociedade, nunca foi registada nem sequer foi dado o seu inicio de actividade.

5- A R. exerceu de facto a gerência (gerência efectiva) da referida sociedade desde a outorga da referida escritura.

6- Em 28 de Novembro de 2002 a R. deixou de comparecer na sede da respectiva firma.

7- Deixando ao total abandono o Salão de Cabeleireiros da respectiva firma.

8- Tendo então que assumir a gerência efectiva e de facto a A.

9- Apesar de por diversas vezes tentar contactar com a R. esta sempre se esquivou a prestar contas (créditos ou débitos) do que quer que fosse.

Termina o autor pedindo que a ré seja notificada para no prazo de 30 dias prestar contas da gerência em que esteve investida, ou contestar a acção se assim entender.

B- O direito

Para apreciar a questão da competência em razão da matéria cumpre ter em conta os termos em que a acção é proposta, nomeadamente o pedido e causa de pedir, factores fundamentais para que se possa determinar qual o tribunal materialmente competente. Teremos, assim, que atender à estrutura da relação jurídica material, em apreço, segundo a versão apresentada em juízo pelo autor.

O princípio geral acerca da competência em razão da matéria consta do artigo 66º do CPC. Por sua vez, o artigo 67º do mesmo diploma prescreve que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.
A Lei 3/99 de 3 de Janeiro, que aprovou a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, prevê no seu art. 64° a possibilidade de haver tribunais de 1ª instância de competência especializada.
A par destes existem os tribunais de competência genérica, sendo que, quanto à competência em razão da matéria destes tribunais, rege o princípio da competência residual, já que, conforme ressalta do disposto nos arts. 66º C.Pr.Civil e 77º, nº 1, al. a) da lei 3/99 “as causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal comum”.
E entre os tribunais de competência especializada contam-se os tribunais de comércio – art. 78º, al. e) da citada Lei -, a quem compete, nos termos do art. 89º, nº 1, entre outras, preparar e julgar:
c) as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
Não se toma em consideração o estatuído nas restantes alíneas e pondera-se apenas o disposto na al. c), única onde se poderá incluir a situação vertente, aliás invocada pela agravante em suas alegações de recurso.
O C.Pr.Civil, nos arts. 1479º a 1501º, enumera e determina o processamento de exercício de vários direitos sociais. Em anotação ao art. 1479º diz Abílio Neto [In C.Pr.Civil, Anotado, 16ª, pág. 1495] que à excepção do processo previsto no art. 1.485º, todas as acções compreendidas nesta Secção XVII caem no âmbito da competência dos Tribunais do Comércio.
O C.S.Comerciais, por sua vez, também estabelece uma série de direitos concedidos aos sócios.
A competência dos Tribunais de comércio prende-se com questões relacionadas com a vida e actividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial, sendo este o princípio que deve presidir à fixação do sentido a atribuir à mencionada al. c).
Direitos sociais serão, pois, todos aqueles que os sócios têm enquanto sócios de uma sociedade, tendentes à protecção dos seus interesses sociais. São direitos que nascem na esfera jurídica do sócio enquanto tal, por força do contrato de sociedade.
Já aqueles outros direitos de que os sócios são titulares independentemente da sua qualidade de sócios, em que esta qualidade é irrelevante para o exercício de determinado direito, são direitos extra-sociais que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de terceiros.

No caso concreto, pretende a autora que a ré lhe preste contas da gerência em que esteve investida, sendo este precisamente o pedido formulado. Também no art. 19º da petição, em jeito de conclusão, refere que Pretende a A. que a R. preste contas da sua gerência efectiva na sociedade F....., Lda. desde a sua constituição até 28 de Novembro de 2002. E no início da petição expressamente consignou que vem intentar nos termos do art° 1014 e seg. (s) do C.P.C. Acção Especial de Prestação de Contas.
A prestação de contas é o verdadeiro objectivo a prosseguir com esta acção, e não qualquer outro.
Este não é um típico direito social, um daqueles direitos que tenha nascido na esfera jurídica do autor enquanto sócio de uma sociedade. É um direito que os sócios de uma sociedade exercem como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de um terceiro. Aliás, este processo está previsto e regulado de uma forma genérica no C.Pr.Civil para todo aquele que tenha o direito de exigir a prestação de contas.
Entendemos que a presente acção tem subjacente o exercício de um direito extra-social, que só reflexamente tem a ver com uma participação social, não cabendo em nenhuma das als. do art. 89º LOFTJ, designadamente na al. c) do seu nº 1.
E assim sendo, não será o tribunal de comércio o competente para preparar e julgar esta acção, mas sim o tribunal comum.

IV. Decisão

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo.

Custas pela agravante.

Porto, 20 de Abril de 2004
Alberto de Jesus Sobrinho
Durval dos Anjos Morais
Mário de Sousa Cruz