Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0351643
Nº Convencional: JTRP00035721
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
COLISÃO DE DIREITOS
PREVALÊNCIA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP200305050351643
Data do Acordão: 05/05/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J PENAFIEL
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CONST97 ART16 ART24 ART25 ART64 ART66.
CCIV66 ART70 ART335 N1 N2 ART334.
Sumário: I - Os direitos de personalidade são direitos absolutos, prevalecendo, por serem de espécie dominante, sobre os demais direitos, em caso de conflito, nomeadamente sobre o direito de propriedade e o direito ao exercício de uma actividade comercial.
II - O direito ao repouso, ao descanso e ao sono pode ser ofendido ainda que o estabelecimento esteja licenciado pela autoridade administrativa competente. A ofensa dos direitos do Autor, a verificar-se, não se exclui pela mera circunstância de a actividade da ré estar autorizada administrativamente.
III - Existe abuso de direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou, quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante.
IV - Nos litígios em que se pondera a colisão de direitos e se ajuiza no sentido da prevalência dos direitos de personalidade sobre outros considerados inferiores, nomeadamente o direito de propriedade ou o direito ao exercício de uma actividade industrial ou comercial, a decisão não deve ser radical; o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível, apenas devendo ser limitado na exacta proporção em que isso é exigível pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

RELATÓRIO

Albino ........., com os sinais dos autos, intentou a presente acção declarativa, de condenação, com processo ordinário, contra P........., Lda., com sede na Av. .........., ......., pedindo a condenação da ré a proceder ao encerramento das instalações da indústria de panificação da ré, bem como a pagar-lhe uma indemnização, cuja liquidação relega para execução de sentença.
Alegou, em síntese, que é proprietário das fracções Z e L do edifício ......., sito no ....... pela rua ........., n.ºs .., .., .. e .. e Avª ........., n.º .., .. e .., da freguesia e concelho de .........
A ré ocupa a fracção V, do rés-do-chão do edifício ........, onde exerce uma indústria de panificação, designadamente uma pastelaria e padaria de pão quente com fabrico próprio.
Em consequência da laboração da ré o autor vê-se impedido de abrir as janelas, a sua habitação é invadida por cheiros e fuligens, sendo audível na habitação ruídos que se desenvolvem a qualquer hora do dia e de noite. Igualmente o autor está sujeito a suportar temperaturas elevadíssimas.
Tudo isto provoca ao demandante e a toda a família, cefaleias, insónias, ansiedade, palpitações e irritabilidade.
Citada, a ré contestou, impugnando a versão do autor, alegando que adquiriu a fracção com vista à instalação da sua indústria, que está devidamente licenciada e, desde 1993, vem exercendo no prédio. O autor recusou-se a possibilitar a medição de ruídos na sua fracção bem como a permitir, tal como a administração do condomínio do edifício, que a ré fizesse, como pretende, as obras necessárias a evitar os ruídos e cheiros nocivos, o que evidencia abuso do direito.
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Saneado, condensado e instruído o processo, após julgamento, foi decidido julgar "a presente acção procedente por provada e, em consequência condeno a ré a proceder ao encerramento da indústria de panificação "P.......... Lda., bem como condeno a ré a pagar ao autor uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, cujo montante se relega para execução de sentença".
***

Inconformada, a ré apelou, tendo, nas alegações, concluído:

a) A ré/recorrente alegou na sua contestação matéria excepcional cuja verificação e apuramento têm inequívoco interesse para a economia dos autos, os quais, uma vez dados como assentes, poderiam e deveriam impedir o eventual direito de que se arroga o A./recorrido.
b) São esses factos os elencados ao longo da contestação nos artigos 3º a 58º daquele libelo, que aqui se dão por reproduzidos, dada a sua extensão e se encontram enunciados ao longo da presente alegação.
c) quer na selecção da matéria dada como assente e daquela que viria a incluir a base instrutória o tribunal a quo não tomou em consideração tal factualidade.
d) O que mereceu reclamação formal por parte da ré, a qual não obteve, nesta parte, merecimento, tendo sido indeferida.
e) tal facto deve determinar a nulidade da sentença, por força do disposto no artigo 668º, n.º 1. al. d), do CPC, em conjugação com o disposto artigos 3º-a e 511º do mesmo diploma.
Mesmo que assim não fosse, o que só por mera cautela de patrocínio se admite, sempre se verifica que a decisão deveria ter outro sentido,
porquanto
f) conforme se demonstra pela análise dos depoimentos das testemunhas transcritos, o seu depoimento não foi de molde a justificar de per si as respostas positivas que foram dadas aos artigos da base instrutória nos 2º a 12º, antes justificando a resposta no sentido contrário,
g) sentido contrário este que sempre deveria ter sido o encontrado pelo tribunal a quo atento o facto de que as respostas a dar aos quesitos 2º a 12º implicariam um nível de conhecimentos técnicos que não poderiam ser veiculados por via da prova testemunhal simples,
h) e que só poderiam ser alcançados por via de outro tipo de prova, mormente pericial e/ou inspectiva, quer à habitação e estabelecimento em causa quer às pessoas do A./recorrente e família.
i) que, mau grado o princípio da livre apreciação da prova, as testemunhas indicadas, dada a sua falta de ciência, não poderiam demonstrar com o alcance que decorre das respostas dadas aos referidos artigos da base instrutória.
j) O que evidencia violação do disposto nos artigos 655º, 688º, 516º, 568º a 615º e 668º, do CPC, o que deverá determinar um julgamento diverso dos referidos artigos 2º a 12º da base instrutório no sentido contrário, ou seja, dando-os como não provados, por força do disposto no n.º 1 do artigo 712º daquele diploma,
k) ou, pelo menos, deve determinar a anulação da decisão proferida na primeira instância,
l) O que também se advoga para o facto de não constar registada a prova produzida pela segunda testemunha da ré/recorrida - Francisco ........ - comandante dos bombeiros voluntários de ....... - essencial para o apuramento da verdade - artigo 712º do dito diploma.
mesmo que assim não fosse,
m) sempre se dirá que a sentença produzida na primeira instância deveria ser anulada com fundamento no disposto na al. d) do n.º 1 artigo 668º do CPC, porquanto, muito embora as matérias referidas na alínea b) destas conclusões não tenham sido levadas em conta aquando da selecção dos factos assentes e da base instrutória, poderiam e deveriam ser equacionadas, ponderadas e tidas em conta aquando da elaboração da sentença, uma vez que tais questões foram suscitadas na contestação e nas alegações escritas que se seguiram ao julgamento da matéria de facto.
n) e, com o mesmo fundamento e pela mesma razão, deveria ser anulada por se não pronunciar sobre quaisquer das questões de direito suscitadas nas alegações escritas oferecidas no âmbito do disposto no artigo 657º do C.P.C..
mesmo a assim não entender-se,
o) pelo menos em sede de recurso tal factualidade poderá ser atendida e da mesma extrair-se consequências.
p) sendo que a primeira e mais importante consequência será, desde logo, verificar que os actos praticados pelo recorrido demonstram uma clara postura de abuso de direito, sobretudo na sua vertente de venire contra factum proprium, o que integra o disposto no artigo 334º do Código Civil, e que leva ao afastamento da tutela jurisdicional dos alegados direitos do recorrido, por violação da aplicação da dita norma.
Finalmente, e mesmo que assim sempre se não entendesse, o que só por mera cautela de patrocínio se admite, ainda se concluirá o seguinte:
q) a tutela de eventuais violações de direitos de personalidade deve ser assegurada pelas providências adequadas - artigo 70º, n.º 2, do código civil. ou seja, 0 sacrifício e compressão do direito inferior deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito predominante.
r) pelo que se entende que existe um manancial não despiciendo de soluções alternativas que cumpriria equacionar, mormente, o reforço de insonorização e isolamento térmico, a aplicação de filtros, o uso de outro tipo de maquinaria, a alteração do horário de fuonamento, etc., que certamente se revelariam mais adequados à satisfação dos interesses em causa, até porque tal estabelecimento labora sob licenciamento administrativo válido, mesmo após sindicância judicial administrativa.
S) contudo, tais medidas não foram peticionadas pelo A./recorrido, nem principal, nem subsidiariamente, nem provisória, nem definitivamente, pelo que não poderia ter sido decretado 0 encerramento do estabelecimento, por violação do disposto nos artigos 70º e 335º do código civil.

Termos em que deve a decisão sob recurso ser anulada e substituída por outra que altere as respostas dadas à matéria de facto no sentido se julgar como não provados os artigos da base instrutória, proferindo-se nova decisão que negue provimento a acção, ou, caso assim se não entenda, que atenda às matérias excepcionadas pela ré/recorrente, maxime, o invocado abuso de direito e obtenha a mesma conclusão, ou caso também assim se não entenda, anule o julgamento e remeta os autos novamente à primeira instância para novo julgamento, com inclusão de toda a factualidade invocada pela ré/recorrente, ou, em último caso, caso assim também se não entenda, não determine o encerramento do estabelecimento por se tratar de medida desadequada aos interesses a proteger, tendo em atenção que qualquer outra não foi peticionada.

Na resposta às alegações o autor defende a manutenção do julgado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

2.1- OS FACTOS

Considera-se, desde já, provada a seguinte matéria de facto:

- O autor é proprietário das fracções Z e L, do edifício ........, sito no ........ pela rua ........, n.ºs ..,..,.. e .. e Avª ........., n.ºs ..,.. e .., da freguesia e concelho de ....... - alínea a) dos factos assentes.
- A ré desde 1993, exerce a actividade comercial e industrial de panificação, designadamente explorando uma pastelaria e padaria de pão quente, com fabrico próprio - alínea b) dos factos assentes.
- A ré exerce tal actividade na fracção V, do rés-do-chão do edifício ........, referido em a) - alínea c) dos factos assentes.
- O Regulamento Geral do Edifício ......., referido em a), é o que se encontra junto a fls. 15 a 20 - resposta ao artigo 10.
- Na feira anual da ......, em ........, que decorreu em 21/8/99 a 4/9/99, foi apresentado um protesto do condomínio do edifício ......... contra a laboração da ré, por "malefícios causados pela mesma" - resposta ao artigo 2º.
- A actividade industrial da ré produz cheiros que impedem o autor de abrir as janelas da sua habitação, sem que um cheiro intenso a pão, bolos e óleo provenientes da sua laboração invada a fracção do mesmo - resposta ao artigo 3º.
- O que causa sensações de enjoo e mau estar - resposta ao artigo 4º.
- A habitação do autor é também invadida por fumos e fuligens, provenientes da laboração da ré, que impedem o arejamento - resposta ao artigo 5º.
- É também constante, e perfeitamente audível na fracção do autor, o arrastar de elementos, como cadeiras e mesas, pancadas secas, quedas de objectos, arrastar de tabuleiros e cestos de pão, provenientes da laboração da ré - resposta ao artigo 6º.
- São, ainda audíveis ruídos diversos, tais como o de uma batedeira, o raspar de tabuleiros, o constante bater e chiadeiras de portas, que se desenvolvem a qualquer hora do dia e da noite, e mesmo ao fim de semana, o que perturba o sono e o descanso do autor e sua família - resposta ao artigo 7º.
- Que após medições acústicas já realizadas ao nível de ruído e trepidações verificáveis na fracção do autor e provenientes do constante laborar da ré, se situam a um nível fora do legalmente permitido - resposta ao artigo 8º.
- O calor produzido pelos fornos da ré provoca temperaturas elevadíssimas na fracção do autor, o que agrava no verão, tornando quase insuportável aí habitar, durante esse período - resposta ao artigo 9º.
- Causando ao autor e sua família abundante transpiração, mau estar e desidratação - resposta ao artigo 10º.
- Os factos quesitados (descritos) anteriormente têm provocado ao autor e sua família, doenças do foro psicológico e neurológico, tais como cefaleias, insónias, ansiedade, palpitações e irritabilidade, o que se reflecte igualmente no seu trabalho diário - resposta ao artigo 11º.
- O autor sofre desde criança de doenças respiratórias, designadamente bronquite asmática, que com esta situação se gravaram - resposta ao artigo 12º.

2.2- O DIREITO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 690º, nº 1 e 3, do C.P.Civil.
A apelante suscita as seguintes questões:
- a alteração da decisão sobre a matéria de facto;
- a necessidade de ampliação da matéria de facto;
- a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Antes, porém, de passarmos à análise da primeira questão levantada pela apelante, importa apreciar um questão conexa, suscitada nas conclusões.
Na verdade, a recorrente advoga a anulação da decisão devido ao facto de não constar integralmente registada a prova produzida pela segunda testemunha da ré/recorrida - Francisco ....... - comandante dos bombeiros voluntários de ....... - essencial para o apuramento da verdade.
A gravação da prova ocorreu durante a audiência (11/10/2001 e 26/10/2001), a ré pediu a confiança das cassetes em 10/12/2002, que lhe foram entregues em 11/12/2002. As alegações de recurso foram apresentadas em 07/01/2003.
Atento o estatuído no artº 201º, n.º 1, do CPC, na medida em que a imperceptibilidade ou inexistência parcial da gravação pode influir no exame e na decisão sobre a matéria de facto, essa omissão constitui uma nulidade processual.
A arguição de tal nulidade deve fazer-se no prazo de 10 dias, contados a partir do dia em que, cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo, devendo fazê-lo perante o tribunal onde ocorreu tal nulidade (arts. 153º e 205º, n.º 1, do CPC).
Ora, os factos antes referidos evidenciam que a apelante não arguiu, atempadamente, junto do tribunal da 1ª instância, a referida nulidade processual, que, assim, se mostra sanada (ver, entre outros, os Acs. da RL, CJ, 2001, III, p. 77, e RP, de 03/02/2003, Apelação n.º 2604/02-5ª secção).
Sanada a nulidade processual, não pode, agora, a recorrente, a nosso ver, em sede de recurso, pretender obter o efeito útil que ali não foi obtido, ou seja, a anulação de acto processual bem como a renovação dos meios de prova.
Decorre das alegações e das conclusões do recurso que a apelante entende não ter sido correctamente valorizada na 1ª instância, pelo julgador, a prova testemunhal e documental produzida, a qual seria insuficiente ou tecnicamente inadequada à demonstração dos factos controvertidos. Segundo a recorrente as respostas a dar aos quesitos 2º a 12º implicariam um nível de conhecimentos técnicos que não poderiam ser veiculados por via da prova testemunhal simples, só poderiam ser alcançados por via de outro tipo de prova, mormente pericial e/ou inspectiva, quer à habitação e estabelecimento em causa quer às pessoas do A./recorrido e família.
Na perspectiva da recorrente, em face desses elementos de prova, seria de responder negativamente à matéria dos quesitos 2º a 12º.
Na decisão sobre a matéria de facto, proferida a fls. 246-248, a julgadora a quo respondeu positivamente à matéria de todos os quesitos da base instrutória, fundando a sua convicção nos depoimentos das testemunhas que indica e bem assim em determinados documentos que especifica.
Ora, a credibilidade ou a força decisiva dos meios de prova referenciados na motivação do mencionado despacho devem ser vistos à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 651º, nº 1, do CPC.
Vejamos, de seguida, se há fundamento legal para alterar a decisão sobre a matéria de facto.
Como é sabido, fixada a matéria de facto, através da regra da livre apreciação das provas, consagrada no artº 655º, nº 1, do CPC, em princípio essa matéria é inalterável.
A decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artº 712º, do CPC:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravações dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Estas constituem as excepções à regra básica da imodificabilidade da decisão de facto proferida na 1ª instância.
No caso em apreço, torna-se perfeitamente claro não ser aplicável a previsão da referida alínea c), do nº 1, do artº 712º, do CPC, pois que não foi apresentado documento novo superveniente.
Tendo ocorrido a gravação dos depoimentos prestados, "a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido..." - nº 2, do artº 712º, do CPC.
O recorrente cumpriu o ónus imposto no nºs 1 e 2, do artº 690º-A, do CPC.
Com a introdução de novas regras sobre o regime legal disciplinador da admissão e reapreciação da prova feita em juízo não ficaram afastados os princípios fundamentais, inseridos na lei processual civil e que constituem esteios e suportes essenciais do ordenamento jurídico, a saber, os princípios da imediação, oralidade e concentração e da livre apreciação da prova.
No citado artº 655º, nº 1, do CPC, consagra-se o princípio da liberdade de julgamento - livre apreciação da prova -, segundo o qual é concedido ao tribunal "apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto".
E esta apreciação livre das provas tem de ser entendida como uma apreciação convicta do julgador, subordinada apenas à sua experiência e prudência e guiando-se sempre por factores de probabilidade e nunca de certezas absolutas, estas sempre intangíveis, nunca entendida num sentido arbitrário, de mero capricho ou de simples produto do momento, mas como uma análise serena e objectiva de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento, tudo por forma a que uma resposta dada a determinado quesito seja o reflexo e "deve reflectir o resultado da conjugação de vários elementos de prova que na audiência ou em momento anterior foram sujeitos às regras da contraditoriedade, da imediação ou da oralidade" (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 209).
Ora, deve aceitar-se que a convicção do julgador da 1ª instância resulta da experiência, prudência e saber daquele, sendo certo que é no contacto pessoal e directo com as provas, designadamente com a testemunhal e no depoimento de parte, que aquelas qualidades de julgador mais são necessárias, pois é com base nelas que determinado depoimento pode ou não convencer quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recai, constituindo uma das manifestações dos princípios da oralidade e da imediação, por via das quais o julgador tem a oportunidade de se aperceber da frontalidade, tibieza, lucidez, rigor e firmeza com que os depoimentos são produzidos, mesmo do confronto imediato entre os vários depoimentos, do contraditório formado pelos intervenientes, advogados e juízes, do interrogatório do advogado que a apresenta, do contraditório do outro mandatário e das dúvidas do próprio tribunal, melhor ajuizando e aquilatando desta forma da sua validade.
O depoimento oral da parte ou de uma testemunha, considerado e formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, a forma como é feita a pergunta e surge a resposta, tudo contribui, com mais ou menos amplitude, para a formação da convicção do julgador.
A valoração de um depoimento pelo julgador é algo absolutamente imperceptível na gravação da prova.
E esta percepção é praticamente insindicável pelo tribunal superior, por não interventor naquela acção, tanto mais que se considera sempre como feita com alguma subjectividade.
A convicção judicial forma-se na dinâmica da audiência, com intervenção activa dos membros do tribunal, e é sempre defeituosa a percepção formada fora desse condicionalismo (J. Lebre de Freitas, C.P.Civil Anotado, II, p. 633).
Como também refere Abrantes Geraldes (ob. cit., p. 257) "Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como, no primeiro, se formou a convicção do julgador" e, mais adiante, "a simples leitura de secas e inertes laudas de argumentação fáctica jamais se pode comparar à vivacidade proporcionada ao juiz da primeira instância, quando este, empenhado, como deve estar, no efectivo apuramento da verdade material, procura encontrar, na floresta integrada pelos diversos meios probatórios (firmes ou imprecisos, convincentes ou contraditórios, serenos ou interessados), a vereda que lhe permite ir de encontro à justa composição do litígio, arrimado nos instrumentos que lhe são proporcionados pelos princípio da imediação e oralidade".
Feitas estas considerações, apesar da gravação dos depoimentos das testemunhas, desde já se adianta que não se justifica a alteração das respostas dadas aos quesitos pelo tribunal de 1ª instância.
Analisados os registos dos depoimentos das testemunhas, efectuados na audiência de julgamento, afigura-se-nos não existir fundamento para alterar as respostas positivas aos quesitos da base instrutória.
Tendo-se presente o que acima se ponderou a propósito da reapreciação da prova gravada, dir-se-á que a recorrente pretende que a Relação valorize alguns dos depoimentos desenquadrados do conjunto dos depoimentos da testemunhas ouvidas e dos restantes elementos de prova, o que, salvo o devido respeito, não pode assegurar uma adequada e necessária análise crítica da prova ouvida e que o julgador a quo livremente ponderou.
Por outro lado, não se nos afigura que a demonstração da matéria de facto constante dos referidos quesitos exija especiais conhecimentos técnicos, com excepção, porventura, do questionado sob o n.º 12, da base instrutória. No entanto, foi ouvido um médico (José Pereira Ramos) e o pai do autor (Belmiro Durães) que certamente prestaram esclarecimentos julgados oportunos.
Não existe, pois, fundamento para a alteração das respostas aos referenciados quesitos porquanto, reapreciada a prova indicada (depoimentos de testemunhas do A. e R. e documentação junta) pelo apelante, não se vislumbram razões para alterar o decidido na 1ª instância, além de que os elementos fornecidos pelo processo não impõem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (mencionada al. b), do nº 1, do artº 712º, do CPC).
Analisemos, de seguida, a necessidade de ampliação da matéria de facto.
Dispõe o nº 4, do artº 712º, do CPC, que "se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada,...".
Como é óbvio, compete ao demandante a prova dos factos evidenciadores da ofensa ao seu direito de personalidade (artº 342º, nº 1, do CC).
O caso em apreço configura uma situação de colisão de direitos.
Convirá ter presentes algumas ideias ou princípios e normas relacionadas com o direito que o autor pretende ver tutelado e reconhecido.
A Constituição da República e as leis e regras de direito internacional que aquela acolhe (ver artº 16º) consagram um núcleo de direitos fundamentais, que se poderão qualificar como inerentes ao ser humano.
À frente de todos esses direitos surgem a vida e a integridade física e moral, reconhecidamente invioláveis (arts. 24º e 25º), essência máxima da personalidade.
Também o(s) direito(s) à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado se mostra(m) consagrado(s) na nossa lei constitucional (arts. 64º e 66º).
O direito ao repouso e ao sono inscrevem-se nesse conjunto de direitos imprescindíveis à existência, constituindo, enfim, uma componente dos direitos de personalidade.
Os direitos de personalidade são direitos absolutos, prevalecendo, por serem de espécie dominante, sobre os demais direitos, em caso de conflito, nomeadamente sobre o direito de propriedade e o direito ao exercício de uma actividade comercial (P. Lima-A. Varela, C. C. Anot., 4ª ed., pág. 104, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, págs. 145-146, J. Gomes Canotilho, RLJ, 125º, 538, Acs. do STJ, BMJ, 406º/623, 435º/816, 450º/403, CJ, Ano II, II/54, Ano III, I/55, Ano VI, II/76 e III/77).
A tutela geral da personalidade encontra-se prevista, na lei ordinária, no artº 70º, do C. Civil: a lei protege todos os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, podendo a pessoa ameaçada ou ofendida requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso.
À colisão de direitos iguais ou da mesma espécie aplica-se o estatuído no nº 1, do artº 335º, do C. Civil. No nº 2 desse normativo estabelece-se, na hipótese de colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente, a prevalência do que se considerar superior, a definir em concreto (Pessoa Jorge, Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág. 201).
Por outro lado, conforme se decidiu no Ac. STJ de 96.07.02, a actividade privada praticada ao abrigo de licenciamento camarário pode ser impedida em tribunal judicial, não estando em causa a situação jurídica administrativa mas sim a tutela da personalidade, perante actividade desenvolvida por particular e na esfera do direito privado. No mesmo sentido, no Ac. do STJ, de 93.09.21, (CJ, Ano I, III/26) se defende que o tribunal comum não pode condenar uma câmara municipal a abster-se de praticar actos de gestão pública que se integram na competência da mesma mas pode julgar as acções em que uma pessoa pede a cessação de determinada actividade (ainda que licenciada) que ofende ou ameaça a sua personalidade física ou moral, matéria não excluída da competência dos mesmos.
O invocado direito do autor ao repouso, ao descanso e ao sono pode ser ofendido ainda que o estabelecimento esteja licenciado pela autoridade administrativa competente. A ofensa dos direitos do autor, a verificar-se, não se exclui pela mera circunstância de a actividade da ré estar autorizada administrativamente. Como se refere no Ac. do STJ, de 22.10.98, CJ, Ano VI, III/77, o licenciamento administrativo dum espectáculo ou diversão esgota-se neste iter administrativo; tudo o que se situar fora dele ou para além dele, tudo o que agredir direitos de personalidade (que a autoridade admnistrativa não pode valorar) sai do âmbito das normas que regulam o licenciamento e rentra na esfera da responsabilidade civil por facto ilícito.
Existe abuso do direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou, quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante (Ac. STJ, de 8/11/84, BMJ, 341º,418).
A figura do abuso do direito está prevista no artº 334º, do C.Civil.
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e legalmente segundo uma consciência razoável.
Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, ou seja, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171 ).
Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, mas sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites, visto que o C. Civil vigente consagrou a concepção objectiva do abuso de direito (P. Lima-A. Varela, C. Civil Anotado, I, 4ª.ed., pág. 298; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 7ª.ed., pág. 67 e segs.).
O princípio da boa fé está consagrado no nº 2, do artº 762º, do CC, ao afirmar que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé. A exigência de boa fé nos negócios jurídicos e, desde logo, na sua formação, mostra-se igualmente acentuada no artº 227º, do CC.
Segundo este princípio, aplicável não só às obrigações contratuais como também às obrigações derivadas de outras fontes, onde exista uma relação especial de vinculação entre duas ou mais pessoas (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7ª.ed., pág. 11, Almeida Costa, ob. cit., 891), agir de boa fé é actuar com diligência, zelo e lealdade correspondentes aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, numa linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da outra parte, é não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar (Almeida Costa, ob. cit., 93, 845 e 846; Vaz Serra, BMJ, 74º, 45, e Antunes Varela, CJ, 1986, III, 13, e 1987, IV, 28).
Enunciados estes princípios normativos e referida alguma doutrina e jurisprudência que nos parece relevante, analisemos, em concreto, a necessidade de ampliação da matéria de facto, atento o alegado na contestação e o estatuído no artº 511º, n.º 1, do CPC, bem como a possibilidade de uma decisão menos drástica do que a tomada pela julgadora da 1ª instância.
Com efeito, no caso, decidiu-se a julgadora pelo encerramento do estabelecimento comercial da ré (indústria de panificação).
A nosso ver, nos litígios em que se pondera a colisão de direitos e se a juíza no sentido da prevalência dos direitos de personalidade sobre outros considerados inferiores nomeadamente o direito de propriedade ou o direito ao exercício de uma actividade comercial ou industrial, a decisão judicial não deve ser, em princípio, tão drástica e radical como a tomada na decisão recorrida, mandando encerrar, pura e simplesmente, as instalações comerciais ou industriais. O direito inferior deve ser respeitado até onde for possível, apenas devendo ser limitado na exacta proporção em que isso é exigível pela tutela razoável do conjunto principal de interesses (Capelo de Sousa, O Direito Geral da Personalidade, p. 549, e, entre outros, os Acs. RP, CJ, 1998, I, p. 203, Apelação n.º 1293/99, 2ª secção, de 26/01/2000, Agravo n.º 1318/99, 5ª secção, de 10/01/2000 e RC, CJ, 2000, I, p. 22).
Quer dizer, existem situações em que será possível conciliar os interesses em causa, ambos relevantes, ou, pelo menos, numa primeira fase, dar a oportunidade a quem, com a sua actividade comercial ou industrial, viola os direitos de personalidade de determinado cidadão, de efectuar as modificações necessárias nas suas instalações (o reforço da insonorização e isolamento térmico, a aplicação de filtros, o uso de outro tipo de maquinaria, a alteração do horário de funcionamento, etc.), de modo a salvaguardar e respeitar, num nível de razoabilidade, os citados direitos de personalidade.
Ora, a matéria de facto alegada na contestação designadamente nos artigos 29º a 33º, 36º a 43º, 48º, 49º e 56º, pode evidenciar a possibilidade de conciliação da actividade da ré com os direitos de personalidade invocados pelo autor e, bem assim, um juízo mais fundado sobre a eventualidade de abuso do direito por parte do demandante, questão esta não abordada na decisão recorrida.
Deste modo, tendo presente a necessidade de ponderar-se, objectivamente, as várias soluções plausíveis da questão de direito (citado artº 511º, n.º 1, do CPC), entende-se ser pertinente ampliar a matéria de facto.
Impõe-se o uso dos poderes conferidos pela referida norma do CPC( artº 712º, nº 4), com vista ao apuramento, em audiência de julgamento, da toda a matéria de facto articulada que interessa à boa decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, concretamente através da elaboração de quesitos que contenham a referida matéria de facto alegada na contestação, naturalmente que seja controvertida e não susceptível de prova por documento.
Fica, assim, prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas nas conclusões do recurso (nulidade da sentença por omissão de pronúncia).

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em anular a decisão proferida pelo Tribunal a quo em matéria de facto, sem prejuízo do já decidido e que, como vimos, não está viciado, bem como os termos subsequentes (sentença inclusivé), a fim de proceder a novo julgamento, na 1ª instância, com a elaboração de quesitos da base instrutória nos termos que se deixaram referidos, seguindo-se os pertinentes trâmites da lei processual.
Custas pela parte vencida, a final.

Porto, 5 de Maio de 2003
Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingues
José António Sousa Lameira