Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0725161
Nº Convencional: JTRP00040956
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
SEGURO
INCÊNDIO
Nº do Documento: RP200801150725161
Data do Acordão: 01/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 261 - FLS. 30.
Área Temática: .
Sumário: 1. Terminando a anterior acção por desistência da instância, e não por absolvição da instância, o novo prazo prescricional conta-se desde a data da citação do réu naquela acção (acto interruptivo).
2. Não sendo a seguradora parte no contrato de locação financeira, o conhecimento que ela tenha dos termos deste não equivale a aceitação do seu conteúdo e de cobertura de toda a responsabilidade ali assumida pelo locatário.
3. Essa cobertura sempre seria excluída em caso de danos causados por incêndio no veículo locado, provocado por acção dolosa do locatário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 5161/07-2
1.ª Secção Cível
NUIP ……../03.4TBVFR
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I

1. Nos presentes autos de acção declarativa de condenação com processo comum sumário que correm termos no …...º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Santa Maria da Feira com o n.º ………/03.4TBVFR, instaurados por B………………., S.A., contra C……………… e D………………, S.A., a Autora pediu a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de 523.899$00 (€ 2.613,20) de capital despendido em 6 de Dezembro de 1993, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de 495.392$00 (€ 2.471,00), e nos vincendos até integral pagamento.

Fundamentou esta sua pretensão alegando, em síntese, que, ao abrigo de um contrato de seguro titulado pela apólice n.º 04-40-732313, que a sua antecessora E………….., S.A., havia celebrado com o 1.º réu, pagou aos dois réus a quantia global de 523.899$00 (€ 2.613,20), a título de indemnização por danos sofridos pelo veículo com a matrícula RQ-..-.., em consequência de um incêndio que, no dia 27 de Março de 1993, deflagrou na Fábrica F……………, propriedade do 1.º réu, sita no………….., ……….., Ovar, e no convencimento de que se tratara de um sinistro natural; apurou-se, entretanto, que o referido incêndio foi provocado intencionalmente pelo 1.º réu, o qual já foi condenado pelos crimes de fogo posto, burla relativa a seguros e burla agravada, e que a 2.ª ré, que recebeu parte daquela indemnização, não desconhecia a origem criminosa do sinistro, concluindo, assim, que a quantia que pagou aos réus não lhe era devida, tendo direito a reavê-la e a que lhe seja reembolsada.

Regularmente citados, contestaram os dois réus.

O D…………., S.A., alegou que o veículo sinistrado havia sido locado pela G…………, que mais tarde foi incorporada no D………….., S.A., e quem interveio no processo crime, deduzindo pedido de indemnização cível, foi a H…………….., S.A., que depois também veio a ser incorporada na ré, todas, porém, nada sabendo do que tinha sucedido com o veículo locado, considerando inexistir qualquer nexo de causalidade entre o pedido cível deduzido no processo penal e a indemnização recebida pela G……………. e concluindo pela improcedência da acção.

O réu C…………….. invocou a excepção peremptória da prescrição, e por impugnação alegou que foi a G…………., como proprietária do veículo, que recebeu a totalidade da indemnização, e ele apenas assinou o correspondente recibo por uma questão meramente formal.

2. No despacho saneador, a fls. 75, foi decidida e julgada procedente a excepção peremptória da prescrição do direito da autora relativamente ao réu C…………….., o qual foi, em consequência, absolvido do pedido.

A autora apelou desta decisão, concluindo a sua alegação do seguinte modo:

1-. A decisão recorrida fundamenta-se no facto de a apelante não ter indicado o objecto da anterior acção, que correu termos no 4° Juízo Cível desta comarca com o n.º …./2000, nem a data da respectiva propositura e da citação do Réu.

2-. Sucede que o objecto daquela anterior acção é o mesmo desta, conforme se deduz claramente do art. 10.º da petição, onde a autora diz que desistiu daquela instância porque nela não havia sido demandada a aqui 2.ª Ré, depois de o ora apelado a ter informado que foi esta, ou a sua antecessora G………….., quem recebeu pelo menos parte da indemnização que a ora Autora pagou pela inutilização do veículo seguro. Factos ora confirmados pelo apelado na sua contestação e através da certidão que junto daquela primeira acção.

3-. Consta ainda dessa mesma certidão que a acção n.º ……./2000, proposto pela aqui Autora contra o 1.º Réu, aqui apelado, deu entrada em Tribunal em 23-02-2000, que a citação do Réu foi realizada em 28-02-2000, data em que foi interrompido o prazo de prescrição (art. 323.º, n.º 2, do Código Civil).

4-. Tendo a Autora desistido da instância na data do julgamento daquela anterior acção, ou seja, em 01-10-2003, tendo esta segunda acção dado entrada em 31-10-2003, isto é, dentro dos 30 dias subsequentes, mantém-se a interrupção da prescrição até hoje.

5-. De resto, tendo sido este Réu quem insistiu com a Autora para desistir daquela instância, dando o seu aval a essa desistência, sem o qual não seria válida tal desistência, vir agora afirmar o contrário constitui "venire contra factum proprium".

6-. Ao decidir em contrário, a douta decisão recorrida violou os arts. 323.º, n.º 2 , 326.º e 482.º, todos do Código Civil.

Pretende, assim, que no provimento do presente recurso, seja revogada a decisão apelada, no tocante à decisão que declarou prescrito o direito da Autora, e seja substituída por outra que considere não ter decorrido essa prescrição.

O réu C…………… contra-alegou, defendendo que se mantenha a decisão recorrida e que seja negado provimento ao recurso.

Este recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo e com subida a final, o que se conforma com o disposto nos arts. 691.º, n.ºs 1 e 2, 692.º, n.º 1, e 695.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

3. Prosseguindo o processo para julgamento quanto à ré D……………., S.A., e depois de realizada a respectiva audiência, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou esta ré a pagar à autora a quantia de € 2.613,20 acrescida de juros de mora, a contar da citação até integral pagamento, à taxa de 7% até 30 de Abril de 2004 e, após, à taxa de 4%, com as custas da acção a repartir entre a autora e a ré na proporção do respectivo decaimento.

Desta decisão apelou agora a ré D…………….., S.A., cuja alegação concluiu do seguinte modo:

1-. A seguradora pagou no cumprimento de um contrato de seguro celebrado com o co-Réu C…………….

2-. O contrato de locação financeira celebrado entre a recorrente e o C………….. foi-o ao abrigo do Decreto-Lei n.º 171/79, de 6 de Junho.

3-. No caso vertente, regulam os arts. 24.º e 25.º desse diploma e o art. 9.º do contrato de locação financeira.

4-. A recorrida conhecia o contrato de locação financeira e adequou o contrato de seguro àquele primeiro contrato, designadamente ressalvando os direitos a favor da recorrente.

5-. Aceitou as condições contratuais do contrato de locação financeira e, portanto, aceitou que o locatário é o único responsável por todos os prejuízos causados no ou pelo equipamento e que em caso de sinistro a indemnização deve ser por si paga à recorrente.

6-. E também aceitou a renúncia a qualquer acção contra a recorrente.

7-. Assim, a seguradora/recorrida só poderá exigir o reembolso da quantia paga ao co-Réu C…………...

8-. A recorrente não pode ser demandada validamente pela recorrida.

9-. As relações contratuais que a recorrente estabeleceu foram com o co-Réu C…………. e nunca com a recorrida.

10-. Ao entregar o pagamento à recorrente, a recorrida está a pagar ao seu segurado, mas com a obrigação de entregar o dinheiro à recorrente.

11-. Assim, a exclusão da responsabilidade da recorrida apenas afecta o co-Réu C………….., e nunca a recorrente.

12-. A obrigação de restituir impende, só e apenas, sobre locatário e co-Réu C………….. , e nunca sobre a recorrente.

13-. A lei que regula a locação financeira tem por princípio basilar proteger o bem locado em todas e quaisquer circunstâncias.

14-. A recorrida aceitou tal imposição legal livremente ao celebrar um contrato de seguro de um automóvel dado em regime de locação financeira.

15-. No contrato de locação financeira, a obrigação de segurar justifica-se pelo risco a correr pelo locatário que transfere essa responsabilidade para a seguradora.

16-. Nenhum dos três requisitos legais do enriquecimento sem causa se encontra preenchido.

17-. A recorrente não teve qualquer vantagem patrimonial, pois viu destruída por completo a sua viatura, sofrendo prejuízos.

18-. O pagamento do valor do seguro decorre do contrato de seguro e foi validamente efectuado, ou seja, verificou-se causa justificativa.

19-. A recorrida pagou no cumprimento de um contrato de seguro e, por isso, pagou pelo segurado, ou em vez do segurado.

20-. Assim, a recorrida não pagou por si uma prestação que não devesse pagar, ou a que não estivesse obrigada.

21-. A seguradora não pagou indevidamente à recorrente.

22-. A exclusão da responsabilidade da seguradora não é oponível à Locadora.

23-. Sendo estes pontos indispensáveis à fatiespécie do enriquecimento sem causa, verifica-se que ele não existiu.

24-. Não existindo enriquecimento sem causa, a recorrente não pode ser condenada na restituição ou repetição do indevido.

Pretende, assim, que se revogue a sentença apelada e se absolva a recorrente do pedido contra si formulado.

A autora contra-alegou, invocando:

1). que a apelante invoca argumentação nova que nunca invocou em 1.ª Instância, designadamente o clausulado no art. 9.° do contrato de leasing que celebrou com o co-réu C…………, que não foi objecto de apreciação na 1.ª instância e, como tal, não pode servir de fundamento ao recurso nem ser conhecido pelo Tribunal de 2.ª instância;

2). que, em todo o caso, a recorrida não interveio, de modo algum, naquele contrato de leasing, cujo teor desconhecia, e, por isso, tal contrato nunca lhe poderia ser oposto;

3). que, ao contrário do que alega a apelante, estão preenchidos todos os requisitos do enriquecimento sem causa em relação à recorrente, já que esta, ao receber a quantia da recorrida, bem sabia que o incêndio que danificou o veículo tinha sido dolosamente provocado pelo próprio locatário e que nestas condições estava excluído do seguro, pelo que a recorrente, quando recebeu a quantia indemnizatória que lhe foi paga pela recorrida, estava perfeitamente ciente que não tinha direito a tal indemnização.

4. Em relação à primeira apelação, interposta pela Autora, considerando que a sentença final lhe veio a ser globalmente favorável, esta foi notificada para dizer se mantinha interesse na sua apreciação, mas nada disse.

O n.º 1 do art. 710.º do Código de Processo Civil dispõe que a apelação e os agravos que com ela tenham subido são julgados pela ordem da sua interposição. Mas no que respeita aos agravos, o mesmo preceito dispõe que, sendo interpostos pelo apelado, só são apreciados se a sentença não for confirmada. Em relação à apelação de decisão parcial proferida no despacho saneador, interposta nos termos do art. 695.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a lei não estabelece qualquer condição para a sua apreciação. Limita-se a fixar uma ordem de prioridade na sua apreciação relativamente aos demais recursos interpostos posteriormente. O que leva a concluir que, não desistindo o apelante desse recurso, o tribunal fica vinculado a apreciá-lo e a decidi-lo, independentemente de a parte recorrente não ter apelado da sentença final e de esta lhe ter sido favorável.

Deste modo, não obstante o silêncio da Autora em relação a essa apelação, há que dela conhecer em primeiro lugar.

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, são as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação que delimitam o objecto do recurso.

Assim, tendo em conta o teor das respectivas conclusões, as questões suscitadas na primeira apelação, interposta pela Autora da decisão proferida no despacho saneador que julgou procedente a excepção da prescrição relativamente ao demandado C…………, são as seguintes:

1) se os efeitos interruptivos da prescrição resultantes da citação do mesmo demandado em anterior acção contra o mesmo proposta e que correu termos no ...º Juízo Cível da mesma comarca com o n.º …../2000, se estendem a esta segunda acção e mantiveram interrompido o prazo prescricional no decurso desta acção;

2) se, independentemente disso, a invocação da prescrição pelo réu configura abuso de direito na modalidade de "venire contra factum proprium".

A segunda apelação, interposta pela Ré D…………., S.A., da sentença fina, contrapõe à sentença recorrida as questões seguintes:

1) se a exclusão da responsabilidade da recorrida, relativamente ao sinistro aqui em causa, apenas afecta o co-Réu C………….., e nunca a recorrente e, por isso, a obrigação de restituir também só impende sobre o locatário e co-Réu C…………., e não sobre a recorrente;

2) se, para além disso, nenhum dos três requisitos legais do enriquecimento sem causa se encontra preenchido.

Foram colhidos os vistos legais.


II

5. No que respeita à primeira apelação, interposta pela Autora do despacho saneador, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão que julgou prescrito o direito invocado pela Autora contra o demandado C………….. do seguinte modo:

«A Autora alega na petição inicial que teve conhecimento do Acórdão, já transitado em julgado, que condenou o Réu C…………….. pelo crime de incêndio, em 14 de Dezembro de 1999, tendo proposto a presente acção em 31 de Outubro de 2003, ou seja, mais de três anos após o conhecimento que teve do direito de accionar o Réu.
É certo que no artigo 10.º da petição inicial a Autora alega ter proposto uma anterior acção contra o ora Réu C………….., que com o n.º …../2000, correu termos no ...º Juízo Cível deste Tribunal, e da qual "teve que desistir da instância por só agora ter tido conhecimento que parte pelo menos da quantia de que se acha desembolsada tinha sido embolsada também pela 2.ª Ré ".
Sucede, porém, que a Autora não indica o objecto de tal acção, nem a data da respectiva propositura e da citação do Réu.
Dessa forma, não pode o Tribunal substituir-se à parte, tomando oficiosamente em conta a acção referida para efeitos de eventual interrupção do prazo de prescrição, porque a tanto se opõe o princípio do dispositivo consignado nos artigos 3.º, n.º 1, e 264.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, e a prescrição não é do conhecimento oficioso do Tribunal (artigo 303.º do CC).
Acresce que a Autora não impugnou o facto alegado pelo Réu C…………… segundo o qual aquela teria tido conhecimento do seu direito há mais de três anos, como podia e devia tê-lo feito em sede de Resposta − designadamente, concretizando o objecto da anterior acção, data da respectiva propositura e de citação do Réu, e invocando a virtualidade da mesma para efeitos de interrupção do prazo de prescrição em curso.
Não o tendo feito, tal equivale à sua admissão por acordo, nos termos do disposto nos artigos 505.º e 490.º, n.º 2, ambos do CPC.
Daqui resulta que o direito da Autora a ver-se ressarcida pelo Réu C…………… através do instituto do enriquecimento sem causa se acha prescrito em face do disposto no já citado artigo 482.º do CC.»

A apelante contrapõe que se estendem a esta acção os efeitos interruptivos da prescrição resultantes da citação do mesmo Réu em anterior acção proposta pela Autora, de que resulta que o prazo prescricional se manteve interrompido no decurso desta acção.

Alcança esta conclusão a partir dos seguintes pressupostos:

1) que o objecto daquela anterior acção é o mesmo desta;

2) que tal acção deu entrada em tribunal no dia 23-02-2000;

3) que a citação do Réu nessa acção foi realizada em 28-02-2000, data em que foi interrompido o prazo de prescrição nos termos do art. 323.º, n.º 2, do Código Civil;

4) que desistiu dessa instância em 01-10-2003, porque nela não havia demandado a aqui 2.ª Ré;

5) que a presente acção foi proposta em 31-10-2003, ou seja, dentro dos 30 dias subsequentes à desistência da primeira acção.

Sucede que nenhum destes factos foi alegado por qualquer das partes nem constavam dos autos elementos documentais que permitissem inferir tais factos.

Com efeito, os únicos elementos que constavam dos autos à data da prolação do despacho saneador eram constituídos pelos articulados das partes, que, com relevância para a apreciação da invocada prescrição, continham a factualidade seguinte:

1) A Autora propôs a presente acção em 31-10-2003 (fls. 2).

2) Alegou na petição inicial que:

- o réu C………….., por acórdão proferido no processo comum colectivo n.º …../95 do ..º Juízo do Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira, transitado em 6 de Março de 1996, foi condenado na pena única de 3 anos de prisão e 60.000$00 de multa, como autor dos crimes de fogo posto, burla relativa a seguros e burla agravada, por se ter apurado que o incêndio ocorrido na Fábrica identificada no art. 4.º da p.i., de que era dono, e que atingiu o veículo segurado na Autora, tinha sido provocado intencionalmente pelo mesmo réu, a fim de receber o seguro da Fábrica e recheio (matéria alegada no n.º 7.º da p.i.);

-. a Autora apenas teve conhecimento desse acórdão em 14 de Dezembro de 1999 (facto alegado no n.º 12.º da p.i.);

- a Autora havia instaurado um anterior processo contra o réu C……………, que correu termos no ….º Juízo Cível da mesma comarca com o n.º …../2000, de que veio a desistir da instância por só então ter tido conhecimento que parte da quantia de que se acha desembolsada tinha sido embolsada pela 2.ª Ré (facto alegado no n.º 10.º da p.i.).

3) O Réu C………….. foi citado para esta acção em 07-11-2003 (fls. 32).

4) Contestou a acção, invocando a prescrição do direito invocado pela Autora e dizendo no n.º 1.º da sua contestação:

- Admitindo que existam factos que consubstanciam um enriquecimento sem causa, …, tais factos são do conhecimento da Autora há mais de três anos.

5) A Autora não respondeu à matéria da excepção da prescrição invocada pelo Réu C……………...

Como se vê, a única referência que foi feita à anterior acção é a que consta do n.º 10.º da petição inicial. Que se limita a fazer referência a um anterior processo proposto contra o réu C…………., mas onde nada diz sobre o tipo de acção, o objecto dessa acção, a data em que o Réu foi citado e a data em que a Autora desistiu da instância.

De modo que o tribunal recorrido decidiu a prescrição em função dos factos alegados nesta acção, aliás, pela própria Autora, de que o Réu se limitou a tirar proveito. E tais factos revelam que a Autora teve conhecimento dos factos que servem de fundamento a esta acção de restituição baseada no enriquecimento sem causa, relativamente à pessoa do Réu C………….., em 14 de Dezembro de 1999. E que esta acção foi apenas proposta em 31-10-2003.

Nos termos do disposto no art. 482.º do Código Civil, o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de 3 anos a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável.

Não tendo a Autora alegado qualquer facto susceptível de interromper ou suspender o prazo da prescrição, o decurso do prazo de 3 anos a contar de 14-12-1999 ocorreu em 14-12-2002, ou seja, muito antes da propositura da presente acção. Como decidiu o despacho recorrido.

Acresce, porém, dizer que a tese defendida pela Autora, acerca da extensão a esta acção dos efeitos da interrupção da prescrição provocados pela citação do Réu na anterior acção, não parece que possa colher apoio na lei.

Com efeito, a Autora sustenta essa sua tese nos preceitos dos arts. 323.º, n.º 2, e 326.º do Código Civil.

O primeiro dispõe que “se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”. O que, aplicado à presente acção, é de todo inócuo, porquanto na data em que a acção foi proposta, em 31-10-2003, já tinham decorrido mais de três anos a contar de 14-12-1999, como já se disse atrás. Relativamente à primeira acção nenhuma conclusão se pode extrair porquanto não se sabe em que data essa acção foi proposta e em que data o Réu foi citado.

O segundo normativo refere-se aos efeitos da interrupção da prescrição e dispõe que: “1) A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo seguinte. 2) A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311º”. De que apenas se pode aqui concluir que, após a citação do Réu na primeira acção, começou a correr um novo prazo de 3 anos, cujo início e termo se desconhece e não é possível aqui determinar por falta de factos.

O que a Autora terá querido invocar, quando se refere que a primeira acção terminou por desistência da instância e a segunda foi intentada dentro dos 30 dias subsequentes àquela desistência, é o disposto no art. 327.º do Código Civil sobre a duração da interrupção da prescrição resultante da citação do Réu na primeira acção.

Dispõe o n.º 1 deste artigo que “se a interrupção resultar de citação, …, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo”. Face a este preceito, sendo a causa da interrupção da prescrição resultante da citação do Réu realizada na primeira acção, essa interrupção manteve-se enquanto esteve pendente essa acção e até ao trânsito em julgado da decisão que lhe pôs termo.

Só que o preceito do n.º 2 do mesmo artigo vem inutilizar a aplicação dessa interrupção da prescrição a esta segunda acção ao dispor que “quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, …, o novo prazo prescricional começa a correr logo após o acto interruptivo”. Ou seja, tendo a primeira acção terminado por desistência da instância, no dizer da própria Autora, o novo prazo prescricional não se contaria desde a data que pôs termo à primeira acção, mas desde a data da citação do Réu naquela primeira acção. Data que a Autora não indicou nesta nova acção.

O preceito do n.º 3 deste artigo, que a Autora indirectamente sugere ser aqui aplicável, quando diz que esta segunda acção foi proposta dentro dos 30 dias subsequentes ao termo da primeira acção, não tem aqui aplicação. É que, enquanto o n.º 2 se refere às situações de “desistência da instância” e de “absolvição da instância”, o n.º 3 apenas alude à situação de absolvição da instância, e mesmo assim desde que o motivo processual que deu lugar à absolvição da instância não seja imputável ao titular do direito.

Ora, no dizer da Autora, a primeira acção terminou por desistência da instância, e não por absolvição da instância, que é causa processual diferente de extinção da instância (cfr. arts. 287.º, al. d) e 288.º do Código de Processo Civil).

Donde se conclui que a tese da Autora sobre a extensão dos efeitos da interrupção da prescrição a esta segunda acção não tem suporte nem factual nem legal.

6. Falece igualmente a invocação do "venire contra factum proprium". Que a Autora fundamenta no facto de que teria sido este Réu quem insistiu com a Autora para desistir daquela instância e dando o seu aval a essa desistência, sem o qual não seria válida tal desistência.

Ora, a Autora nem sequer fez prova de que a primeira acção existiu e terminou por desistência da instância.

Mas, admitindo que essa acção existiu e que terminou por desistência da instância já na fase de julgamento, como diz a Autora, o que é permitido presumir é que o Réu terá dado a sua aceitação a essa desistência, já que a aceitação do réu é pressuposto legal para a desistência da instância formalizada depois de oferecida a contestação (art. 296.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Mas não mais do que isso.

Faltaria, pois, provar que foi o Réu quem insistiu com a Autora para desistir daquela primeira acção. E cremos que, mesmo assim, não chegaria para justificar o abuso de direito, porquanto a Autora estava assistida por advogado, que não podia deixar de conhecer os efeitos dessa desistência da instância. Insistir com a Autora para desistir da acção não obrigava a Autora a desistir e, em todo o caso, é diferente do que tê-la influenciado a desistir com base em alguma conduta maldosa, perversa, que aqui não consta ter-se verificado.

Improcede, assim, na totalidade esta primeira apelação interposta pela Autora.


III

7. No que respeita à segunda apelação, interposta pela Ré da sentença final, na decisão foram tomados em conta os seguintes factos provados:

a) A autora é uma sociedade anónima que se dedica à indústria de seguros não vida.

b) A autora é legítima sucessora, em todos os direitos, deveres e garantias, da I……………, S.A., a qual também se dedicava à indústria de.

c) No exercício da sua actividade, a antecessora da autora celebrou com o réu C………….. um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 04-40-732313, por força do qual se responsabilizava por todos os danos provocados pelo veículo automóvel misto Toyota, matrícula RQ-..-.., e ainda pelos danos sofridos por este veículo em virtude, entre outros, de incêndio, raio ou explosão.

d) No dia 27 de Março de 1993, o veículo automóvel referido na alínea anterior encontrava-se estacionado junto da F………….., propriedade do réu C………….., sita no …………., ……………., Ovar.

e) Nesse dia, cerca das 9 horas, deflagrou um incêndio na aludida Fábrica e as respectivas chamas acabaram por pegar àquele veículo automóvel, danificando-o em toda a parte traseira e lateral direita, estragos que ascenderam à quantia de 644.891$00.

f) O réu C……………., por acórdão proferido no processo comum colectivo n.º …/95, do ...º Juízo do Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira, a 14 de Dezembro de 1995, transitado em julgado, foi condenado, pela prática, como autor, de um crime de incêndio e de um crime de burla relativa a seguros na forma tentada e, como co-autor, de um crime de burla agravada, na pena única de 3 anos de prisão e 60.000$00 de multa, suspendendo-se a primeira na sua execução pelo período de 3 anos, com a condição de o mesmo, no prazo de 3 meses, demonstrar nos autos o pagamento da quantia de 1.000.000$00 a J……………. e o pagamento da mesma quantia à H…………….. (esta última solidariamente com o outro arguido).

g) O incêndio referido na alínea e) corresponde ao crime de incêndio pelo qual o réu C…………… foi condenado nos termos referidos na alínea anterior.

h) Entre a “G…………”, actualmente “D……………, S.A.”, e o réu C…………….. foi celebrado o contrato de locação financeira n.º 580005283, datado de 18 de Novembro de 1991, tendo como objecto o veículo automóvel identificado na alínea c).

i) A autora, em virtude do contrato de seguro, do incêndio e do contrato de locação referidos, pagou à “G……………”, actualmente “D…………….., S.A.”, a 6 de Dezembro de 1993, a quantia de 523.899$00, descontada a franquia devida, não obstante o recibo respectivo se encontrar assinado também pelo réu C……………...

A estes factos, importa acrescentar, ao abrigo do disposto no art. 712.º, n.º 1, al. a), primeira parte, do Código de Processo Civil, que:

j) Das Condições Particulares do contrato de seguro supra referido na al. c) consta uma ressalva de direitos a favor de G………….., S.A. (doc. fls. 15).

k) Do art. 9.º das Condições Gerais do contrato referido em h) consta a seguinte cláusula (fls. 243):

1. A partir da data em que cessa a responsabilidade do Fornecedor até ao termo deste contrato, e mesmo após esta data enquanto o equipamento se mantiver em seu poder, o Locatário como fruidor e defensor da integridade do equipamento, é o único responsável por todos os prejuízos causados no ou pelo equipamento.
2. O Locatário obriga-se a subscrever, reportado à data indicada no número anterior, junto de uma companhia seguradora, reconhecidamente solvente, apólices de seguro que cubram a sua responsabilidade civil ilimitada e, por outro lado, o equipamento locado contra todos os riscos indicados nas Condições Particulares, durante toda a vigência do contrato.
3. As apólices devem mencionar expressamente que o equipamento é propriedade exclusiva do Locador e que em caso de sinistro, qualquer que seja a sua natureza, a indemnização deverá ser paga pela companhia seguradora ao Locador e ainda que a companhia de seguros renuncie a qualquer acção sobre este.
4. O Locatário deverá entregar ao Locador no prazo de 15 dias uma cópia da apólice definitiva e respectivos adicionais relativos aos seguros efectuados.
5. O Locatário obriga-se igualmente a pagar directamente ao Segurador os prémios e comprovar perante o Locador, sempre que este lhe exigir, a realização desses pagamentos.

l) E do art. 10.º das mesmas Condições Gerais consta a cláusula seguinte (fls. 244):

1. Em caso de sinistro do equipamento, o Locatário deve, no prazo máximo de 48 horas, informar o Locador e a Companhia de Seguros, por carta registada com aviso de recepção, solicitando a respectiva peritagem.
2. Se o sinistro for de perda parcial depois da peritagem confirmar que o equipamento é recuperável, o Locatário deve mandar proceder à reparação, suportando as respectivas despesas; o Locador pagará ao Locatário em face do justificativo da reparação, a indemnização que receber da Companhia Seguradora.
3. Se o sinistro for de perda total, confirmado por peritagem:
a) o contrato será declarado resolvido;
b) o Locatário pagará ao Locador uma indemnização de montante igual ao valor do equipamento não amortizado pelas rendas já pagas, acrescida de juros calculados por aplicação da taxa anual nominal de locação, eventualmente indexada nos termos deste contrato, sobre aquele montante de capital em dívida e pelo período decorrido entre a data em que ocorreu o pagamento da última renda e a data de regularização do débito.
c) o Locador pagará ao Locatário, após receber da Companhia Seguradora, qualquer indemnização que tenha recebido desta, deduzida de todas as importâncias que lhe sejam devidas pelo Locatário, designadamente as referidas no número anterior.
4. (…).

É, pois, com base nesta factualidade que se impõe apreciar as questões suscitadas pela Ré.

8. A sentença recorrida fundamentou a condenação da recorrente, a restituir à Autora a quantia que tinha recebido desta, no preceito do n.º 1 do art. 476.º do Código Civil, dizendo, em síntese:

«A respeito do regime da repetição do indevido, dispõe o art. 476.º, n.º 1, do Código Civil que “sem prejuízo do disposto acerca de obrigações naturais, o que for prestado com intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação”.
Assim, ao contrário do que está previsto no art. 477.º do Código Civil para o cumprimento de obrigação alheia na convicção de que é própria e no art. 478.º do mesmo Código para o cumprimento de obrigação alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la, “o cumprimento de obrigação inexistente confere, pura e simplesmente, ao seu autor, o direito à repetição – artigo 476.º, n.º 1. Basta, para tanto, que não haja sequer obrigação natural, no momento da prestação. Exige-se a intenção de cumprir a obrigação inexistente para demarcar a situação da efectivação de qualquer liberalidade. Em contrapartida, não se requer a ignorância da inexistência da obrigação: o autor poderá, pois, repetir a prestação ainda quando conhecesse, no cumprimento, a inexistência da obrigação” (cfr. António Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2.º vol., pág. 67).
E, de igual modo, demonstrada a intenção de cumprir, não exige a lei o erro desculpável do solvens nem o conhecimento do erro pelo accipiens no acto do cumprimento para que aquele possa actuar a repetição do indevido.
Em consequência, verificados os demais pressupostos, haverá lugar à repetição do indevido, ainda que o autor do cumprimento o tenha efectuado com dúvidas sobre a existência da obrigação ou estando até seguro da sua inexistência.

................
Tendo em atenção os factos expostos, resulta que a autora, em virtude do contrato de seguro aludido na alínea c), pagou à “G………….”, actual “D……………, S.A.”, como proprietária do veículo automóvel matrícula RQ-..-.., os estragos por este sofridos no incêndio mencionado na alínea e), por cuja prática foi o réu C…………… condenado, por acórdão transitado em julgado, na pena única de três anos de prisão, pelos crimes de incêndio, de burla relativa a seguros na forma tentada e de burla agravada, este em co-autoria, suspensa na sua execução pelo período de três anos. Ou seja, a autora cumpriu uma obrigação inexistente, o que lhe confere, como vimos, o direito à repetição, nos termos do disposto no art. 476.º, n.º 1, do Código Civil.
Assim sendo, tem a autora direito a haver do réu “D………….., S.A.” a quantia de 2.613,20 euros, acrescida de juros de mora (…)».

A recorrente discorda desta decisão por dois motivos: em primeiro lugar, por entender que a quantia cuja restituição lhe é agora exigida foi-lhe paga no cumprimento de uma obrigação prevista no contrato de locação financeira que havia celebrado com o Réu C………….. sobre o aluguer do veículo sinistrado, contrato que a seguradora conhecia e aceitou e que tornava o locatário único responsável por todos os prejuízos causados no veículo, independentemente da causa do sinistro; em segundo lugar porque a Autora, através do contrato de seguro que celebrou com o mesmo Réu relativamente ao veículo locado, assumiu a responsabilidade de indemnizar a Ré, enquanto proprietária e locadora do veículo coberto por aquele seguro, já que a Ré figurava naquele contrato como beneficiária dos respectivos direitos, sem que a Autora, enquanto seguradora, lhe possa opor as exclusões constantes do contrato de seguro que celebrou com o Réu C………...

É verdade que das cláusulas do contrato de locação que a Ré celebrou com o Réu C……………, concretamente da cláusula constante do art. 9.º das Condições Gerais, acima transcrita, este Réu, na qualidade de locatário e fruidor do veículo locado, assumiu-se como “único responsável por todos os prejuízos causados no ou pelo equipamento”, fosse qual fosse a natureza do sinistro. Abrangendo, portanto, os danos causados dolosamente no veículo pelo próprio.

O que quer dizer que, neste caso, o facto de ter sido o próprio locatário quem ateou o fogo que danificou o veículo, a locadora (recorrente) tinha o direito de ser ressarcida pelo locatário dos danos sofridos pelo veículo, de que era proprietária.

E também é verdade que o mesmo Réu, para garantir essa sua responsabilidade perante a locadora, se obrigou a subscrever um contrato de seguro que cobrisse “a sua responsabilidade civil ilimitada e … o equipamento locado contra todos os riscos indicados nas Condições Particulares, durante toda a vigência do contrato”, o qual devia “mencionar expressamente que o equipamento é propriedade exclusiva do Locador e que em caso de sinistro, qualquer que seja a sua natureza, a indemnização deverá ser paga pela companhia seguradora ao Locador”.

Foi em cumprimento dessa cláusula do contrato de locação que o Réu C……………… celebrou, com a antecessora da Autora, o contrato de seguro aludido na al. c) dos factos provados. Por esse motivo nele ficando a figurar como beneficiária do seguro a antecessora da Ré (G…………).

Entre os riscos abrangidos pelo contrato de seguro figura o de incêndio. O que quer dizer que a seguradora (Autora), através do contrato de seguro que celebrou com o réu C……………, assumiu a responsabilidade deste para com a Ré pelos danos causados no veículo em consequência de incêndio. E foi essa obrigação do locatário para com a locadora que a Autora cumpriu, ao abrigo do contrato de seguro que tinha celebrado com aquele, pagando a indemnização correspondente ao valor dos danos sofridos pelo veículo. Como decorre do facto provado descrito sob a al. i).

Fê-lo, porém, no pressuposto errado de que o incêndio que danificou o veículo não havia sido provocado dolosamente pelo locatário e que a obrigação de indemnizar se continha no âmbito do contrato de seguro. Só posteriormente, em consequência da condenação criminal do Réu C…………, é que a seguradora (Autora) veio a saber que o incêndio fora provocado dolosamente pelo próprio locatário, tomador do seguro. Daí concluindo que o dano causado no veículo pelo incêndio não estava abrangido pelo seguro e que a indemnização paga à ora Ré não era por si devida.

É que o âmbito da responsabilidade da seguradora é, tão só, o que decorre do contrato de seguro. Porque foi essa a medida da responsabilidade que assumiu com a celebração do referido contrato de seguro. E não a que se contém no contrato de locação relativamente ao âmbito da responsabilidade do locatário para com a locadora, que é bem mais amplo do que o previsto no contrato de seguro, como se irá demonstrar.

Sucede que a seguradora não é parte nesse contrato de locação, não consta que o tenha subscrito a qualquer título ou, designadamente, que tenha caucionado toda a responsabilidade aí assumida pelo locatário. E mesmo que tenha tomado conhecimento do seu teor, como alega a Ré, daí não lhe advêm maiores responsabilidades do que as contraídas através do contrato de seguro que subscreveu com o locatário. O conhecimento que a seguradora possa ter tido do contrato de locação não equivale a aceitação do seu conteúdo nem faz supor que aceitou cobrir toda a responsabilidade civil ali assumida pelo locatário. Se assim fosse era exigível que tal constasse do contrato de seguro, que é um contrato formal e deve enunciar, além do mais que a lei exige, “o objecto do seguro e a sua natureza e valor; os riscos contra que se faz o seguro; … e, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes” (art. 426.º do Código Comercial).

Ora, embora se desconheça se o contrato de seguro aqui em causa continha cláusulas de exclusão de responsabilidade - já que nenhuma das partes juntou aos autos as Condições Gerais da Apólice, ónus que cabia particularmente à Autora, como interessada na procedência da acção (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil) e como seguradora - sempre haverá que aplicar as disposições legais que regulam, primeiro, o contrato de seguro contra fogo em especial, (arts. 442.º a 446.º do Código Comercial) e, depois, as que regulam o contrato de seguro em geral (arts. 425.º a 441.º do Código Comercial).

Neste aspecto, sobre o âmbito do seguro contra fogo, dispõe o art. 443.º do Código Comercial que “o seguro contra fogo compreende: 1.º Os danos causados pela acção do incêndio ainda que este haja sido produzido por facto não criminoso do segurado ou de pessoa por quem seja civilmente responsável”.

Sobre a interpretação do preceito do n.º 1.º do art. 443.º do Código Comercial, escreve Cunha Gonçalves (em Comentário ao Código Comercial Português, II vol., p. 567) que tem de concluir-se que só o incêndio criminoso, provocado por qualquer das pessoas referidas no citado artigo, isenta a seguradora de responsabilidades, visto que este preceito legal constitui excepção à regra geral do n.º 3.º do art. 437.º do mesmo código, que abrange a mera culpa das ditas pessoas como causa de ineficácia do seguro.

De que decore que os danos causados por incêndio provocado por facto criminoso do segurado, como foi o caso aqui em análise, não se compreendem no seguro. E assim inexistia a obrigação de a seguradora (Autora) indemnizar a locadora (Ré) pelos danos sofridos pelo veículo que tinha locado ao Réu C………….. e causados por acção dolosa deste. Como se concluiu na sentença recorrida.

9. Alega ainda a recorrente que esta exclusão do seguro não lhe é aplicável, por ser terceiro em relação ao contrato de seguro, e porque as normas dos arts. 24.º, als. d) e e) e 25.º do Decreto-Lei n.º 171/79, de 6 de Junho, relativas ao contrato de locação, fazem recair sobre o locatário a responsabilidade emergente dos danos causados no veículo e o risco de perecimento ou deterioração da coisa locada, obrigando-o a efectuar um seguro que cubra toda essa responsabilidade e todos esses riscos.

De certo modo, o que ficou dito supra já responde a esta questão. Sendo certo que a locadora é terceira em relação ao contrato de seguro, não é menos certo que a seguradora é terceira em relação ao contrato de locação. E, por isso, os riscos e a medida da responsabilidade civil que a lei ou o contrato de locação fazem recair sobre o locatário não são, só por isso, vinculativos para a seguradora. Sê-lo-ão apenas e tão só na medida em que foram abrangidos pelo contrato de seguro.

Ora, nenhuma das normas legais relativas ao contrato de locação referidas impõe que o seguro da coisa locada também abranja os danos provocados por acção criminosa do locatário. E, para além disso, não podem tais normas ser opostas à seguradora, porque não é parte no contrato de locação, nem podem sobrepor-se à exclusão estabelecida no art. 443.º, n.º 1, do Código Comercial.

Mas esta exclusão, inexistindo norma que disponha de forma diferente, é oponível a qualquer lesado.

10. Finalmente, alega a recorrente que nenhum dos três requisitos legais do enriquecimento sem causa, a que alude o art. 473.º, n.º 1, do Código Civil, se encontra preenchido.

A sentença recorrida fundamentou a obrigação de restituir no preceito do n.º 1 do art. 476.º do Código Civil, o qual, como dizem Pires de Lima e Antunes Varela (em Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1967, p. 320), configura um dos casos especiais de enriquecimento sem causa a que se refere o n.º 2 do art. 473.º do Código Civil, resultante de um pagamento indevido.

Com a epígrafe “repetição do indevido”, prescreve o preceito legal em causa (n.º 1 do art. 476.º do Código Civil) que “sem prejuízo do disposto acerca de obrigações naturais, o que for prestado com intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação”.

São, assim, três os requisitos que a lei estabelece para a repetição do indevido: 1) o acto de realizar uma prestação com a intenção de cumprir uma obrigação, segundo o conceito lato do art. 397.º do Código Civil; 2) que a obrigação que se quis cumprir não exista; 3) que, por detrás do cumprimento, não haja um dever de ordem moral ou social, que dê lugar a uma obrigação natural (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 2.ª edição, p. 386-387).

Segundo Mário Júlio de Almeida Costa (em Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 4.ª edição, p. 332), o art. 476.º do Código Civil abrange os casos em que se cumpre uma obrigação “objectivamente inexistente”, ou seja, quando está em causa “o cumprimento de obrigação que não existe nem relativamente ao que a efectua nem a terceiro”.

Quanto se trata da repetição do indevido por se ter cumprido obrigação alheia o regime a aplicável é o do art. 477.º do Código Civil.

No caso aqui em apreciação, como resulta do que ficou exposto supra, no n.º 8, a obrigação de indemnizar a locadora/proprietária do veículo danificado pelo incêndio existia mas impendia apenas sobre o próprio locatário, quer por força do contrato de locação, cujos efeitos não eram extensivos à seguradora, quer por força da responsabilidade civil emergente de facto ilícito delituoso (art. 483.º, n.º 1, do Código Civil) não compreendida no contrato de seguro.

O que quer dizer que a seguradora (Autora), quando pagou à antecessora da Ré a indemnização correspondente ao valor dos danos sofridos pelo veículo no incêndio, cumpriu uma obrigação que era exclusiva do locatário, mas, por erro não censurável - só detectado mais tarde, em consequência da condenação criminal do locatário como autor do incêndio que danificou o veículo - fê-lo no pressuposto de que cumpria uma obrigação própria, abrangida pelo contrato de seguro estabelecido com o locatário do veículo.

Deve aplicar-se, então, o regime previsto no art. 477.º do Código Civil, e não o do art. 476.º. Regime que também confere o direito à repetição do indevido, desde que o autor da prestação o tenha feito “por erro desculpável”, e contanto que o credor, “desconhecendo o erro do autor da prestação, se tiver privado do título ou das garantias do crédito, tiver deixado prescrever ou caducar o seu direito, ou não o tiver exercido contra o devedor ou contra o fiador enquanto solventes”.

No caso, está provado que a seguradora só pagou a indemnização à locadora por desconhecimento de que o sinistro fora causado dolosamente pelo locatário e esse desconhecimento não lhe pode ser censurável, já que só veio a revelar-se posteriormente, em consequência da sua condenação pelos respectivos crimes de incêndio e burla relativa a seguros.

As demais circunstâncias referidas na lei como impeditivas da repetição do indevido, relativas ao credor, constituindo matéria de excepção, tinham que ser alegadas e provadas pela Ré, e não foram (cfr. arts. 493.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e 342.º, n.º 2, do Código Civil).

Assim, embora por motivos ligeiramente diferentes dos que os invocados na sentença recorrida, terá que confirmar-se a decisão ali proferida.


IV

Pelo exposto:

1) Julga-se improcedente a apelação interposta pela Autora do despacho saneador e confirma-se a decisão ali proferida sobre a prescrição do direito invocado pela Autora contra o Réu C…………...

2) Julga-se improcedente a apelação interposta da sentença final pela Ré D……………., S.A., e confirma-se a decisão ali proferida.

3) Custas pelas respectivas apelantes (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Relação do Porto, 15-01-2008

António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues