Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0455441
Nº Convencional: JTRP00037341
Relator: SOUSA LAMEIRA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
TÍTULO EXECUTIVO
LETRA
RELAÇÃO
Nº do Documento: RP200411080455441
Data do Acordão: 11/08/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Não se pode considerar que dispõe de título executivo o exequente que, na execução alega que a letra exequenda está prescrita e invoca ser seu legítimo portador, por a ter obtido "por via de endosso e operação de crédito praticada a favor da executada".
II - Tal alegação é insuficiente para se considerar que foi alegada a relação extra-cartular.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
A) No Tribunal Judicial da Comarca de ............ por apenso à execução com processo ordinário para pagamento de quantia certa que Banco X.............., SA move a B..........., Lda e C............, Lda, para haver destes a quantia titulada por uma letra na qual a executada B..........., Lda figura como sacador, veio esta deduzir os presentes embargos de executado alegando, resumidamente:
A letra tem como data de vencimento o dia 01.12.2001 pelo que está a obrigação cambiária prescrita, nos termos do art.70 da LULL.
A embargada não alegou qualquer relação subjacente pelo que, em consequência, o título executivo não é exequível – art.º 813º, a) do CPC.
Conclui pela procedência dos embargos.

B) A embargada não contestou.

C) O processo prosseguiu termos, tendo sido proferido saneador sentença que, apesar de considerar que se encontrava prescrita a acção cambiária entendeu que a letra era título, nos termos do artigo 46 al. c) do CPC e, consequentemente, julgou os embargos totalmente improcedentes.

D) Apelou a Embargante, B............., Lda nos termos de fls. 41 a 43, formulando as seguintes conclusões:
1 – A Recorrente figura como sacadora na letra de câmbio dada à execução;
2 – No verso da referida letra figura a cláusula “c/despesas” e tem data de vencimento 2001-12-01;
3 – A acção executiva foi intentada pelo recorrido em 23/05/2003;
4 – Dos autos não consta o respectivo instrumento de protesto, não tendo a dita letra sido protestada em tempo útil;
5 – A causa de pedir subjacente à acção executiva intentada pelo recorrido funda-se na letra de câmbio e não como mero documento particular – quirógrafo – de uma eventual dívida causal;
6 – A relação comercial ou subjacente não é invocada pelo recorrido, não se podendo entender a expressão “operação de crédito” como alegação e invocação da obrigação geradora do título ou de reconhecimento de uma dívida;
7 – Conforme o estatuído pelo artigo 70 da LULL as acções do portador contra os endossantes e contra o sacador prescrevem num ano, a contar do protesto em tempo útil;
8 – A letra de câmbio dada à execução deixou de ser título executivo e, consequentemente, função constitutiva, tendo perdido os seus efeitos cambiários, encontrando-se prescrito o direito de acção para com o recorrente – artigo 70 da LULL;
9 – A decisão do Tribunal a quo violou o estatuído nos artigos 70 da LULL e 46 al. c) do CPC;
10 – Ao conhecer de mérito o Tribunal a quo deveria dar como provado o alegado pela recorrente, dando como procedentes os embargos de executado e como consequência, ser declarada extinta a acção executiva.
Conclui pedindo a procedência do recurso.
E) O Recorrido não contra alegou.

II - FACTUALIDADE PROVADA
Encontra-se provado o seguinte:
1) Por requerimento inicial entrado em 23 de Maio de 2003 o Banco X........., SA deu à execução de que estes autos são apenso, a letra de câmbio junta a fls. 4 daquela execução, na qual consta:
- No local e data de emissão: .......... 01.10.2001;
- No local do vencimento: 01.12.2001;
- No local da importância numérica: 1.548.000$00;
- No local do valor: Transacção Comercial;
- No local da promessa de pagamento: a menção “no seu vencimento pagará(ão) V.Exªs por esta única letra a nós ou à nossa ordem a quantia de um milhão quinhentos e quarenta e oito mil escudos”;
- No local destinado à assinatura do sacador, o carimbo da Embargante/1ª Executada “B............., Lda – A Gerência” e uma assinatura manuscrita do seu legal representante;
- No espaço destinado ao nome e morada do sacado consta: “C............., Lda”;
- No espaço destinado ao nome e morada ou carimbo do sacador consta a denominação da Embargante/1ª Executada;
- No espaço destinado ao aceite encontra-se um carimbo da 2ª Executada “C............., Lda – A Gerência” seguida de uma assinatura manuscrita do seu legal representante;
- No verso consta a cláusula “ Reforma N/Aceite NR 2/01 com despesas” seguida de dois carimbos da Embargante/1ª Executada, com a assinatura manuscrita do seu legal representante; e a cláusula “Pague-se à ordem do Banco X.........., SA – Valor recebido”, seguido da assinatura do seu legal representante.
2) A Exequente é portadora da letra em referência em virtude de operação de crédito praticada pela Embargante/Executada a favor da ora Embargante.
3) Apresentada a pagamento na data de vencimento, a letra não foi paga então, nem posteriormente.
4) A execução de que estes autos são anexo foi intentada pela Exequente em 23 de Maio de 2003.
5) A Exequente/Embargada alegou no artigo 1º do requerimento executivo que “Por virtude de endosso e operação de crédito praticada pelo Banco X........, SA a favor da primeira executada, o Exequente é dono e legítimo portador de uma letra no valor de € 7.721,39 (1.548.000$00), com vencimento em 2001.12.01, sacada pela 1ª executada, aceite pela 2ª executada e endossada ao Exequente”.

III – DA SUBSUNÇÃO - APRECIAÇÃO
Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, artigo 684 n.º 3 do Código de Processo Civil.
A questão que importa decidir é essencialmente uma, a saber:
Apesar de se encontrar prescrita a obrigação cambiária a letra de câmbio dada à execução deverá ser considerada equivalente a documento particular previsto na alínea c) do artigo 46 do CPP, devendo por isso continuara a valer como título executivo?
Dúvidas não subsistem quanto ao facto de que se encontra prescrita a obrigação cambiária, nos termos do artigo 70 da LULL, uma vez que a execução apenas deu entrada em 23 de Maio de 2003 e a letra de câmbio, junta a fls. 4 daquela execução, venceu-se em 01.10.2001.
Apesar dessa prescrição será que a letra dada à execução pode continuar a valer como título executivo?
A Jurisprudência tem adoptado posições diversas sobre esta questão, podendo descortinar-se quatro correntes, como bem esclarece a decisão recorrida (uma que entende que a letra ainda que prescrita vale sempre como documento particular, outra que entende que a letra prescrita nunca vale como título executivo, uma outra que entende que a letra prescrita valerá como título se da mesma transparecer o reconhecimento de uma dívida não se impondo que o credor/exequente indique a causa debendi, subjacente à emissão do título e por último uma outra que entende que a letra prescrita apenas valerá como título executivo se a Exequente alegar no requerimento executivo a relação causal). [Remetemos neste ponto para a decisão recorrida e para as citações Jurisprudenciais aí efectuadas]
Pensamos que se tem vindo a consolidar a corrente que defende que a letra prescrita poderá, todavia, “valer como título executivo, mas enquanto escrito particular consubstanciando a respectiva obrigação subjacente, causal ou fundamental, desde que mencione a causa da relação jurídica subjacente ou desde que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo”. [Ac. STJ de 30-10-2003, Relator Conselheiro Ferreira de Almeida, in www.STJ.pt]
Esta foi no fundo a posição de princípio defendida na decisão recorrida e à qual damos também o nosso apoio e adesão (e supomos, face ao conteúdo das suas alegações, que é também a posição da Recorrente).
A divergência surge quanto à apreciação do caso concreto.
E neste ponto desde já se refira que entendemos que a razão se encontra do lado da Recorrente.
Na verdade decidiu-se na decisão recorrida que era suficiente a alegação feita pela Exequente/Embargada no artigo 1º do requerimento executivo, alegação essa nos seguintes termos: “Por virtude de endosso e operação de crédito praticada pelo Banco X......., SA a favor da primeira executada, o Exequente é dono e legítimo portador de uma letra”.
Pelo contrário a Recorrente entende que não se pode entender a expressão “operação de crédito” como alegação e invocação da obrigação geradora do título ou de reconhecimento de uma dívida.
Afigura-se-nos, como dissemos, que assiste razão à Recorrente.
Desde logo, por um lado, no título nada se diz quanto à eventual relação jurídica subjacente. A letra dada à execução não contém qualquer referência quanto ao negócio que porventura lhe deu origem.
Por outro lado o Exequente refere que é legitimo portador da letra em virtude de endosso. Ora o endosso é uma típica operação cambiária gerador de uma obrigação cambiária.
Também esta alegação não seria capaz de conferir exequibilidade ao título.
Resta a alegação da expressão “operação de crédito”.
Terá a alegação de tal expressão a virtualidade de conferir exequibilidade à letra dada à execução?
Afigura-se-nos que não.
Não desconhecemos que já se decidiu que a simples expressão "transacção comercial/reforma de outras letras" inserta no título, seria suficiente para fazer valer a letra como título executivo. [Cfr. Ac. STJ supra citado]
Todavia é bem diverso o sentido e o significado de ambas as expressões. Transacção comercial indicia uma relação comercial e não uma mera obrigação cambiária.
A expressão “operação de crédito” pelo contrário faz pressupor uma obrigação cambiária (o endosso referido pela Exequente) e não uma obrigação causal.
A expressão em causa afigura-se insusceptível de constituir alegação bastante da relação causal, pois que apesar da presunção da existência da obrigação, estabelecida no n.1 do artigo 458 do Código Civil (como se refere na decisão recorrida), o Exequente não está dispensado de invocar a obrigação causal no requerimento executivo.
Essa alegação deve ser clara por forma a que possa ser impugnada pelo executado. [Neste sentido Ac. RP de 3.2.2000, Relator Desembargador Camilo Moreira Camilo “III- No caso de a execução se fundar numa letra, prescrita a respectiva obrigação cambiária desaparece a autonomia da letra, não podendo, por isso, discutir-se mais a obrigação resultante do saque, do aceite e do endosso, mas somente, e mesmo assim entre os respectivos sujeitos, a obrigação causal que deu origem à emissão da letra. IV - Apesar da presunção da existência da obrigação, estabelecida no n.1 do artigo 458 do Código Civil, o exequente não fica dispensado de invocar a obrigação causal no requerimento executivo com o fim de poder ser impugnada pelo executado.
V - Se o exequente não invocou tal obrigação, ainda que a título subsidiário, só será possível fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular, sem o acordo do executado por tal implicar alteração da causa de pedir.
VI - Se no requerimento inicial o exequente apenas faz alusão a que é portador legítimo da letra, foi invocada a obrigação cambiária e não a obrigação causal, pelo que prescrita aquela nunca a execução pode prosseguir com base nesta.”]
Face ao conteúdo do requerimento executivo, à alegação feita pelo Exequente e perante a letra dada à execução entendemos que apenas foi invocada a obrigação cambiária e não a obrigação causal.
Ora, estando prescrita a obrigação cambiária a letra dada à execução não pode valer como título executivo, pelo que a execução não pode prosseguir quanto à Embargante. [CFR. Ac. STJ de 12-12-2000, Relator: Conselheiro Afonso Correia “Tendo sido dada à execução uma letra de câmbio aceite pelo executado e prescrita, sem que o Exequente tenha alegado no requerimento inicial, ainda que a título subsidiário, a causa da obrigação exequenda, a letra, enquanto tal, não constitui título executivo porque prescrito e enquanto documento particular assinado pelo devedor, também não, porque nada foi alegado quanto à obrigação subjacente e exequenda.”]
Deste modo impõe-se a procedência da questão invocada pela Recorrente com a consequente procedência do presente recurso.
Em conclusão impõe-se a procedência do recurso.

B) Conclusão
Em suma, apesar de se encontrar prescrita a obrigação cambiária a letra de câmbio dada à execução deverá ser considerada equivalente a documento particular previsto na alínea c) do artigo 46 do CPP, devendo por isso continuar a valer como título executivo, ainda que, para tanto, a Exequente deva alegar no requerimento executivo a relação causal.
A alegação da expressão “Por virtude de endosso e operação de crédito praticada pelo ... a favor da primeira executada, o Exequente é dono e legítimo portador de uma letra”, não é suficiente para se concluir que foi invocada a relação causal.

IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
1- Julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida;
2- Em consequência julgam-se os embargos inteiramente procedentes declarando-se extinta a execução contra a Embargante.
Custas pelo Apelado.
Porto, 8 de Novembro de 2004
José António Sousa Lameira
José Rafael dos Santos Arranja
Jorge Manuel Vilaça Nunes