Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0120725
Nº Convencional: JTRP00035476
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
TERMO
RESPONSABILIDADE
SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: RP200301070120725
Data do Acordão: 01/07/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T F M BRAGA
Texto Integral: S
Recurso:
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM / DIR MENORES.
Legislação Nacional: CCIV66 ART1880.
DL 164/99 DE 1999/05/13 ART9 N1.
L 75/98 DE 1998/11/19 ART1 ART3 N4.
Sumário: O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social não pode ser condenado a pagar prestação de alimentos a menores depois de atingirem a maioridade, mesmo que então se verifiquem as circunstâncias previstas no artigo 1880 do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO :

I. RELATÓRIO

Maria......, divorciada, residente na....., em...., requereu a regulação do poder paternal relativamente aos dois filhos do casal que constituía com o requerido Francisco....., residente na Rua....., em......

Por despacho proferido em 31.03.2000 foi fixado um regime provisório de regulação do poder paternal, tendo-se aí estabelecido, designadamente, que o pai pagaria a quantia de 15.000$00 por cada menor até ao dia 8 de cada mês, com início no mês de Abril de 2000.

A fls. 29 e ss. a mãe dos menores requereu que o pagamento das prestações de alimentos fixadas provisoriamente fossem pagas através do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, em virtude de o requerido estar desempregado e não ter condições para efectuar o pagamento das mesmas.

Foi elaborado relatório pelos serviços do Instituto de Reinserção Social.

A fls. 43 o Mº Pº emitiu parecer no sentido de se estabelecer em definitivo os valores das prestações fixadas provisoriamente e de que estas sejam pagas pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, por se encontrarem verificados os pressupostos legais para tal.

Foi proferida sentença que fixou em 15.000$00 a prestação mensal a pagar pelo pai a cada um dos menores, a título de alimentos, com início em Fevereiro de 2000 e com actualizações anuais a partir de Janeiro de 2001, de acordo com o índice de preços ao consumidor, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, mas nunca em menos de 5%, mantendo-se essas prestações para lá da menoridade, se verificados os requisitos do art. 1880º do CC.

Por decisão proferida a fls. 49 a 51 deliberou-se:
1. Fixar em 15.750$00 para cada menor a quantia a pagar pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a favor da beneficiária, aqui requerente.
2. Tal quantia será actualizada anualmente, nos termos decididos, de acordo com o índice de preços ao consumidor, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, mas nunca em menos de 5% e mantendo-se para lá da menoridade, se verificados os requisitos do art. 1880ºdo CC.
3. As prestações manter-se-ão enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado; e
4. A beneficiária deve comunicar ao tribunal ou ao Instituto a cessação ou a alteração da situação de incumprimento ou da situação dos menores, e deve, junto do Instituto, renovar anualmente, a partir desta data, a prova de que se mantêm os pressupostos que determinaram o pagamento ora deferido.
Inconformado com o decidido no ponto 3. dessa decisão, interpôs recurso o Instituto de Gestão Financeira de Segurança Social, pedindo que se revogue esse trecho da sentença.
Admitido o recurso como sendo de agravo, com subida imediata e efeito devolutivo, apresentou o recorrente as suas alegações (fls. 61 e ss.) nas quais formula as seguintes conclusões:
1. A lei 75/98, de 19 de Novembro, e o DL 164/99, de 13 de Maio, que a veio regulamentar, constituem lei especial, que prefere ao artigo 1880º do CC, que constitui lei geral.
2. A referida disposição da Lei Civil não pode aplicar-se às situações de pagamento a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, quando os destinatários daquele Fundo atingem a maioridade.
3. Tal aplicação contrariava frontalmente o espírito e a letra da Lei 75/98 e do DL 164/99.
4. Os citados diplomas referem sempre se forma expressa a sua aplicação a menores – “vide” artigo 1º e 2º da Lei 75/98 e artigos 1º e 2º do DL 164/99.
5. Assim sendo, o pagamento das prestações é feita às pessoas a cuja guarda aqueles se encontram.
6. Aliás, o preâmbulo do DL 164/99 menciona a sua aplicação às crianças e jovens até aos 18 anos de idade, nos termos de recomendações do Conselho da Europa no sentido da protecção social àquele extracto populacional, mais desprotegido e carente.

O Mº Pº, em resposta às alegações de recurso do Instituto de Gestão Financeira de Segurança Social, também sustenta a revogação da sentença na parte impugnada, concluindo do seguinte modo:
1. Resulta claramente, tanto da letra como do espírito, que a lei n.º 75/98, de 19/11, e o seu regulamento, DL 164/99, de 13/05, foram criados com a finalidade de o Estado garantir a dignidade e a protecção das crianças, prestando-lhes as condições de subsistência, em obediência à norma programática do art. 69º da CRP.
2. Ora, Criança é “todo o ser humano com menos de 18 anos, salvo se, nos termos da Lei que lhe é aplicável, atingir a maioridade mais cedo” – Vide art. 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança.
3. Logo, não é legítima a condenação do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social com base na Lei 75/98, de 19.11, e seu Regulamento, DL 164/99, de 13.05, ao pagamento a interessado maior de 18 anos, nos termos do art. 1880 do CC.
4. Foi violado o disposto nos arts. 1º, 2º, n.º 2, 3º, n.º 3, da Lei 75/98, de 19.11, e 2º, nºs 2 e 3, n.º 1, al. b) do DL 164/99, de 13.05.
5. Pelo que, a douta decisão recorrida deve ser revogada na parte em que condenou o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a pagara a prestação de alimentos para lá da menoridade se se verificarem os requisitos do art. 1880º do CC.

A recorrida Maria....., nas contra-alegações de fls. 77 e ss., manifesta-se no sentido da improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:
A. A sentença proferida deve ser integralmente mantida;
B. A interpretação correcta dos diplomas legais é aquela que considera que enquanto não concluída a formação profissional mantém-se uma situação de menoridade, nos termos previstos no art. 1880º do CC.
C. Uma interpretação literal do termo menoridade, desvirtuava por completo os objectivos pretendidos pelos diplomas em causa nos autos.
D. Não faz sentido a suspensão abrupta do pagamento da prestação no momento em que fosse atingida a maioridade quando os beneficiários estão a completar a sua formação profissional que seria posta em causa com essa ruptura abrupta.

Foi proferido despacho de sustentação do decidido, a fls. 81.

Foram colhidos os vistos legais.

Nada obsta a que se conheça do recurso, cujo âmbito está limitado pelas conclusões do recorrente, como consequência do disposto nos art. 684º, n.º 3 e 690º do CPC.

A única questão a apreciar, que é exclusivamente de Direito, é a seguinte :
Pode o juiz condenar o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a pagar prestação de alimentos a menores mesmo depois destes atingirem a maioridade, desde que verificadas as circunstâncias do art. 1880º do CC ?
*

FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Com relevo para o conhecimento do recurso, estão provados os seguintes factos :

1. Os menores Helder..... e Anabela....., nascidos, respectivamente, em 27.01.88 e 04.01.90, são filhos do requerido na acção.
2. Por decisão de 16.02.2001 foi, além do mais, fixado que “a título de alimentos, o pai pagará a quantia mensal de 15.000$00 para cada menor, com início em Fevereiro de 2000, actualizando-se anualmente, a partir de Janeiro de 2001, de acordo com o índice de preços ao consumidor, publicada pelo I.N.E., mas nunca inferior a 5%, e manter-se-á para além da menoridade, se verificados os requisitos do art. 1880º do CC.
3. A requerente aufere 100.000$00 mensais, tendo despesas fixas de cerca de 60.000$00.
4. O devedor não tem bens nem rendimentos e está desempregado.

O DIREITO

O art. 1º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, estabelece que :
Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no art. 189º do DL n.º 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem, a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação (...).
A garantia de alimentos devidos a menores, de acordo com a predita lei, foi depois regulada pelo DL n.º 164/99, de 13 de Maio, em cujo preâmbulo se escreveu, a dado passo:
Este direito (direito a alimentos) traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento (da criança, enquanto pessoa em formação) e a uma vida digna (...).
O que esses diplomas quiseram introduzir foi um sistema de substituição do devedor de alimentos, por forma a que os menores deles carenciados não ficassem irremediavelmente desprotegidos.
Assim, sempre que o devedor de alimentos não possa satisfazer as prestações de alimentos, é o Estado, através do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, quem garante ao menor os alimentos devidos.
A questão que se coloca é da de saber até quando cabe ao Estado garantir os alimentos.
Tanto o art. 3º, n.º 4 da Lei 75/98, de 19 de Novembro, como o art. 9º, n.º 1, do DL 164/99, de 13 de Maio, referem que o montante fixado pelo tribunal perdura enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão (carência económica do menor e incumprimento pelo devedor da prestação de alimentos) e até que cesse a obrigação a que o devedor está sujeito.
Essa obrigação de garantia de alimentos por parte do Estado não pode, porém, - segundo cremos - manter-se quando o credor de alimentos atinja a maioridade, o que – como se sabe – sucede aos 18 anos de idade (cfr. art. 130º do CC).
Seria ir contra o espírito e a letra da lei prolongar essa garantia para além dessa idade – v. Ac. Rel. Porto, de 02.04.01, CJ, Ano XXVI, Tomo II, pág. 195.
De facto, os citados diplomas, quer nas respectivas notas preambulares, quer ao longo das disposições legais que implementam, falam sempre em “menores” e “crianças”, o que vai de encontro à própria ratio legis. Com efeito, como já se disse, a preocupação do legislador foi, indo de encontro a imperativos supranacionais de protecção às crianças e jovens (menores), proporcionar-lhes os meios económicos judicialmente fixados para poderem desenvolver-se, tanto fisica como intelectualmente.
Importante subsídio para este entendimento é o que consta, mais uma vez, do preâmbulo do DL 164/99, onde se afirma o seguinte :
A protecção à criança, em particular no que toca ao direito a alimentos, tem merecido também especial atenção no âmbito das organizações internacionais especializadas nesta matéria e de normas vinculativas de direito internacional elaboradas no seio daquelas. Destacam-se, nomeadamente, as Recomendações do Conselho da Europa R (82) 2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, e R (89) 1, de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais, bem como o estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade.

Tentemos agora cotejar o quadro supradescrito com o artigo 1880º do CC, introduzido pela reforma de 1977, onde se determina que:
Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o número anterior (despesas com o sustento, segurança, saúde e educação dos filhos), na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.
Esta disposição não consagra um caso de direito a alimentos. Trata-se, tão-só, de uma extensão da obrigação dos pais para além da menoridade dos filhos, de modo a que estes seja, na prática, possível alcançar o termo da sua formação profissional – v. “Notas ao Código Civil”, de Rodrigues Bastos, edição de 2002, pág. 107.
Como se escreveu no Ac. Rel. Lisboa, de 13.01.00, CJ, Ano XXV, Tomo I, pág. 79, o que o legislador quis com o art. 1880º do CC foi admitir as últimas ajudas e não prolongar o estado de menoridade e consequente responsabilidade dos progenitores.

Portanto, não se tratando de um verdadeiro direito a alimentos, fica claramente excluída a responsabilidade do agravante pelo pagamento das prestações para além da menoridade do Helder..... e da Anabela.
*

DECISÃO

Procedendo as conclusões do agravante, dá-se também provimento ao recurso de agravo, revogando-se o segmento da decisão (ponto 3. da sentença recorrida) em que se determina a manutenção da obrigação do agravante para lá da menoridade, se verificados os requisitos do art. 1880º do CC.

Custas pela recorrida Maria....., sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
*

PORTO, 7 de Janeiro de 2003
Henrique Luís de Brito Araújo
Fernando Augusto Samões
Alziro Antunes Cardoso