Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0632549
Nº Convencional: JTRP00039193
Relator: TELES DE MENEZES
Descritores: ARRENDAMENTO
MORA
CREDOR
Nº do Documento: RP200605180632549
Data do Acordão: 05/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 671 - FLS 13.
Área Temática: .
Sumário: I - Havendo mora creditoris ou accipiendi, o devedor pode legitimamente recusar o pagamento enquanto o credor se recusar a passar-lhe o recibo das rendas em dívida.
II - E a partir da mora do credor, o devedor apenas responde quanto ao objecto da prestação, pelo seu dolo, deixando a dívida de vencer juros, quer legais, quer convencionais.
III - Por isso, o devedor não está obrigado a efectuar qualquer depósito ou consignação das rendas, embora tenha a faculdade de o fazer, para se libertar da obrigação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B………. e C………. intentaram a presente acção declarativa de condenação com processo sumário contra D………., pedindo a condenação da Ré a despejar o locado, entregando-o livre de pessoas e bens, bem como a pagar às AA. a quantia de € 3.214,63 e ainda a que resultar do somatório das rendas entretanto vencidas.
Alegaram ser donas de uma fracção autónoma arrendada à Ré pelo anterior dono da mesma, antecessor das AA. e em cuja herança sucederam, sendo que a Ré se encontra em dívida relativamente a muitas rendas mensais.

A Ré contestou, dizendo que deixou de pagar as rendas porque, tendo pago as correspondentes aos meses de Janeiro a Março de 2002, solicitou os recibos de quitação e as AA. nunca lhos entregaram. Alegou, ainda, que sofre de graves dificuldades financeiras, não podendo pagar as rendas, pelo que recorreu ao apoio da SS, a fim de obter um subsídio de renda, o qual não pôde conseguir por não dispor dos recibos comprovativos do montante que paga.

As AA. responderam, afirmando não se encontrar em mora, visto que emitiram e enviaram por carta, para o locado, os recibos relativos às quantias pagas pela Ré, mas ainda que assim não tivesse acontecido, esta podia fazer prova do pagamento mediante a exibição dos talões de depósito na conta bancária da 2.ª Ré, onde as rendas devem ser depositadas.

II.
Foi dispensada a audiência preliminar.
Lavrou-se saneador.
Não se fixou a base instrutória, por se entender que a matéria de facto controvertida se reveste de manifesta simplicidade.

III.
Na fase da instrução as AA. requereram se decretasse o despejo imediato da Ré, por esta não ter pago nem depositado as rendas devidas na pendência da causa.

A Ré respondeu, dizendo que tendo invocado a mora das AA. por falta de emissão de recibos das rendas, tal constitui impedimento à procedência do pedido de despejo imediato.
Para a hipótese de não acatamento das razões invocadas, pediu o diferimento da desocupação do locado, atenta a sua situação económica, na medida em que de outra forma se verá colocada na rua, sem qualquer local onde se acolher.

As AA. vieram impugnar tudo o alegado pela Ré e, sem prescindir, para a hipótese de ser atendido o pedido da mesma de diferimento da desocupação do locado, invocando o art. 106.º do RAU, pediram a notificação do Fundo de Socorro do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a fim de pagar todas as rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora.

Foi proferido despacho que admitiu o pedido da Ré de diferimento da desocupação, nos termos do art. 105.º do RAU, afastando o conhecimento nesta fase do pedido de despejo imediato feito pelas AA.

IV.
Teve lugar a produção de prova relativamente ao incidente de diferimento da desocupação, bem como o julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e decretou a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas, condenando-se a Ré a despejar o locado no prazo de três meses após o trânsito em julgado da sentença e ainda no pagamento às AA. das rendas vencidas desde Abril de 2002 a Fevereiro de 2005, no montante de € 3.571,75, bem como no pagamento da quantia mensal de € 102,05 até efectivo despejo, sem prejuízo do disposto no art. 105.º/5 do RAU.

V.
Recorreram a Ré e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

A.
Conclusões do recurso da Ré:
1.ª. O ónus da prova da emissão de recibos de renda e da respectiva entrega ao arrendatário caberá ao senhorio, por se tratar de um facto que impede a procedência da excepção de incumprimento, quando a mesma tenha sido invocada pelo arrendatário, o que aconteceu nos presentes autos.
2.ª. Como tal, cabia às apeladas a prova de terem emitido e entregue os recibos das rendas pagas pela apelante àquelas.
3.ª. Tal facto não foi provado, como resulta da própria fundamentação constante das respostas aos quesitos, devendo dar-se como provada a matéria da excepção de incumprimento invocada pela apelante.
4.ª. Quanto ao prazo do diferimento da desocupação, entende a apelante que deveria ter sido concedido o prazo máximo permitido pela lei, que é de um ano a contar do trânsito em julgado da sentença, atenta a factualidade provada quanto à situação económica, financeira e social da apelante.
Pede a substituição da sentença por outra que conclua pela procedência da excepção de incumprimento alegada pela apelante, e ainda pelo alargamento do prazo de diferimento da desocupação para um ano.

Não foi oferecida resposta.

B.
Conclusões do recurso do IGFSS:
1.ª. Ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social cabe indemnizar os recorridos apenas pelas rendas vencidas e não pagas durante o período de diferimento da desocupação do local arrendado.
2.ª. Relativamente às rendas que fundamentaram a acção de despejo, não faz sentido que o FSS do IGFSS as pague, visto que tais dívidas inserem-se numa relação jurídica de natureza e âmbito privados, decorrente de um contrato de arrendamento, cujo cumprimento ou incumprimento apenas pode responsabilizar as partes nele intervenientes.
3.ª. Ademais, não seria justo que se ressarcisse um senhorio pelas dívidas do seu locatário, fora do pedido de diferimento, com dinheiro dos contribuintes da SS, pois se assim fosse, estaria encontrada a fórmula para, através de contratos de arrendamento fictícios ou simulados, se obter do Estado ou da SS fundos indevidos.
4.ª. Tendo decidido como decidiu, o M.º Juiz violou o disposto no art. 106.º/2 do RAU, pelo que deve ser revogada a sentença, nesta parte, e substituída por outra que limite a indemnização a pagar pelo FSS aos recorridos às rendas correspondentes a três meses de diferimento da desocupação do local arrendado.

Igualmente não foi oferecida resposta.

VI.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Factos considerados provados na sentença:
1.º. Encontra-se inscrita na CRP do Porto a favor das AA., através da Ap. 22/31072002 – 110.467, entre outras, a fracção autónoma designada pela letra “P”, correspondente ao quarto andar direito traseiras, do prédio urbano sito na Rua ………., …-…, da freguesia de ………. – Porto, e inscrito na matriz sob o art. 09556.º-P.
2.º. A supra mencionada fracção adveio à propriedade das AA. por sucessão na herança de E………. .
3.º. E………. celebrou com a Ré, em 1.4.1972, um contrato através do qual lhe deu de arrendamento a fracção autónoma mencionada.
4.º. Aquando da celebração do contrato de arrendamento foi convencionada a renda anual de 22.800$00, pagável em duodécimos de 1.900$00, no 1.º dia útil anterior ao mês a que respeitasse.
5.º. Após as actualizações, é de € 102,05 a renda mensal do locado cuja última fixação ocorreu no ano de 1997 e que a Ré deveria depositar mensalmente na conta da A. C………., aberta no F………., agência de ………., Porto.
6.º. No ano de 2000 a Ré apenas procedeu ao pagamento da renda relativa ao mês de Fevereiro.
7.º. No ano de 2001 a Ré nada pagou.
8.º. Em 8.3.2002 a Ré procedeu ao depósito das rendas relativas aos meses de Janeiro e Março a Dezembro de 2000 e de Janeiro a Dezembro de 2001.
9.º. Desde 8.3.2002 que a Ré não procede ao pagamento de qualquer das rendas devidas a partir daquela data.
10.º. A Ré é pensionista, auferindo a quantia mensal de € 143,03.

VII.
Questões suscitadas nos recursos:
A.
Pela Ré:
\ Ónus da prova da emissão dos recibos;
\ Prazo do diferimento da desocupação do locado.

Pelo IGFSS:
\ Quais as rendas por cujo pagamento é responsável.

A. Recurso da Ré.
A Ré, como causa de justificação para deixar de efectuar os pagamentos das rendas, alegou que tendo pago as correspondentes aos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2002, solicitou às AA. os respectivos recibos de quitação, que estas nunca lhe deram.
Na decisão da matéria de facto deu-se como provado, apenas, que «Desde 8.3.2002 que a Ré não procede ao pagamento de qualquer das rendas devidas a partir daquela data» (J).
Na fundamentação faz-se a seguinte declaração:
«Consigna-se que o Tribunal entendeu não ser de valorar o depoimento da testemunha G………. no que concerne ao envio pelos correios de “dois ou três recibos”, como o próprio referiu, face à ausência de qualquer outro elemento de prova que sustentasse esta afirmação, por exemplo a exibição do livro de recibos».
Dispõe o art. 813.º do CC que o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais, ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.
Por outro lado, quem cumpre a obrigação tem direito a exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, podendo o que cumpre recusá-la enquanto a quitação não for dada (art. 787.º).
Podemos, pois, concluir que havendo mora creditoris ou accipiendi, o devedor pode legitimamente recusar o pagamento enquanto o credor se recusar a passar-lhe o recibo das rendas em dívida.
E a partir da mora do credor, o devedor apenas responde quanto ao objecto da prestação, pelo seu dolo, deixando a dívida de vencer juros, quer legais, quer convencionais (art. 814.º).
Por isso, o devedor não está obrigado a efectuar qualquer depósito ou consignação das rendas, embora tenha a faculdade de o fazer, para se libertar da obrigação (art. 841.º) – cfr. acórdão desta Relação de 10.11.1981, CJ VI, 5, 246.
O mesmo é referido por Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 4.ª ed., Almedina, pág. 200, que considera que o senhorio se encontra em mora quando se recusa a passar recibo ou a receber as rendas. Afirma, ainda, que em caso de mora do credor, é facultativo o depósito das rendas, não constituindo causa de resolução do contrato o facto de o arrendatário não as depositar.
Posto isto, resta saber se face ao facto 5.º: «Após as actualizações, é de € 102,05 a renda mensal do locado cuja última fixação ocorreu no ano de 1997 e que a Ré deveria depositar mensalmente na conta da A. C………., aberta no E………., agência de ………., Porto», era obrigatória e emissão de recibos ou se era bastante o comprovativo do depósito.
Os depósitos das rendas na conta de uma das AA. equivalem a pagamentos feitos directamente a estas, dado que o estabelecimento bancário actua como representante ou procurador das senhorias. E nessa medida, os depósitos feitos extinguem a obrigação da Ré, por tudo se passar como se tivesse havido pagamento feito directamente ao credor. Assim, ao receber o talão de depósito emitido pelo banco, a Ré tem em seu poder a prova do pagamento das rendas, sendo a isso mesmo que se destina a emissão de recibo por banda do senhorio: prova do pagamento, através da correspondente quitação de quem afirma ter recebido. Quer dizer que, havendo depósito e emissão pelo banco do respectivo talão, se torna desnecessária a emissão de outro recibo, a não ser que as partes o tivessem convencionado.
Por isso, não faz sentido invocar o ónus da prova, porquanto, aceitando-se, face à fundamentação da matéria de facto, que o tribunal a quo não deu crédito a alegação das AA. de que enviaram recibos por carta para a Ré, a verdade é que não tinham de o fazer, por esta poder comprovar os pagamentos das rendas mediante a exibição dos talões bancários de depósito.
A não devolução pelas AA. das rendas depositadas equivale à sua aceitação e o recibo é constituído pelo talão do depósito.
Assim, não releva, nesta particular a questão do ónus da prova, na medida em que se houve acordo para o depósito no banco, está implícito um outro acordo para que os recibos sejam os talões dos depósitos, dessa forma estando assegurado o ónus de colaborar no recebimento das rendas imposto ao senhorio.

Levanta, ainda, a Ré a questão do prazo do diferimento da desocupação do locado.
Na sentença considerou-se que a falta de pagamento das rendas se deve a carência de meios da Ré, enquadrável na previsão do art. 103.º/1-b) do RAU.
E na fixação do prazo do diferimento da desocupação, ponderou-se a data da entrada da acção em juízo e o tempo entretanto decorrido, para se estabelecer três meses após o trânsito em julgado da sentença.
A apelante pretende o prazo máximo de um ano, permitido pelo art. 104.º/1 do RAU.
Deve dizer-se que o circunstancialismo referido na sentença se mantém perfeitamente atendível, na medida em que, entretanto, com a interposição do recurso, a apelante já viu o prazo em causa ainda mais dilatado.
Se é absolutamente compreensível o desespero da pessoa que fica ante a perspectiva de perder a casa em que habita, também se não pode esquecer que os interesses do senhorio são igualmente relevantes.
Por isso, mantém-se o prazo de três meses fixado na sentença.

B. Recurso do IGFSS.
Este recurso resume-se à questão de dever ser paga a totalidade das rendas em dívida ou apenas as concernentes ao período de diferimento do despejo.
Na sentença escreveu-se:
«… sendo que nos termos do art. 106.º/2 do RAU caberá ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social o pagamento das rendas vencidas e não pagas que serviram de fundamento ao pedido de despejo».
O que está em causa é o diferimento da desocupação do locado, por a resolução do contrato de arrendamento se dever a falta de pagamento das rendas por carência de meios da Ré [art. 103.º/1-b)].
O art. 105.º do mesmo diploma legal, que regula o processo do pedido de diferimento feito pelo réu, manda no seu n.º 5 que a decisão que diferir a desocupação seja oficiosamente comunicada ao FSSIGFSS.
Por seu turno, o art. 106.º/2 estabelece que «No diferimento decidido com base na alínea b) do mesmo preceito cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social indemnizar o autor pelas rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora e ficando subrogado nos direitos daquele».
Aragão Seia, o. c., pág. 497, afirma que com base na al. b) do n.º 1 do art. 103.º, cabe ao FSSIGFSS indemnizar o autor pelas rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos juros de mora, ficando subrogado nos direitos deste. E a pág. 498, diz que se a desocupação tiver como fundamento as rendas vencidas na pendência da acção e que não foram pagas ou depositadas nos termos gerais (art. 58.º), o FSSIGFSS, no caso da alínea b) do n.º 1 do art. 103.º, não as tomará a seu cargo.
Parece-lhe ser isso o que resulta da expressão rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros de mora (n.º 2 do art. 106.º), que significa as que serviram de fundamento ao pedido da acção de despejo, não englobando as vincendas. E na mesma página, in fine, reafirma o entendimento de que rendas vencidas e não pagas serão aquelas que serviram de fundamento ao pedido da acção de despejo, não englobando as vincendas.
Efectivamente, parece que o texto da lei não permite outro entendimento, sendo certo que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – n.º 3 do art. 9.º do CC.
A filosofia subjacente à norma parece ser a de co-responsabilizar o Estado pelo pagamento das rendas que se provou não terem sido omitidas por vontade do inquilino, mas porque o mesmo as não podia pagar por falta de meios.
Assim, não assiste razão ao apelante.

Face ao exposto, julgam-se as apelações improcedentes e confirma-se a sentença.

Custas pelos apelantes.

Porto, 18 de Maio de 2006
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira