Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0821988
Nº Convencional: JTRP00041282
Relator: CÂNDIDO LEMOS
Descritores: COMPRA E VENDA
CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE
MÚTUO
Nº do Documento: RP200804150821988
Data do Acordão: 04/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 270 - FLS. 164.
Área Temática: .
Sumário: A cláusula de reserva de propriedade é exclusiva do contrato de compra e venda, não sendo possível equiparar a posição do alienante, proprietário de um bem que aliena, a quem á atribuída a possibilidade de convencionar a suspensão dos efeitos translativos do contrato de alienação, com a do mutuante, que não é proprietário desse bem, limitando-se a financiar a sua aquisição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1988/2008- 2.ª Secção
Relator: Cândido Lemos- 1458
Adjuntos: Des. M. Castilho -
Des. H. Araújo-

ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


No ….º Juízo do Tribunal Judicial de Paços de Ferreira (vindos os autos das Varas Cíveis de Lisboa) B…………, S.A. com sede em Lisboa move a presente providência cautelar de apreensão de veículo (DL n.º 54/75 de 12/02) contra C……………. e mulher D……………., residentes em ………, pedindo que sem audiência prévia destes, seja ordenada a entrega imediata do veículo marca Renault, modelo Laguna Bresk, matrícula ..-..-ST e seus documentos, registado em nome do requerido, mas com reserva de propriedade registada a favor da requerente.
Indeferida a pretensão de omissão de contraditório, foram os requeridos citados.
Na sua contestação, para além da incompetência territorial (que viria a ser julgada procedente e daí o processo ter transitado para Paços de Ferreira), os requeridos alegam a nulidade da cláusula da reserva de propriedade.
Sendo as questões a conhecer de carácter apenas jurídico e cumprido o contraditório, foi proferido despacho a indeferir totalmente a providência requerida.
Inconformada a B………. S.A. apresenta este recurso de agravo e nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
1.ª- O presente recurso vem interposto de decisão que indeferiu a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel, requerida nos termos do artigo 15º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro;
2.ª- Entendeu o Meritíssimo Juiz a quo que a Reserva de Propriedade está reservada para os contratos de compra e venda, e como tal não seria de aplicar o Decreto-Lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro ao caso em apreço;
3.ª- Ou seja, para o Meritíssimo Juiz a quo não basta que se verifique a existência de reserva de propriedade inscrita a favor da Requerente, é que a mesma seja garantia do cumprimento de um contrato de compra e venda, e não de qualquer outro;
4.ª- Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei;
5.ª- A reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo, daqueles cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe uma interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;
6.ª- Nestas situações, tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade;
7.ª- Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591º do Código Civil, bem como, no princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405º do Código Civil, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor;
8.ª- Ora, a própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n.º 3 do seu artigo 6º quando refere que “o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda: (...) f) O acordo sobre a reserva de propriedade”.
9.ª- Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da Recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a apreensão, bem como, estando indiciariamente provado que o Requerido não cumpriu as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade, sem prejuízo de se apresentarem outras provas, nomeadamente a prova testemunhal, julgamos que se encontram reunidos os pressupostos para o decretamento da requerida Providência cautelar de apreensão de veículos, ao abrigo do disposto no artigo 15º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro.
Pugna pela procedência do recurso e decretamento da providência em causa.
O despacho foi mantido (fls. 199 e 200).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Os factos com interesse para a decisão são os que constam da petição inicial, não colocados em causa neste recurso e que para melhor compreensão assim se sumariam:
1º No âmbito da sua actividade, a Requerente celebrou com os requeridos, no dia 02/05/2005, o contrato n.º 533.673, adiante junto como Documento n.º 1 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2º O referido contrato teve por objecto o financiamento de Eur.: 14.184,60 €, montante este que se destinou à aquisição, por parte dos Requeridos, da viatura automóvel da marca RENAULT, modelo LAGUNA BREAK DIESEL, com matrícula ..-..-ST.
3º Como condição da celebração do referido contrato e como garantia do seu bom cumprimento, foi exigido pela Requerente aos ora Requeridos a constituição de reserva de propriedade a seu favor sobre o mencionado veiculo.
4º O veículo foi vendido aos Requeridos com o encargo de Reserva de Propriedade.
5º Por força do referido contrato, os requeridos assumiram, entre outras obrigações, a de pagar à Requerente uma prestação mensal no montante de € 230,41, por um período de 60 meses.
6º Os requeridos não efectuaram o pagamento das seguintes prestações a que se encontravam contratualmente obrigados:
N.º da prestação Data de vencimento Valor em dívida
16 08-09-2006 Eur.:228,92€
17 08-10-2006 Eur.:228,92€
18 08-11-2006 Eur.:228,92€
19 08-12-2006 Eur.:228,92€
20 08-01-2007 Eur.:228,92€
7º Em face da mora no pagamento das prestações, a Requerente, através de cartas registadas com aviso de recepção datadas de 11/01/2007, concedeu aos Requeridos um prazo suplementar de 8 dias úteis para pagamento da dívida, findo os quais a mora se convertia em incumprimento definitivo.
8º Cartas estas que foram efectivamente recebidas pelos Requeridos
9º Os Requeridos não pagaram até à presente data a totalidade das prestações em dívida.
10º Nem sequer procederam à entrega da viatura da marca RENAULT, modelo LAGUNA BREAK DIESEL, com a matrícula ..-..-ST.
Nos termos dos arts. 713º e 659º do CPC temos ainda como assente mais o seguinte facto:
11º Viatura essa adquirida a E..............., Lda pelo preço de €17.910,00, sendo que os requeridos entregaram ao vendedor €7.710,00, acrescendo a quantia de €10,000,00 como montante do crédito financiado pela requerente (fls. 32 dos autos).
Cumpre agora conhecer do objecto do recurso, delimitado como está pelas conclusões das respectivas alegações (arts. 684º nº3 e 690º nº1 do CPC).
Apenas uma questão nos é colocada:
- Possibilidade da entidade financiadora de aquisição de um veículo automóvel com reserva de propriedade registada lançar mão da providência cautelar para apreensão do mesmo e seus documentos, prevista no DL nº 54/75 de 12/02.
Vejamos:
Fazendo apelo a três Acórdãos da Relação de Lisboa, todos inscritos na Base de Dados da DGSI (de 27/6/2002, 13/5/2003 e 7/12/2004), defende a agravante que a reserva de propriedade inscrita a favor do mutuante tem o mesmo valor e significado que a reserva a favor do vendedor, assim se lhe aplicando o disposto nos arts. 15.º e 16.º deste último decreto mencionado: “vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos”. E 16º “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o Juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
Para além da interpretação actualista do disposto no art. 409.º n.º 1 do Código Civil, baseia-se tal posição nas disposições do Decreto-Lei n.º 359/91 de 21 de Setembro, que regula o crédito ao consumo, definido deste modo o contrato de crédito como “o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro de financiamento semelhante;”.[alínea a) do n.º 1 do artigo 2º]. Acrescenta o artigo 6º do mesmo diploma, no seu n.º 3 o seguinte: “o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda:
(...)
f) O acordo sobre a reserva de propriedade”.
Daí que incumprido o contrato, possa a entidade financiadora com registo de reserva de propriedade lançar mão da providência cautelar específica do DL n.º 74/75 para obter de modo célere a apreensão da viatura em causa e seus documentos.
Bem diversa tem sido a jurisprudência desta Relação.
Não se tornando necessário discutir neste momento a natureza jurídica da reserva de propriedade [Sobre este ponto veja-se Mota Pinto, Direitos Reais, 1976, p. 67, Luís Lima Pinheiro, “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, 1998; Ana Maria Peralta, A Posição Jurídica do Comprador na Compra e venda com reserva de propriedade, 1990] afigura-se-nos que tal direito deve ser visto como uma condição suspensiva do negócio, mantendo-se a propriedade na titularidade do vendedor até que o preço se encontre completamente liquidado. [Cfr. Pires de Lima e A. Varela, CC Anotado, Vol. I, p 376; Luís Lima Pinheiro, op. cit. p. 93]
Significa isto que o vendedor reserva para si a propriedade até que o comprador lhe pague integralmente o preço devido.
Ou como se escreveu no Acórdão RP de 11/2/2003, Processo 652/01- 2.ª Secção (Henrique Araújo): “A cláusula de reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência dos direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato. Na pendência da reserva, o vendedor continua a ser titular do direito de propriedade da coisa objecto do contrato de compra e venda, ficando os efeitos deste contrato, dada a existência da cláusula de reserva, suspensos da ocorrência de uma condição (evento futuro).”
Mas o certo é que aqui se tem entendido maioritariamente que a cláusula de reserva de propriedade é exclusiva do contrato de compra e venda, ou, como melhor se refere no sumário do Acórdão RP de 15/01/2007- Proc. 1966/2006- 5.ª Secção (todos os Acórdãos aqui citados foram retirados da Base de Dados da DGSI – www.dgsi.pt) : “I - A cláusula de reserva da propriedade, prevista e regulada no art. 409º, do Código Civil para os contratos de alienação, traduz-se na sujeição do efeito translativo desses negócios a uma condição suspensiva ou termo inicial, sendo a propriedade sobre o bem alienado, utilizada como garantia do cumprimento das prestações do adquirente.
II - Suspendendo ela, apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá ser estipulada nesse contrato.
III - Tal cláusula apenas pode reservar o direito propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, para quem outorga o contrato de alienação, na posição de vendedor, pois só ele é o titular do direito reservado.
IV - No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem.
V - Sendo nula a cláusula de reserva de propriedade, incluída no contrato de financiamento, o embargante/mutuante não tem qualquer direito sobre o bem penhorado que seja incompatível com a penhora realizada, pelo que devem ser julgados improcedentes os embargos de terceiro que deduziu à penhora do bem – um veículo automóvel.”
Mas já antes, no Acórdão RP de 1/6/2004 – Proc. 2028/04- 2.ª Secção (Alberto Sobrinho) se deixava escrito: “I - A entidade financiadora do crédito para aquisição de uma viatura, vendida por terceiro ao consumidor, não pode reservar para si o direito de propriedade desse veículo, por tal direito não existir na sua esfera jurídica.
II - Não pode, assim, requerer procedimento cautelar comum para apreensão da viatura, mesmo que constando registada reserva de propriedade do veículo a seu favor.”
Aí se acrescentando: “No caso vertente e segundo a factualidade alegada no requerimento inicial, está-se em presença de uma compra e venda financiada, coexistindo dois contratos autónomos, mas com uma ligação funcional entre si: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito. Os dois contratos como que se unem em vista da prossecução de uma finalidade económica comum, mantendo, todavia, estrutural e formalmente cada um deles a sua autonomia [cfr. Ana Isabel Afonso, in Contratos de Instalação de Lojistas em Centros Comerciais, pág. 113].
Assim, de acordo com o princípio da liberdade contratual, se promove o consumo, facilitando-se de um modo expedito o recurso ao crédito e se conciliam as necessidades do consumidor que deseja adquirir determinado bem mas não tem disponibilidades económicas para suportar o pagamento do preço de uma só vez, com as necessidades do vendedor que está interessado na venda a pronto pagamento.
Como garantia do pagamento do crédito concedido, a entidade financiadora reservou para si a propriedade da viatura vendida por terceiro. A cláusula de reserva de propriedade surge aqui constituída, não a favor da vendedora, mas sim de uma entidade distinta, a financiadora da compra.
A cláusula de reserva de propriedade constitui excepção à regra de que a transferência de direitos reais sobre coisas determinadas se dá por mero efeito do contrato – nº 1 do art. 408º C.Civil.
Mediante esta cláusula, consistente na possibilidade do transmitente reservar para si a propriedade da coisa (art. 409º C.Civil), a transferência do direito para a esfera do adquirente só se verificará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o evento a que as partes a subordinaram. O efeito real do contrato fica dependente de uma condição suspensiva.
Mas na situação em análise a entidade financiadora nada alienou. Limitou-se a conceder crédito ao consumidor para lhe possibilitar a compra de um veículo automóvel vendido por um terceiro.
Ora, só o vendedor, o titular do direito de propriedade sobre uma coisa pode manter na sua esfera jurídica, por determinado lapso de tempo, a propriedade da coisa que vendeu. E no caso de incumprimento da condição a que as partes subordinaram a transferência do domínio, abre-se a possibilidade ao vendedor de resolver o contrato e, consequentemente, obter a restituição do bem alienado, nos termos do art. 934º C.Civil.
A venda da viatura foi feita directamente pelo terceiro-vendedor ao consumidor e o efeito jurídico da transferência da propriedade não ficou condicionada à ocorrência de qualquer evento, designadamente ao pagamento das prestações emergentes do contrato de financiamento da compra, o que eventualmente poderia ser feito através de um acordo nesse sentido firmado pelos distintos intervenientes nos dois contratos. A transferência da propriedade operou-se no momento da celebração do contrato.
A entidade financiadora de crédito para aquisição de uma viatura, vendida por um terceiro ao consumidor, não pode reservar para si o direito de propriedade desse veículo, por tal direito não existir na sua esfera jurídica.
É que o facto do art. 6º, nº 3, alínea f), do DL. n.º 359/91, acima citado, prever como cláusula dos contratos de crédito ao consumo “o acordo sobre reserva de propriedade”, não “legaliza” a sua estipulação a favor da entidade financiadora, quando ocupa a posição de terceira relativamente ao contrato de alienação, uma vez que tal disposição se reporta às situações em que o pagamento do preço ao vendedor é diferido para momento posterior ao da entrega do bem, sendo este o beneficiário da reserva de propriedade clausulada. A previsão do art. 409º, do C.C., não pode ser aplicada, por analogia, a esta situação, uma vez que não é possível equiparar a posição do alienante, proprietário de um bem que aliena, a quem é atribuída a possibilidade de convencionar a suspensão dos efeitos translativos do contrato de alienação, com a do mutuante, que não é proprietário desse bem, limitando-se a financiar a sua aquisição. O direito atribuído pelo art. 409º, do C.C., pela sua natureza, só pode ser atribuído a quem é proprietário do bem em causa, não podendo ser concedido a quem não tenha essa qualidade.
A liberdade das partes estipularem cláusulas diferentes das legalmente previstas (artº 405º, do C.C.) tem os limites impostos no artº 280º, do C.C., designadamente a impossibilidade jurídica do seu objecto.
Sendo legalmente impossível o objecto da estipulação em análise, a mesma é nula, nos termos do art. 280º, nº 1, do C.C..
E não é defensável pretender-se, neste caso, que, apesar da terminologia utilizada, tal cláusula possa ser interpretada (art. 236º, nº 1, do C.C.), ou convertida (art. 293º, do C.C.), numa alienação fiduciária em garantia, cuja admissibilidade no nosso sistema jurídico é defendida por alguns.
Na verdade, exigindo esta figura uma primeira transmissão do bem em causa da esfera patrimonial do mutuário para o mutuante e uma segunda transmissão do mesmo bem da esfera deste para aquele, após o cumprimento da obrigação garantida, não resulta dos elementos apurados nesta acção que essa tenha sido a vontade real, hipotética ou presumível das partes, até porque tais transmissões estavam obrigatoriamente sujeitas a registo de transmissão e não de simples reserva de propriedade, como foi efectuado.
Sendo nula a cláusula de reserva de propriedade, incluída no contrato de financiamento, o embargante não tem qualquer direito sobre o bem penhorado que seja incompatível com a penhora realizada, pelo que foram correctamente julgados improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelo recorrente.
*
Ora perante as duas posições da jurisprudência, diametralmente opostas, houve a possibilidade de fazer intervir o Supremo Tribunal de Justiça, o qual veio a admitir o agravo de 2.ª instância no processo 07A2680, vindo então a ser proferido o Acórdão de 02/10/2007, que assim se encontra sumariado na identificada base de dados:
“I) - Os artigos 15º, 16º, e 18º, do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2 – procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis – têm o seu campo de aplicação em caso de incumprimento das obrigações do contrato de compra e venda por parte do comprador, havendo cláusula de reserva de propriedade.
II) – Tal regime jurídico impede que o financiador da aquisição dele beneficie, invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo automóvel a cláusula de reserva de propriedade.
III) – Em caso de incumprimento do contrato de mútuo, não pode quem financiou a aquisição requerer aquele procedimento cautelar, nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade – art. 409º do Código Civil.
IV) A interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito.”
Veja-se que assim se confirmou o acórdão da Relação de Lisboa de 1/3 de 2007 que, por sua vez, já havia mantido a decisão da 1.ª instância.
A fundamentação da decisão é a seguinte:
“O procedimento cautelar de apreensão judicial de veículo automóvel regulado pelo DL. 54/5, de 12 é uma providência cautelar típica.
Nos termos do artigo 15° do Decreto-Lei nº74/75, de 12 de Fevereiro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n°178-A/2005, de 28 de Outubro:
1 - Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula.
2 – O requerente expõe na petição o fundamento do pedido e indica a providência requerida.
3 – A prova é oferecida com a petição referida no número anterior.
O artigo 16°, n°1 do mesmo diploma, com a redacção resultante do Decreto-Lei n°178-A/2005, estatui:
Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo.
O artigo 18°, n°1, do referido Decreto-Lei n°54/75, na sua actual redacção, estabelece:
“Dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a concurso de credores; dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação.
Tendo sido a versão inicial do diploma de 1975 editada ainda antes da explosão consumista no sector automóvel, veio ela dotar os vendedores de veículos automóveis, de um meio rápido e expedito para obter a apreensão e entrega de veículos vendidos a prestações com cláusula de reserva de propriedade, em caso de incumprimento do contrato de compra e venda.
Vencido e não pago o crédito hipotecário, ou “não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade”, e verificados os requisitos de resolução do contrato de compra e venda, o vendedor, no caso de ter a seu favor reserva de propriedade, apenas tem de provar o não cumprimento do contrato por parte do adquirente e “ser titular dos respectivos registos” – nº1 do art. 16º do citado normativo – para requerer cautelarmente a apreensão do veículo.
Com o incremento do consumo, a tradicional relação bipolar comprador-vendedor passou a ser tripolar, já que muitas vezes, o consumidor é financiado na aquisição de bens por uma entidade financeira, ligada ou não ao vendedor.
Daí que as exigências do comércio e a protecção dos intervenientes na relação triangular tenham estado na base de diplomas que vieram regular o financiamento e as relações entre os contratos conexionados, normalmente, de compra e venda e o contrato de financiamento.
Neste enquadramento, por mais relevante e actualmente vigente, surgiu o DL. 339/91, de 21.9. que tem largo campo de aplicação no financiamento da aquisição de bens de consumo, particularmente de veículos automóveis.
Anteriormente o vendedor dispunha, em caso de venda a prestações da cláusula de reserva de propriedade – art. 409º do Código Civil – que tradicionalmente era robustecida com a emissão de títulos cambiários em branco, como garantia do pagamento das prestações, e a celebração de pacto de preenchimento dos títulos.
Com o advento do diploma de 1991 e no contexto das relações de financiamento passaram as empresas que se dedicam ao financiamento, a engendrar novos esquemas com vista à melhor protecção da sua actividade e risco de perda de créditos.
No campo da venda automóvel é muito comum intervirem empresas financiadoras dos consumidores, celebrando com eles, enquanto compradores, contratos de mútuo (financiamento à aquisição de bens de consumo).
Passou a ser, então, prática cada vez mais comum o vendedor ceder ao financiador da aquisição a sua posição contratual, mormente, no caso de venda de veículos automóveis a cláusula de reserva de propriedade.
Mas, desde logo, se coloca o problema de saber se tal cessão da posição contratual é válida, já que o DL. 54/75, historicamente, não foi pensado para a nova realidade tripolar e na sua letra alude a que o procedimento cautelar apenas pode ser utilizado pelo vendedor, tanto mais, que a cláusula de reserva de propriedade, classicamente, vem sendo entendida como condição suspensiva e, na lógica de tal entendimento, apenas com o pagamento integral a propriedade do veículo passa à titularidade do comprador.
Este entendimento, segundo o qual a entidade financiadora pode assumir a posição do vendedor e requerer a providência cautelar de apreensão do veículo cuja aquisição financiou, vem suscitando larga divergência na jurisprudência e na doutrina Disso nos dá conta o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.1.2007, in www.dgsi.pt. – Proc. 0651966.
Cremos ser maioritária a tese que nega que o regime legal previsto no art. 18º, nº1, do citado DL possa ser invocada pela entidade financiadora, que resolveu o contrato de mútuo celebrado com o comprador de veículo automóvel.
E os que o admitem, implicando assim, que a entidade financiadora possa prevalecer-se do procedimento cautelar de apreensão, demanda, segundo certo entendimento, uma interpretação actualista do art. 18/1 de forma a ser extensível o seu regime ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda.
Situando a problemática no campo da hermenêutica jurídica, importa ter presente que o art. 9º, nº1, do Código Civil estipula que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que foi elaborada; tal interpretação tem, porém, de ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº2 do art. 9º).
“No que concerne aos elementos de interpretação, são dois os factores essenciais — o elemento gramatical (letra da lei) e o elemento lógico (o espírito da lei) subdividindo-se este em três — o elemento racional ou teleológico, o elemento sistemático e o elemento histórico. O elemento gramatical (letra da lei) e o elemento lógico, ou seja, (o rito da lei) têm sempre que ser utilizados conjuntamente”. -“Teoria Geral do Direito Civil – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto”.
Os que sustentam que o financiador pode lançar mão do procedimento cautelar em apreço sustentam que deve fazer-se uma interpretação actualista do art. 18º/1 do DL. 54/75.
“Através dela procede-se à interpretação da lei tendo em conta as realidades actuais, vigentes ao tempo da sua aplicação.
Não se trata de passar por cima da “occasio legis” pois a consideração deste factor hermenêutico revela-se particularmente útil para a fixação da “ratio legis”.
O que se pretende é transpor para a realidade presente o juízo de valor que presidiu à elaboração da norma, adaptando o seu significado à evolução — social e jurídica — entretanto operada, por forma a extrair da norma um novo sentido e ajustá-la assim à evolução histórica ocorrida. O que poderá eventualmente implicar uma mudança do sentido que lhe era originariamente atribuído, em face da realidade histórica vigente ao tempo da sua entrada em vigor” – Pinto Monteiro “Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil”, 1985-25, nota 31.
O Acórdão recorrido, na esteira do Acórdão deste STJ de 12.5.2005 – de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Araújo de Barros, in www.dgsi.pt Proc.05B993, considerou que o financiador não pode lançar mão do procedimento cautelar.
Antes de mais, importa afirmar que a interpretação actualista, também ela, tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação, se dela resultar um desfecho que se compagine com o sistema jurídico enquanto unidade e o resultado interpretativo não afrontar o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas valores caros ao Direito.
Por isso importa analisar, ainda que sumariamente os preceitos implicados.
Desde logo a natureza da cláusula de reserva de propriedade prevista no art. 409º do Código Civil:
1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.
Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado” vol. I, entendem que no caso previsto neste artigo (pactum reservati dominii) o negócio é realizado sob condição suspensiva, quanto à transferência da propriedade.
Também Galvão Telles, “Obrigações”, 3ª edição, 61, sustenta idêntica opinião ao considerar que - “A venda com reserva de propriedade é uma alienação sob condição suspensiva. Suspende-se o efeito translativo mas os outros efeitos do negócio produzem-se imediatamente. O evento futuro de que depende a transferência da propriedade, será, em regra, o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte”.
“Face ao disposto no nºl do artigo, o negócio será celebrado, quanto à transferência da propriedade, sob condição suspensiva” – Almeida Costa, “Obrigações”, 4ª edição, 197.
Nas palavras de Lima Pinheiro – “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, Coimbra, Almedina, 1988, pág.115 – “Em resumo, o pacto de reserva de propriedade, enquanto cláusula socialmente típica com a configuração normativa que lhe cabe no ordenamento português, é uma convenção de garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de uma condição suspensiva de efeito translativo, para alcançar o seu efeito característico: a oponibilidade erga omnes da resolução.” – cfr. “Thémis- Revista da Faculdade de Direito da UNL”” – Ano V – nº11 – 2005, pág.74.
O art. 409º, nº1, do Código Civil ao aludir a “contratos de alienação” de modo algum se pode considerar que pode abarcar o contrato de mútuo ou de financiamento; os contratos de alienação são os translativos de um direito; no caso que nos ocupa o direito de propriedade.
A cláusula visa a protecção do alienante pelo que pressupõe uma relação directa entre o que adquire e o que aliena com espera do preço.
Daí que a consideração de uma relação tripolar brigue com a essência da previsão legal do art. 409º do Código Civil, porque o financiador de modo algum, ao conceder financiamento ao comprador, intervém ou celebra contrato de alienação.
Mas será que a expressão final daquele normativo até à verificação de qualquer outro evento pode ser entendida, reportando esse outro qualquer evento a um contrato em que o vendedor não intervém?
Respondemos negativamente.
Na economia do contrato em que o vendedor beneficia de reserva de propriedade, a circunstância que para si releva, é o cumprimento, como meio de extinção da obrigação do comprador; fazer depender a manutenção do direito de propriedade, que radica no vendedor até ao pagamento integral do preço pelo comprador, de um evento que apenas tem uma conexão indirecta com o contrato de alienação é descabido, porque a lei quis fazer depender a estipulação da reserva de propriedade, até ao cumprimento ou à verificação de outro evento, apenas no âmbito da relação contratual protegida pela cláusula de reserva de propriedade celebrada, e não fora dela.
Estabelecer por via daquela expressão uma ligação directa ao contrato de financiamento parece abusivo, pois que os contratos são díspares quanto aos seus efeitos e a resolução do contrato de financiamento jamais concederá ao mutuante o direito a reaver aquilo que o mutuário comprou com o crédito concedido.
Como se salienta no citado Acórdão deste Supremo Tribunal:
“Ademais, nenhuma perspectiva, formal ou substancial, consente que se confunda contrato de alienação, que implica a transferência, ainda que sob condição suspensiva, da propriedade de um veículo, com um contrato de mútuo que teve como mutuante outra entidade e de cuja resolução resulta o vencimento das prestações convencionadas e não a obrigação de restituição do veículo vendido”.
Mas, mesmo que se admitisse que a entidade financiadora pudesse ver para si transferida a reserva de propriedade, mediante cessão da posição contratual do vendedor inicialmente titular da reserva, entendemos carece de legitimidade para lançar mão do procedimento cautelar do DL. 54/75, de 12.2, desde logo, porque sendo o procedimento cautelar instrumental, visando a rápida recuperação do veículo para posterior venda (que a lei impõe), não se vislumbra que se ajuste tal procedimento típico aos fins que o financiador visa tutelar, que são apenas as consequências resultantes da resolução do contrato de mútuo.
Como compatibilizar estes efeitos com os que adviriam da pretensão que teria de ser exercida na acção principal – poderia a financiadora pedir a apreensão do veículo?
Não podia, cremos, porque o contrato de compra e venda não foi celebrado entre si e o mutuário.
O financiador teria ao seu alcance o procedimento cautelar comum – art. 381º do Código de Processo Civil – mas não o do apreensão do veículo automóvel, porque a regra da instrumental idade do procedimento cautelar, não se compagina com os efeitos jurídicos da resolução do contrato de mútuo, que não consente pedir a apreensão do veículo já que a entidade financiadora não interveio no contrato de alienação e sem esse não seria possível estabelecer a cláusula de reserva de propriedade.
No sentido de que a estipulação da cláusula de reserva de propriedade nem sequer pode ser estipulada a favor da entidade financiadora por ser nula – Gravato Morais, in “União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo”, pág. 307, nota 572, 2004, e em anotação ao Acórdão da Relação de Lisboa de 21.2.2002; “Cadernos de Direito Privado”, n°6, Abril/Junho de 2004, pág. 49/53.
O art. 18º,nº1, parte final, do DL. 54/75 expressamente impõe ao credor que promova a venda nos 15 dias subsequentes à apreensão do veículo e, no mesmo prazo, que proponha acção de resolução do contrato de alienação.
Aqui novo escolho para os que sustentam que a alusão a qualquer outro evento – art. 409º, nº1, do Código Civil – possa ser algo relacionado com o comprador, que não se relacione com o contrato de alienação.
Conjugando aquele normativo do Código Civil com esta norma do DL. 54/75, não é defensável que o terceiro que financiou a aquisição do bem possa lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel já que nunca lhe assistirá o direito de alienação do bem.
Assim se demonstra que a divergência foi sanada no sentido daquilo que antes dizíamos ser a posição maioritária desta Relação.
Salvo o devido respeito, não vemos razão para divergir do decidido, não se tratando ainda de uniformização de jurisprudência (arts. 754.º n.º 2 e 732.º- A do CPC).
Verifica-se, assim, que se concorda com a decisão, mas não com a sua fundamentação, a qual não teve em consideração que a requerente nunca poderia em momento algum ser considerada proprietária do veículo pela simples razão de que é requisito essencial do contrato de compra e venda o pagamento do preço (arts. 874.º, 879.º e 885.º do CC), o que esta não fez, pelo menos na totalidade. O que consta do contrato escrito entre as partes celebrado é que o montante do mútuo foi de dez mil euros, enquanto o preço do veículo foi de €17.910,00.
DECISÃO:
Nestes termos se decide negar provimento ao agravo, mantendo-se a decisão, embora com fundamentação diversa.

Porto, 15 de Abril de 2008
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Augusto José B. Marques de Castilho
Henrique Luís de Brito Araújo