Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0636403
Nº Convencional: JTRP00039862
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: LIQUIDAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: RP200612070636403
Data do Acordão: 12/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 697 - FLS 114.
Área Temática: .
Sumário: I - Mesmo quando se imponha o recurso à prova pericial e esta não seja concludente para os fins pretendidos, a liquidação deverá ser efectuada segundo a equidade.
II - Mas, sendo de admitir o recurso à equidade, o correspondente julgamento se deverá sustentar em elementos disponíveis para esse efeito, já que equidade não poderá significar livre arbítrio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

B………., residente na Rua ………., n.º .., ………., Vila do Conde,
veio deduzir Incidente de Liquidação, subsequente a sentença condenatória genérica, contra

“C………., Ld.ª”, com sede na Rua ………., n.º .., ………., Vila do Conde,

pretendendo fosse liquidada em 23.439,98 euros (4.699.294$00) o valor do seu crédito sobre a Requerida, devendo ser esse o montante líquido a ser-lhe pago pela última, na sequência de suprimentos reconhecidos na sentença que subjazia à pretensão formulada.

Em síntese, aduziu o Requerente que, tendo a Requerida sido condenada, por sentença já transitada em julgado, a pagar-lhe o crédito que detinha sobe a mesma, decorrente de suprimentos por si efectivados na qualidade de sócio, atingia aquele (crédito) o valor global supra indicado, representado na documentação já junta aos autos, com suporte na contabilidade da sociedade/requerida.

Esta última, citada para os termos do incidente, apresentou contestação em que pôs em causa o valor liquidado, sendo que nos registos contabilísticos da sua escrita não constavam quaisquer lançamentos de suprimentos feitos pelo Requerente, nomeadamente os que vêm invocados através da documentação por este junta aos autos, pelo que devia improceder a liquidação nos termos pretendidos.

O Autor ainda respondeu para impugnar a matéria adiantada na contestação, concluindo nos precisos termos do por si requerido.

Em sede de audiência preliminar foi proferido despacho saneador tabelar, fixada a matéria de facto tida como assente entre as partes e organizada a base instrutória, peças estas que não sofreram reclamação.
Na fase de instrução do incidente efectivou-se exame pericial colegial à escrita da Requerida, tendo em vista averiguar se na mesma vinham reflectidos movimentos contabilísticos referentes aos suprimentos feitos pelo Requerente, tudo circunscrito pelos quesitos formulados pelas partes, sendo obtido o resultado que consta de fls. 521 a 524 e 550 a 552, com os esclarecimentos de fls. 575 a 576.

Subsequentemente, realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida decisão da matéria de facto, após o que se julgou procedente o incidente em referência, liquidando-se no valor peticionado o crédito do Requerente sobre a sociedade/requerida, dessa forma se concretizando a condenação genérica anteriormente sentenciada.

Inconformada com o decidido, interpôs a Requerida recurso de apelação, concluindo as suas alegações pela improcedência do incidente de liquidação ou, a não ser tal atendido, devendo ser alterada a decisão por forma a que o crédito do Requerente seja fixado em metade do valor peticionado.

Inexistem contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do recurso, sendo que a instância se mantém válida.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

Vem dada como apurada em 1.ª instância a materialidade que de imediato se passa a enunciar:

1 - Por sentença proferida em 28 de Junho de 2002, constante de fls. 241 a 244 destes autos, transitada em julgado (tendo sido confirmada integralmente pelo Tribunal da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça) foi condenada a Ré “C………., Lda”, no pagamento ao exequente do crédito deste por suprimentos feitos à executada, na sua qualidade de sócio, que vier a liquidar-se em execução de sentença, no mais absolvendo a mesma executada;

2 - A executada emitiu a declaração e documento de fls. 80 dos autos, na qual se declara devedora em 10 de Agosto de 1999 ao exequente de “uma quantia que ainda falta apurar, mas que rondará os 5.000 contos” (24.939,90 €);

3 - No período em que foi gerente da Executada, isto é, até 4.10.99, o exequente sempre foi responsável pelo sector administrativo e financeiro desta;

4 - No exercício das funções referidas no Ponto anterior, o Autor chegou a efectuar lançamentos contabilísticos da Ré, que assinava, nomeadamente, a título de empréstimos de sócios;

5 - O Autor chegou a assinar algumas notas de lançamento de empréstimos à sociedade, feitos pelos sócios D………. e E……….;

6 - As contas da sociedade relativas àqueles anos dos pretensos empréstimos do Autor à Ré, sem menção dos mesmos, foram aprovadas em actas de assembleias-gerais de sócios, com voto favorável do Autor;

7 - A viatura de matrícula “SH-..-..”, de marca “VW”, modelo “……….”, chegou a ser pertença do Autor e foi utilizada pelo mesmo.

Em face das conclusões formuladas pela recorrente, o objecto do recurso circunscreve-se à questão única e essencial de curar saber se, diante da materialidade dada como apurada, não devia a pretensão encerrada na liquidação ser julgada improcedente ou, então e quando muito, mesmo por recurso à equidade, fixar-se o crédito do Requerente em metade do valor peticionado.
Analisemos.

Está em causa no incidente de liquidação, enxertado na acção declarativa que concluiu pela condenação genérica da apelante/requerida no pagamento ao apelado/requerente do crédito deste sobre aquela por suprimentos à mesma feitos, apurar o valor preciso desse mesmo crédito, dado naquela acção não ter sido possível quantificá-lo.

A decisão impugnada acolheu a pretensão deduzida pelo Requerente, tendo liquidado esse seu crédito no valor peticionado – 23.439,98 euros (4.699.294$00) – para tanto deitando mão da equidade, posto que os elementos de prova recolhidos nos autos, incluindo a prova pericial, não eram concludentes para comprovar a alegação produzida por aquele Requerente no que respeito dizia à demonstração na escrita da sociedade/requerida dos suprimentos que na sentença dada para liquidar havia reconhecido terem existido e assim originarem o corresponde crédito a favor do primeiro.

Na base desse critério e porque se impunha uma decisão a concretizar o valor do crédito já definitivamente reconhecido a favor do Requerente/autor, sob pena de se cair numa situação de “non liquet, ponderou-se, para além do mais, que a Requerida havia já reconhecido, em 10.8.99, ser devedora ao Requerente, a título de empréstimos realizados por este último, na sua qualidade de sócio-gerente, de quantia que rondava os 5.000 contos (v. doc. junto a fls. 80 e Ponto 2 da matéria de facto), o que justificava a procedência da liquidação formulada.
Defende, contudo, a recorrente, numa primeira linha e para o caso em presença, não só não vir demonstrado o dito crédito do Requerente por ausência de prova bastante que o justifique, como ainda havia ficado demonstrado a inexistência do mesmo, posto da escrita (contabilidade) da sociedade/apelante não constar qualquer suprimento feito por aquele primeiro, como à evidência decorria do teor do relatório pericial constante dos autos, tal sendo o suficiente para justificar a improcedência da liquidação deduzida, estando o Requerente onerado, como estava, com a prova dos factos constitutivos do seu direito.

Não cremos que esta argumentação seja suficiente para, no caso em presença, se concluir pela inexistência do falado crédito do Requerente.
Vejamos.

Desde logo, vindo já determinado por decisão definitiva a fixação para momento posterior do valor a receber pelo credor, não poderão sobrar dúvidas que o Tribunal reconheceu a existência dum crédito, só não o quantificando desde logo, por falharem elementos bastantes para aquilatar do seu montante – art. 661, n.º 2, do CPC.

Assim sucedendo, por forma a que o credor disponha de título executivo bastante impõe-se-lhe proceda à liquidação prévia do montante desse crédito que genericamente lhe foi reconhecido (art. 47, n.º 5 do CPC), deitando mão do competente incidente que vem regulado para o efeito nos arts. 378 a 380 do CPC.

E, no âmbito do julgamento de tal incidente, compete mesmo ao juiz, quando a prova produzida pelos litigantes for insuficiente para fixar a quantia devida, completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial – n.º 3, do citado art. 380, à semelhança do que já prescrevia o n.º 3, do art. 807 do CPC, antes da reforma introduzida na acção executiva pelo DL n.º 38/03, de 8.3 (v., por todos, Lopes do Rego, in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2.ª Ed., pág. 340).

A imposição ao juiz de uma tal averiguação só pode querer significar um afastamento das regras gerias do ónus da prova, em função das quais incumbe ao credor a prova do montante do seu crédito (art. 342, n.º 1, do CC).

E essa averiguação oficiosa deve ter lugar, não só quando a prova produzida pelas partes seja insuficiente, como ainda quando seja omissa, desde que tenha sido alegada factualidade a viabilizar essa indagação – v., neste sentido, o Ac. do STJ de 13.11.03, in base de dados do MJ.

Ora, na primeira das vertentes que constitui a observação oposta pelo recorrente ao decidido, o que não pode dar-se como adquirido é a inexistência do invocado crédito, posto a não demonstração, pelo exame pericial realizado à sua escrita, do lançamento dos ditos suprimento apenas poderá significar isso mesmo – não se encontrarem aqueles (suprimentos/empréstimos) lançados na sua contabilidade.
Porém, diante desta última realidade não se impõe necessariamente concluir pela improcedência da pretensão deduzida, enquanto se almeja averiguar do “quantum” do crédito já reconhecido.

Na verdade, a ausência de prova concludente, incluindo a que decorre da prova pericial realizada, impõe ao julgador a concretização da respectiva liquidação por recuso à equidade – aqui se entrando na análise da segunda das vertentes opostas pela impugnante ao sentenciado – sob pena de se criar uma situação de “non liquet”, visto ser incompatível e contraditório dar como adquirido, por um lado, a existência de um crédito e, por outro, julgar improcedente a sua liquidação naquela base.

Daí que, acompanhando os ensinamentos de Anselmo de Castro, mesmo quando se imponha o recurso à prova pericial e esta não seja concludente para os fins pretendidos, a liquidação deverá ser efectuada segundo a equidade, precisamente em termos semelhantes ao estipulado no art. 566, n.º 3, do CC, que regula os termos para a fixação da obrigação de indemnizar – in “A Acção Executiva …”, ed. 1970, pág. 58; segue idêntico raciocínio Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva”, 4.ª ed., pág. 99, ainda que este autor faça menção ao julgamento segundo a equidade, quando em causa está a fixação dum montante indemnizatório.

Mas, sendo de admitir para o caso em apreço o recurso à equidade, parece evidente que o correspondente julgamento se deverá sustentar em elementos disponíveis para esse efeito, já que equidade não poderá significar livre arbítrio – assim também reflecte Meneses Cordeiro no estudo cit. pela recorrente, in “O Direito”, Ano 122 (1990), tomo II, págs.271 a 280.

Nesta medida, aceitando como ajustado, no seguimento do decidido, deitar mão da equidade para solucionar a problemática atinente à liquidação deduzida pelo Requerente, interessa aquilatar se a argumentação adiantada na decisão impugnada vai além do razoável no confronto das posições defendidas por ambas as partes.

O tribunal “a quo”, justificando a conclusão retirada para fixar o crédito do Requerente no montante reclamado de 23.439,98 euros (cerca de 4.700 contos) entendeu que do acervo factual dado como apurado ressaltava como essencial
“a declaração emitida pela Ré, no sentido em que se declarou devedora, em 10 de Agosto de 1999, ao aqui Autor de ‘uma quantia que ainda faltava apurar, mas que rondaria os 5.000.000$00’ …
Para além do que, nenhum outro, por recurso à equidade, auxiliava no rumo da concretização do montante em apreço, pelo que teria de se socorrer do mesmo …” – trata-se de matéria que vem reflectida no Ponto 2 da matéria de facto.

Já o impugnante, para a hipótese de vingar um julgamento segundo a equidade, defende que o montante do crédito do Requerente se devia fixar em metade do reclamado – cerca de 2.350 contos – posto que, para além da materialidade aludida pelo tribunal recorrido, devia ser ponderada aquela outra relacionada com o facto de o recorrido como responsável pela área administrativa e financeira, enquanto gerente da sociedade/requerida, ter chegado a fazer lançamentos dos suprimento dos outros sócios (Ponto 3 a 5 da matéria de facto), sem que tenha feito o lançamento dos seus próprios suprimentos, para além de, como sócio da Requerida, ter votado favoravelmente os balanços e as contas da dita sociedade, sem deles constarem os seus suprimentos (Ponto 6 da matéria de facto).

Ainda que as objecções apontadas pela apelante se apresentem pertinentes, não cremos que elas sejam de sobrelevar no confronto com aquela outra realidade apontada na decisão recorrida, sendo que esta última é por demais reveladora de que existiram suprimentos da parte do recorrido – trata-se de declaração confessória quanto à existência daqueles, tanto mais que a mesma se reporta a data próxima da sua destituição como gerente, em 4.10.99, segundo certidão da CRP (fls.8), sendo a declaração datada de 10.8.99 e assinada por um outro sócio gerente da Requerida – os quais rondariam cerca de 5.000 contos.

Ora, diante da constatação de que os suprimentos efectuados pelo Requerente rondariam o valor em último declarado e fixando-os a sentença impugnada no dito valor de 23.439,98 euros (cerca de 4.700 contos), cremos que a constatação assim retirada pelo tribunal “a quo” se enquadra numa equilibrada composição dos interesses em conflito, afigurando-se-nos razoável que nesse valor se fixe a liquidação do crédito do recorrido, num julgamento “ex aequo et bono”.

Equivale o expendido a considerar ajustada a apreciação feita pelo tribunal “a quo”, enquanto procedeu à liquidação do crédito do Requerente nos termos indicados, não sendo de acolher as objecções que lhe são opostas pela recorrente.

III. CONCLUSÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, nessa medida se confirmando a sentença recorrida.

Custas a cargo da apelante
Porto, 7 de Dezembro de 2006
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz