Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0436633
Nº Convencional: JTRP00037498
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
FALÊNCIA
Nº do Documento: RP200412160436633
Data do Acordão: 12/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I- Conforme entendimento que já vingava no domínio do anterior artigo 1037º-1, do CPCiv, o processo especial de embargos de terceiro não é o meio próprio para reagir contra uma apreensão de bens em processo de falência, tida por ilegal, uma vez que a lei que regula os processos especiais de recuperação da empresa e de falência (CPEREF) prevê um meio próprio para que terceiros possam defender o que lhes pertence, afastando o seu património do âmbito falimentar.
II- Como tal, com a declaração de falência e posterior apreensão dos bens para a massa falida, torna-se inútil o prosseguimento de embargos de terceiro ao arresto desses bens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

B........................... e outros instauraram, no Tribunal do Trabalho de Valongo (em 04.07.2001) acção com processo especial de impugnação de despedimento colectivo (com o nº..........) contra C......................... & Companhia Limitada com sede em ..............., Santo Tirso, visando obter a declaração de ilicitude do seu despedimento e a condenação da ré a pagar-lhes quantias que especificam (de salários, subsídios, etc.).

Entretanto, como acto preliminar da dita acção foi pelos citados autores requerida, no mesmo tribunal, contra a aludida firma C..................... & Cª Lda., providência cautelar de arresto, sob o nº ....../01), tendo também sido requerida naquela acção a apensação desta providência cautelar -- onde foram arrestados (em 15.05.2001) os bens da requerida constantes da relação com cópia a fls. 67 ss. destes autos de agravo.

Por despacho de 06.02.2002 (cfr. fls. 79 a 82 deste agravo) foi decretada a falência da firma C........................ & Companhia, Lda, na sequência de acção com processo especial de declaração de falência que correu termos pelo ....º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Santo Tirso sob o nº ..../01, contra a mesma firma, instaurada por D.................... e outros.

Nestes autos de falência foram, pela Exmª Liquidatária Judicial da falida C..................... & Cª Lda, apreendidos todos os bens que integravam o imobilizado corpóreo da falida, quais sejam:
- Os constantes do supra aludido arresto efectuado pelo Tribunal de Trabalho de Valongo;
- Os constantes do “Auto de Arresto” efectuado pelo Tribunal de Trabalho de Santo Tirso, com cópia a fls. 71 ss.

Foram, entretanto, deduzidos por E...............-Confecções e Têxteis, Lda, Embargos de Terceiro, a correr termos no Tribunal de Santo Tirso sob nº ....-E/1, ao arresto decretado no âmbito do supra aludido processo nº ...../2001, com vista à suspensão dos efeitos da apreensão de tais bens (previamente arrestados nesse apenso nº ..../01) a favor da massa falida de C................. & Cª Lda.

Tais embargos foram recebidos por despacho de 11.06.2004 (com cópia a fls. 31 e verso destes autos de agravo - fls. 440 e verso dos autos principais a que respeitam), do seguinte teor:
“Atentas as conclusões do antecedente relatório pericial, devidamente fundamentado e fruto de demorado labor parece-nos (...), na sequência do já no despacho de fls. 185, bastante à indiciação do direito que se roga a embargante pelo que se dispensa a inquirição das testemunhas arroladas na petição inicial.
Assim, verificada que está, face a tal juízo oficiosamente determinado, a probabilidade séria de existência do direito de propriedade invocado pelo embargante, recebo os embargos, suspendendo os efeitos da apreensão de tais bens (previamente arrestados no apenso de que estes autos são dependentes) a favor da massa falida de “C.................... & Companhia, Lda”.
Após a entrada do requerimento inicial destes embargos em juízo foi efectuado acordo entre os liquidatários das massas falidas de C................... e de E............ no sentido de aquela autorizar a venda antecipada por este dos bens objecto de embargos.
Como tal parece-nos ter-se tornado inútil a apreciação do pedido de restituição provisória da posse formulado pelo embargante na petição inicial.
Sobre tal, ouçam-se, em 5 dias, ambas as partes.”

Não se conformando com este despacho que recebeu os embargos, suspendendo os efeitos da apreensão dos bens arrestados a favor da MASSA FALIDA DE C................. & COMPANHIA, LDA., representada pela Liquidatária Judicial F..................., veio esta interpor recurso de agravo do mesmo despacho, apresentando as suas alegações que remata com as seguintes

“CONCLUSÕES:
A. Para oposição mediante embargos de terceiro é suposto existir uma ofensa à posse ou qualquer direito incompatível com um acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens.

B. E o referido arresto, no momento, não atinge qualquer direito “substancial” da Embargante.

C. Sucede assim, que à data do recebimento dos autos (11-06-2004) não existia qualquer acto ilegal susceptível de ofender o alegado direito patrimonial.

D. Isto porque, por Douta Sentença de 6 de Fevereiro de 2002, já transitada em julgado, foi a recorrente, declarada falida.

E. Como existiam bens da falida no âmbito do processo laboral, foi requisitada a remessa dos autos, para efeitos apensação aos autos de falência (...../2001).

F. Tendo posteriormente, procedido-se à apreensão de todos os bens, previamente arrestados.

G. Visto que, a declaração de falência torna imediatamente exigíveis todas as obrigações do falido,

H. E com ela, extinguem-se os privilégios creditórios, passando a ser exigidos todos os créditos como comuns.

I. As arrestantes, B.................. e demais trabalhadoras, reclamaram os seus créditos no âmbito do processo falimentar.

J. Pelo que, desapareceram, supervenientemente as razões que fundamentaram o acto judicial - arresto.

K. E assim sendo, o arresto, judicialmente ordenado em 2001, não ofende qualquer direito da Embargante.

L. Actualmente, a existir algum direito sacrificado da Embargante, o que por mera hipótese académica se admite, é face ao processo de falência, mais concretamente, à apreensão de bens, procedida pela Digníssima Liquidatária Judicial, no âmbito das suas funções.

M. O que se prova, pela necessidade de no despacho a quo decretar-se a “suspensão dos efeitos da apreensão de bens”,

N. Mesmo contra a lei, que nos termos do artigo 351.º n.º 2 do Cód. de Proc. Civil determina a impossibilidade da dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no âmbito de processo de falência.

O. Que se não pode ser deduzida, não poderá, salvo o devido respeito por melhor opinião, ser recebida...

P. Por outro lado, o processo falimentar é dominado pelo principio da universalidade do procedimento, que impede que as acções pendentes contra o falido mantenham a sua autonomia relativamente à falência.

Q. É de facto, uma consequência inevitável do carácter colectivo e universal do processo falimentar, em fase de aglutinação de toda a vida patrimonial do falido no âmbito da falência (neste sentido, cfr. Pedro Macedo, in “Manual de Direito das Falências”, 1968, Vol. II, págs. 110 e segs.).

R. No caso de serem apreendidos bens a favor da massa falida, como foram, é possível o recurso ao direito de restituição ou separação desses bens, nos termos do artigo 201.º e 203.º do C.P.E.R.E.F.,

S. Ou, numa fase posterior, nos termos do artigo 205.º do C.P.E.R.E.F., por meio de uma acção de separação ou restituição de bens, proposta contra os credores e embora a lei não o diga expressamente, contra o falido.

T. Não pode, a presente acção ser vista autonomamente relativamente à falência, a Recorrente sempre terá, salvo o devido respeito por melhor opinião, que ser Absolutio ab instantia, dado que a forma de processo deixou de ser a própria, implicando a anulação de todo o processo por nada se poder aproveitar (cfr. Pedro Macedo, in ob. Cit., pág. 111).

U. Excepção esta, alteração superveniente da forma do processo, de conhecimento oficioso nos termos do artigo 495.º do Cód. de Proc. Civil e que implica a anulação de todo o processado, absolvendo-se consequentemente a recorrente da instância, nos termos do disposto nos artigos 199.º e al. b) n.º 1 do 288.º do Cód. de Proc. Civil.

V. No entanto, a recorrente defende que, a manter-se o despacho a quo viola-se ainda o principio de igualdade de direitos entre os credores da massa falida, nomeadamente entre as trabalhadoras arrestantes e demais credores da massa falida.

W. Visto que, só às primeiras será facultado o direito à defesa dos seus interesses, concretamente o exercício do contraditório.

Y. Ficando de fora todos os restantes credores que não podem defender as suas garantias patrimoniais/impedidos que estão de contestar.

Z. Pelo que, encontramo-nos face a um litisconsórcio necessário, de acordo com o artigo 205.º do C.P.E.R.E.F, 26.º e 28.º do Cód. de Proc. Civil, que fere o processo de ilegitimidade.

A. Por tudo o referido e devidamente fundamentado, para além do mais, parece à recorrente que prosseguir com a presente instância, salvo sempre melhor opinião, traduz-se na prática de um acto inútil,

B. Circunstância que a lei também não consente, uma vez que, não se vislumbra que a Embargante possa retirar qualquer proveito útil da decisão que venha a ser proferida no âmbito dos presentes autos.

TERMOS EM QUE, INVOCANDO-SE O DOUTO SUPRIMENTO DO VENERANDO TRIBUNAL, DEVERÁ SER REPARADO O AGRAVO E EM CONSEQUÊNCIA, REVOGAR-SE A DECISÃO RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE REJEITE OS EMBARGOS.
PORÉM,
VOSSAS EXCELÊNCIAS DIRÃO COMO FOR DE
JUSTIÇA”

Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão suscitada pela agravante reduz-se a saber se depois de apreendidos para a massa falida os bens da falida (C.................. & Companhia Limitada) - designadamente os constantes do arresto anteriormente efectuado--, podiam ou não, ser recebidos os embargos de terceiro ao citado arresto desses bens visando a suspensão dos efeitos daquela apreensão.

II. 2. FACTOS PROVADOS:
Os supra relatados.

III. O DIREITO:

Vejamos, então, das questões suscitadas nas conclusões das alegações do recurso.

depois de apreendidos para a massa falida os bens da falida (C............. & Companhia Limitada) - designadamente os constantes do arresto anteriormente efectuado--, podiam ou não, ser recebidos os embargos de terceiro ao citado arresto desses bens visando a suspensão dos efeitos daquela apreensão.

Como dissemos, a questão suscitada pela agravante reduz-se a saber se depois de apreendidos os bens da falida (C................. & Companhia Limitada - designadamente os constantes do arresto que havia sido efectuado no processo nº ...../01), podiam, ou não, ser recebidos os embargos de terceiro ao (citado) arresto desses bens, visando a suspensão dos efeitos daquela apreensão.
Quid juris?

Como resulta do estatuído nos arts. 1285º-1, CC e 351º CPC, os embargos de terceiro constituem o meio próprio para reagir ou evitar a realização de diligências judicialmente ordenadas que, por importarem a actual ou a eventual apreensão ou a entrega de bens, lesem ou possam vir a lesar a posse ou qualquer direito incompatível com essa actuação, de que seja titular quem não é parte na causa em que é ordenada tal diligência judicial.
Quais os actos de carácter judicial, concretos - externados sob a forma de despachos ou sentenças-- contra os quais são os embargos de terceiro, prima facie, meios de reacção?
Visam tais embargos reagir contra a penhora, a entrega judicial, o arresto - e já desde a sua configuração moderna, constante dos arts. 922º e 378º do CPC de 1876--, o arrolamento, a posse judicial, o mandado de despejo “ou qualquer outra diligência judicialmente ordenada de apreensão ou entrega de bens”
Conferem, portanto, os mencionados normativos um meio adequado para o respectivo titular reagir contra acto judicial que seja ofensivo da sua posse ou de qualquer direito incompatível com a realização de tal acto que compreenda a apreensão ou a entrega de bens, o que nos conduz à constatação de que um dos fundamentos de facto que justificam o deitar mão de tal incidente assenta na existência de diligência judicial ofensiva daquelas situações - de posse ou de qualquer direito incompatível com a realização de tal diligência.
Já há longos anos que o saudoso Prof. Alberto dos Reis escrevia que “o fundamento de facto dos embargos é a diligência judicial, que tenha privado, ou ameace privar, da posse o terceiro, possuidor”, mais adiantando que “a diligência judicial, ofensiva da posse, pode ser consequência: de sentença de condenação; de acto jurídico constitutivo de obrigação”, dando exemplos, entre o mais, para a 1ª espécie da penhora em execução de sentença e para a 2ª da penhora em execução fundada em título diverso de sentença, o arresto e o arrolamento (cfr. Processos Especiais, vol. 1, págs. 408 a 411.
Temos, assim, como certo que os embargos de terceiro hão-de fundamentar-se na existência de um diligência judicial, já efectuada ou apenas ordenada, ofensiva da posse ou de outro direito incompatível com a sua realização, de que seja titular o respectivo interessado, para tanto não bastando, de forma a caracterizar aquele fundamento, a possibilidade teórica ou abstracta de aquela diligência vir a efectivar-se sustentada, v.g., numa sentença condenatória.
Por isso, tem-se entendido que a diligência judicial fundamentadora dos embargos de terceiro é aquela que tenha a natureza executória e tenha sido ordenada judicialmente - ver, para além da já citada referência doutrinal, os Acs. desta Relação, de 10.2.92 e de 21.2.02, na base de dados do MJ.

Como é sabido, desde 1841 - após o início de vigência da Novíssima Reforma Judicial (decretada em 21.5.1841) - até 1 de Janeiro de 1997, os embargos de terceiro constituíram um fundamento de tutela da posse virados contra actos judiciais capazes de ameaçar ou perturbar - injustificada ou ilicitamente - os poderes de facto do terceiro possuidor da coisa, cuja apreensão fora judicialmente ordenada. A partir da reforma processual de 1995/1996, os embargos de terceiro passaram a poder fundar-se na titularidade do direito de fundo. Essencial é que aquela posse e este direito-- maxime, de propriedade ou direito real de gozo menor-- sejam incompatíveis com a futura transmissão para terceiros do bem penhorado, através de adjudicação ou venda.

Explanados estes princípios, voltemos, então, ao caso dos autos.
O que está em causa in casu é a realização de um arresto sobre bens em relação aos quais a embargante invoca um direito de propriedade. É o que resulta do despacho recorrido - ao dar-se como indiciado com suficiência bastante o dito direito de propriedade.
Assim sendo, em abstracto, estamos, de facto, em face de uma situação em que a lei (na actual redacção) permite a reacção através dos ditos embargos de terceiro - pois não há dúvida de que, a existir o dito direito de propriedade a favor da embargante sobre os ditos bens arrestados, o mesmo é incompatível com a realização ou o âmbito dessa diligência judicial, pois uma hipotética futura adjudicação ou venda dos bens arrestados é naturalmente incompatível com o aludido direito de propriedade.

Analisando a especificidade da situação sub judice, temos, porém, o seguinte:
Antes de mais, dir-se-á que, ao contrário do que sustenta a agravante, nos parece que à data em que foram recebidos os embargos de terceiro (11.06.2004) existia--e desde há muito tempo, aliás - um acto, judicialmente ordenado, a ofender o aludido direito patrimonial da embargante. Tal acto é precisamente o arresto, pois os bens da requerida (entretanto declarada falida - por sentença de 6.2.2002) C................ & Cª Lda. já tinham sido arrestados em 15.05 e 08.06, de 2001.

Acontece, porém, que os bens arrestados, por virtude da declaração de falência da agravante, foram - em conformidade com os artsº 175º a 177º do CPEREF-- apreendidos a favor da massa falida. E só depois de tal apreensão é que foram recebidos os ditos embargos de terceiro. O que altera completamente o rumo a dar à questão em apreço.

Então, a pergunta: foi, ou não, correcta a decisão do tribunal a quo recebendo os ditos embargos?
Cremos que não foi.

Não há dúvidas que com a declaração de falência se tornam exigíveis todas as obrigações do falido (ut artº 151º, nº1, CPEREF) e se extinguem os privilégios creditórios, em conformidade com o disposto no artº 152º do mesmo diploma legal.
Mas a questão em apreço - ao contrário, também, do que pretende a agravante - não pode ser vista (apenas) sob o ponto de vista dos interesses dos trabalhadores da falida, requerentes do arresto.
O que está em causa é o interesse, não dos credores da falida, mas, sim, de terceiros que se arrogam proprietários dos bens arrestados.

É certo que os trabalhadores da falida, por virtude da declaração da falência e subsequente apreensão dos bens para a massa falida, deixaram de ter receio de perda da garantia patrimonial do seu crédito - o que significa que em relação a eles o arresto que requereram e que se veio a efectivar deixou de ter interesse, face à dita apreensão dos bens a favor da massa falida.

Porém, não obstante esta verdade, o certo é que em relação ao terceiro/embargante, as coisas não podem ser vistas por esta forma: este continua receoso de perder o seu património, arrestado e, como tal, a ter interesse em defender o seu direito de propriedade ofendido por essa diligência judicialmente ordenada.

Acontece, porém, que, se é certo que a embargante, após a declaração de falência e posterior apreensão dos bens a favor da massa falida, continua a ter interesse em defender o seu direito de propriedade ofendido pelo dito arresto, não é menos certo que (já) não faz sentido prosseguir com o processo de embargos quando no próprio processo de falência pode a embargante defender o seu aludido direito.
Ou melhor: com a declaração de falência e posterior apreensão dos bens para a massa falida, tornou-se inútil o prosseguimento dos embargos de terceiro, uma vez que a própria lei que regula os processos especiais de recuperação da empresa e de falência (o citado CPEREF) prevê um meio próprio para que terceiros possam defender o que lhes pertence, afastando este património do âmbito falimentar.

Efectivamente, o artº 201º do CPEREF prevê nos artsº 201º a 203º, respectivamente, a “restituição e separação de bens”, a “reclamação de direitos próprios, estranhos à falência” e a “restituição ou separação de bens apreendidos tardiamente ” - prevendo, ainda, o artº 204º a “entrega provisória de bens móveis” e o artº 205º a “verificação ulterior de créditos ou de outros direitos”.

Assim, e em especial, prevê-se no artº 201º, nº1, al. c), designadamente, a tutela de terceiros, que tenham visto bens seus indevidamente apreendidos para a massa (ver, sobre este ponto, CPEREF, Anotado, de Carvalho Fernandes e João Labareda, anotação ao artº 201º), dispondo-se no corpo do nº 1 desse normativo que são aqui aplicáveis “as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos”.
E no dito artº 205º prevê-se mesmo a possibilidade de reconhecimento do direito à restituição de bens, na sequência de pedido formulado após o prazo geral das reclamações.

Assim sendo, efectivamente, não faz sentido prosseguir com um processo de embargos quando um lei especial prevê mecanismos de defesa dos direitos que por via dos mesmos embargos se visavam assegurar.

Daqui que razão assista à agravante quando refere que mal andou o despacho a quo quando, após receber os embargos, suspende os efeitos da apreensão dos bens apreendidos para massa falida e que tinham sido previamente arrestados a favor da dita massa falida de “C................... & Companhia Lda”.
Como podia suspender-se os efeitos dessa apreensão quando-- pelo que se disse-- nem sequer deviam ter sido recebidos os embargos?

Como doutamente se escreveu no Ac. do STJ de 26.06.2001, Col. Jur., STJ, Ano IX, Tomo II (2001), a pág. 137, “Na verdade, não podem embargar de terceiro todos aqueles a quem a lei confere a possibilidade de fazerem valer os seus direitos por outra via- quer na execução, quer na falência.”
É a situação sub juidice.
Diga-se, aliás, que igual tratamento teríamos - como também é referido no dito Acórdão do STJ -- se estivesse em causa a apreensão de uma coisa sobre a qual o “candidato” à dedução dos embargos de terceiro tivesse, não já um direito de propriedade sobre a coisa, mas, v.g., um simples direito de retenção: “o que lhe assiste é a possibilidade de reclamar o seu crédito e de fazer valer a sua garantia real, para ser pago preferencialmente pelo produto da venda (cfr., por todos, Miguel Teixeira de Sousa, A Penhora de Bens na Posse de Terceiros”, in Ver. da Ordem dos Advogados, Anon5º, Abril de 1991, pág. 83; F. Amândio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 2ª ed., Almedina, 2000, pág. 212; e J. P. Remédio Marques, “Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto”, Almedina, 2000, pág. 322 e 331).

É bom que se diga que - ao contrário do que pretende fazer crer a agravante-- não está aqui em causa uma questão de violação do princípio de igualdade de direitos entre credores da massa falida, nomeadamente das trabalhadoras arrestantes e dos demais credores.
Está simplesmente em questão a possibilidade de um terceiro, que se arroga proprietário de bens apreendidos para a massa falida (pouco importando já o facto de ter havido prévio arresto dos mesmos por quem quer que seja), poder vir defender os seus invocados direitos. Neste domínio há plena igualdade: quem quer que seja que veja os seus interesses ou direitos indevidamente atingidos pela apreensão de bens para a massa falida, pode, em igualdade de circunstâncias, vir defendê-los através dos mecanismos previstos nos ditos arts 201º a 205 do CPEREF.
Quod erat demonstrandum!

E daqui que seja de todo despida de sentido-- até porque deslocada do que aqui nos ocupa-- a “tese” do “litisconsórcio necessário”.

Numa coisa parece, sem dúvida, assistir razão à agravante: prosseguir a instância dos embargos traduz-se na prática de um acto inútil, que a lei expressamente censura (artº 137º CPC). E o porquê desta afirmação cremos ter ficado já sobejamente explicado: o CPEREF prevê meios explícitos e claros para a embargante defender os seus supra apontados direitos.

A posição ora sustentada é igualmente defendida in Código de Processo Civil Anotado, de Abílio Neto, 14ª ed., em anotação ao artº 351º onde - a respeito, portanto, dos embargos de terceiro--, refere que “a restituição e separação de bens no âmbito do processo especial de recuperação da empresa e de falência rege-se pelo disposto nos arts. 201º e ss. do CPEREF,...”.
Entendimento este, aliás, sufragado no domínio do anterior artigo 1037º CPC - onde a função dos embargos de terceiro estava limitada à defesa da posse, ofendida por qualquer diligência ordenada judicialmente (designadamente penhora, arresto, arrolamento, posse judicial avulsa e despejo), e onde estava arredado ao embargante (como acontece com o actual artº 351º CPC) defender, além da dita posse, qualquer outro direito incompatível com a realização da diligência judicial.
Assim, podem ver-se, v.g., os Acs. da Rel. de Lisboa, de 24.1.92 e 17.11.92, no site da DJSI, Docs., nºs 0058341 e 0058361, onde se escreveu, respectivamente:

“Face ao disposto no artº 1037º-1 do CPC,
O processo especial de embargos de terceiro não é o meio próprio para reagir contra uma apreensão de bens em processo de falência, tida por ilegal.
O pedido de restituição de bens indevidamente apreendidos para a massa falida deve ser fito através do processo previsto nos arts. 1218º e segs. do citado Código.
[.....................]” - hoje arts. 1188º ss do CPEREF, salientando-se que o actual artº 1201º deste diploma corresponde, com ajustamentos, fundamentalmente de redacção, ao artº 1237º do C.P.Civil, em específico a al. c) do nº 1 que igualmente prevê a reclamação para separação da massa dos “bens de terceiro que hajam sido indevidamente apreendidos, e bem assim quaisquer outros, dos quais o falido não tenha a plena e exclusiva propriedade,...”

“I. Em processo de falência, a restituição de bens não pode ser pedida em embargos de terceiro, mas em processo de reclamação.
[...................]”.

Procedem, como tal, no essencial, as conclusões do agravo.

CONCLUINDO:
Conforme entendimento que já vingava no domínio do anterior artigo 1037º-1, do CPCiv, o processo especial de embargos de terceiro não é o meio próprio para reagir contra uma apreensão de bens em processo de falência, tida por ilegal, uma vez que a lei que regula os processos especiais de recuperação da empresa e de falência (CPEREF) prevê um meio próprio para que terceiros possam defender o que lhes pertence, afastando o seu património do âmbito falimentar.
Como tal, com a declaração de falência e posterior apreensão dos bens para a massa falida, torna-se inútil o prosseguimento de embargos de terceiro ao arresto desses bens.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao agravo e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que rejeite os embargos.

Sem custas.

Porto, 16 de Dezembro de 2004
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Raínho Ataíde das Neves