Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0635473
Nº Convencional: JTRP00039740
Relator: TELES DE MENEZES
Descritores: ACÇÃO POPULAR
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP200611160635473
Data do Acordão: 11/16/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 693 - FLS 37.
Área Temática: .
Sumário: Estabelece-se na LAP uma ampla legitimidade ao reconhecer-se o direito de acção popular a qualquer cidadão, a associações e fundações defensoras dos interesses em causa, independentemente de terem interesse directo na demanda, e ainda a autarquias locais relativamente a interesses cujos titulares residam na área de circunscrição daquelas, sendo de registar o facto de se ver consagrada uma tríplice legitimidade: individual, do cidadão; colectiva, a cargo das associações e fundações; e institucional, na esfera das autarquias e, de modo restrito, do Mº Pº.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B………., casada, intentou a presente acção popular, agora com processo ordinário contra C……….. e marido D………., pedindo:
a) Que seja reconhecida a natureza de caminho público, e consequentemente a dominialidadade pública do caminho identificado nos presentes autos, restituindo-se, assim, à posse pública dos munícipes;
b) Que seja considerada abusiva, ilícita e não titulada, a apropriação por parte dos réus do caminho em questão, identificado nos autos;
c) Que sejam os réus condenados a restituir ao domínio público o caminho em questão, demolindo o muro em betão e blocos de cimento que erigiram nas extremas do caminho público em questão e retirando o portão de ferro que colocaram na extremidade de tal muro, de modo a colocá-lo na extrema do seu prédio, no local onde desde sempre se encontrou implantado.
Alega factos dos quais extrai a dominialidade pública do caminho, bem como factos imputáveis aos réus que são violadores dessa dominialidade.

Os réus contestaram, impugnando o alegado, invocando que a autora não cumpriu os requisitos exigidos por lei constitutivos dos pressupostos de participação procedimental, invocando a ilegitimidade do réu e requerendo o incidente de intervenção da Junta de Freguesia de ………. .

Replicou a autora, pugnando pela improcedência das excepções, e terminando como na petição inicial.
Por despacho de fls. 133 foi admitida a intervenção principal provocada da Junta de Freguesia de ………. .

II.
Proferiu-se despacho saneador, onde se julgou improcedente a invocada excepção de ilegitimidade do réu; e se entendeu que se verifica estarem cumpridas todas as formalidades exigidas nos arts. 2º, 13º, 14º, 15º e 17º da Lei nº 83/95, de 31 de Agosto. Mais se fixou a matéria assente e a base instrutória.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que decidiu:
a) Declarar a natureza de caminho público, e consequentemente a dominialidadade pública do caminho identificado nos presentes autos, restituindo-se, assim, à posse pública dos munícipes.
b) Considerar abusiva, ilícita e não titulada, a apropriação por parte dos réus do caminho em questão, identificado nos autos.
c) Condenar os réus a restituir ao domínio público o caminho em questão, demolindo o muro em betão e blocos de cimento que erigiram nas extremas desse caminho público e retirando o portão de ferro que colocaram na extremidade de tal muro, de modo a colocá-lo na extrema do seu prédio, no local onde desde sempre se encontrou implantado.

III.
Recorreram os RR., concluindo como segue a sua alegação:
1. A principal discordância com o decidido prende-se com a apreciação da prova feita em julgamento e as consequentes respostas aos quesitos.
2. É que estas respostas não traduzem fielmente o teor dos depoimentos das testemunhas, nem apreciam criticamente as divergências resultantes destes depoimentos.
3. Os recorrentes entendem que a decisão da matéria de facto é incorrecta no que tange às respostas dadas aos quesitos 3.º, 13.º, 19.º, 20.º, 22.º, 23.º, 24.º, 26.º, 27.º, 30.º, 31.º, 33.º, 34.º, 36.º, 37.º, 38.º, 40.º, 53.º, 54.º, 55.º, 56.º, que devem ser alteradas.
4. Por outro lado, em sede de alegações de direito, os RR. invocaram que a acção não reunia todas as condições para a sua procedência, pois sendo esta uma acção popular, os AA. não demonstraram que cumpriram a exigência da exposição circunstanciada ao respectivo órgão autárquico titular do direito (nos termos do disposto no art. 365.º do Cód. Adm.).
5. Esta questão não foi apreciada pelo julgador, verificando-se a nulidade prevista no art. 668.º/1-d) do CPC.
6. Mesmo que se entenda que não deveria ter sido apreciada esta questão, não se poderá deixar de verificar que os AA. não cumprem todas as condições da acção popular.
7. Quanto aos restantes requisitos de procedência da acção, importa considerar que, para que um caminho seja considerado público, deverá reunir as seguintes características: uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais, afectação à utilidade pública, ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau de relevância; características que o caminho não reúne.
8. O caminho em causa não tem sido utilizado pelo público desde tempos imemoriais, pois, quando muito, era usado pelo público há mais de 50 anos.
9. Mesmo que se entenda que está provado um uso desde tempos imemoriais não se poderá considerar tal uso destinado à satisfação de fins de utilidade pública comum relevantes.
10. Para se decidir da relevância dos interesses públicos, há que ter em conta o número normal de utilizadores e a importância que o fim visado tem para estes utilizadores.
11. Embora se possa admitir um número elevado de utilizadores, há que considerar que o fim visado não tem grande relevância para os mesmos (com excepção dos AA. que confrontam com o caminho em causa).
12. Pois sendo quer as zonas a sul e nascente dos prédios em questão e o ribeiro (que hoje já não existe) servidos por outra estrada (mesmo nos tempos antigos) que hoje se encontra alcatroada, a única finalidade do caminho em causa era colocar roupas a secar e a corar ao sol e dar acesso aos prédios dos AA. e do R. Finalidade que não pode ser considerada relevante.
Pedem a revogação da sentença.

A A. contra-alegou, pedindo a confirmação do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

IV.
Factos considerados provados na sentença:
1) No ………., freguesia de ………., concelho de Vila Nova de Famalicão, existe um prédio urbano constituído por edifício destinado a habitação (A).
2) Tal prédio confronta do Norte com linha férrea, do Nascente com C………. (B).
3) O prédio referido em "1" e "2" encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob os artºs. 51.º e 349.º (1.º).
4) E descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o nº. 38.593 (2.º).
5) E confronta do Sul e Poente com caminho público (3.º).
6) O prédio a que se vem de aludir foi adquirido pela autora por doação titulada por escritura pública, lavrada a 15 de Fevereiro de 1980, exarada de fls. 96, do livro de escrituras Diversas B-98 do Primeiro Cartório Notarial de V. N. Famalicão (4.º).
7) Quer por si, quer por antepossuidores e anteriores proprietários, há mais de 5, 10, 15 e 20 anos que a autora está na posse do indicado prédio, aí habitando ou arrendando-o, colhendo os frutos e rendas, venerando a casa e quintal, pagando as respectivas contribuições, sempre à vista de todos, nomeadamente vizinhos, sem oposição ou embaraço de quem quer que seja, e na convicção de exercer um direito próprio, sem prejudicar ninguém, e em tudo se comportando como dona e por todos como tal sendo considerada, sendo que a sua posse sempre foi pública, pacífica, contínua e de boa fé (5.º).
8) Pretendendo submeter o prédio atrás referido ao regime de propriedade horizontal instruiu a autora pedido de viabilidade nos serviços camarários da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, pedido esse que foi autuado com o numero de processo …./94 (6.º).
9) Tendo obtido merecimento a viabilidade solicitada, requereu a Autora que a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão lhe certificasse a existência de condicionantes legais e fiscais para a submissão de tal prédio ao dito regime de propriedade horizontal (7.º).
10) Posteriormente ao deferimento da viabilidade pretendida, iniciou então a autora todos os trâmites processuais para a obtenção da respectiva licença, elaborando os respectivos projectos para instruir o pedido de licenciamento (8.º).
11) Previa esta a existência de quatro fracções autónomas, correspondentes a outras tantas habitações, sendo que cada uma delas ficaria servida pelo logradouro respectivo (9.º).
12) O acesso ao referido logradouro far-se-ia por caminho interior paralelo a toda a confrontação nascente do prédio em causa (10.º).
13) Sendo que, o seu acesso para a via pública se faria, por seu turno, por entrada sita no topo sul do prédio (11.º).
14) Ou seja, directamente conducente ao caminho existente no topo ou extrema sul do prédio da autora (12.º).
15) Atendendo a que, conforme referido, a submissão ao regime de propriedade horizontal ficou condicionada à implantação de uma entrada para a via pública (13.º).
16) A autora no seguimento da deliberação camarária requereu o licenciamento para a abertura de um portão para o referido caminho existente a sul do prédio que se vem de referir (14.º).
17) O licenciamento da referida entrada carral, foi deferido (15.º).
18) E, em consequência, foi emitido o alvará de construção nº. ……. (16.º).
19) No seguimento de tal alvará, procedeu pois a autora à construção do portão destinado a entrada carral, portão esse implantado na extrema sul do seu prédio, e que fazia passagem para o caminho aí existente (17.º).
20) O caminho que se vem de referir, confronta em toda a sua extensão com a extrema sul do prédio da autora, tendo o seu inicio noutro caminho sito a poente, vai desembocar no prédio pertença dos réus, conforme melhor se constata por planta junta aos autos (18.º).
21) O caminho em referência, desde há tempos imemoriais e pelo menos há mais de cinquenta anos tem sido usado pelo público em geral, e em particular por todos quantos pretendem dirigir-se para prédios limítrofes e outras zonas a sul e nascente dos prédios em questão (19.º).
22) Era o caminho em causa utilizado por todos quantos se deslocavam para um ribeiro existente a nascente, onde era uso proceder-se à lavagem de roupas por gentes de E………. (20.º).
23) Nesse mesmo caminho, era uso colocar-se roupas a secar e a corar ao sol (21.º).
24) Tal caminho, sempre foi referenciado como caminho público, e por todos como tal considerado e utilizado (22.º).
25) Sempre foi referenciado como caminho público ou caminho vicinal, sendo exemplo dessa circunstância a menção do mesmo, quer em escrituras públicas, quer em extractos de inscrições registrais (23.º).
26) Vêm os réus ocupando abusivamente o caminho em questão (24.º).
27) A ré mulher erigiu, no caminho que se vem de referir, construção composta por muro e portão (25.º).
28) Os réus prolongaram a extrema sul do seu prédio (26.º).
29) Fazendo-a deslocar, nessa mesma direcção cerca de quatro metros (27.º).
30) Seguidamente, fizeram os réus erigir na delimitação sul do dito caminho, muro constituído por blocos de cimento, assente em estrutura de betão armado, com a largura de cerca de quarenta centímetros e um comprimento superior a 20 metros, contados desde o seu inicio até ao seu topo poente (28.º).
31) Efectuado que foi tal muro, implantaram os réus um portão de ferro que no seu topo norte encosta ao muro existente na extrema sul do caminho (29.º).
32) Com a construção do muro a que se vem de aludir, e com a implantação do referido portão, ficaram pois os réus a ocupar o caminho em questão (30.º).
33) Integrando-o no seu prédio (31.º).
34) Vedando assim o seu acesso a quem quer que seja, e nomeadamente a todos aqueles que o utilizavam quando se deslocavam para nascente (32.º).
35) Por outro lado, ao vedar assim o terreno, impedem os réus que a autora continue a ter acesso ao caminho em questão (33.º).
36) Acesso esse que sempre teve, através de portões colocados no muro que delimita o seu prédio a sul (34.º).
37) Com a construção do muro e implantação do portão, ficou a autora, impossibilitada de aceder ao seu prédio, pelos portões existentes da extrema sul (35.º).
38) Acessibilidade essa que constitui condicionante à constituição da propriedade horizontal que a autora havia requerido para o prédio que é sua pertença (36.º).
39) Assim também todos aqueles que, de forma ininterrupta, e há mais de cem anos, se serviam do dito caminho, para se deslocarem para nascente, se vêem ora impossibilitados de o fazer (37.º).
40) O caminho aludido, desde sempre esteve afecto ao uso público (38.º).
41) Como se verifica melhor da planta topográfica, constante do doc. nº. 2 junto com a contestação, o prédio da ré está totalmente isolado em relação aos restantes:
a) De um lado, há a linha de caminho de ferro;
b) Do outro lado, é o prédio da Autora;
c) Do outro lado, é o prédio do vizinho (41.º).
42) Atentas estas circunstâncias e ainda o facto do prédio da autora ter tido desde há mais de 20, 30 e 50 anos um muro divisório junto a tal caminho (42.º).
43) O prédio da autora sempre teve um muro do lado do mesmo caminho (45.º).
44) E o acesso ao exterior também se fazia através de uma abertura do lado sul do prédio da autora (46.º).
45) Há uns três anos, mais ou menos, a autora procedeu à construção de uma abertura em tal muro (47.º).
46) Pretendendo passar através de tal caminho (48.º).
47) Pretendendo esta construir aí um portão (50.º).
48) A ré construiu um muro, tapando a mesma abertura feita pela autora (51.º).
49) Existe um canteiro encostado ao lado exterior do muro do lado sul do prédio da autora (52.º).

Questões levantadas pelos apelantes no seu recurso:
\ Erro na decisão da matéria de facto;
\ Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
\ Falta de condições para a acção popular;
\ Inexistência dos requisitos necessários a que o caminho seja considerado público.

1.
Comecemos pela análise da questão da falta de condições para a acção popular, já que, a verificar-se, pode acarretar que se não deva prosseguir com a apreciação das demais questões suscitadas.
Invocando o disposto no § 1.º do art. 369.º do Cód. Administrativo, os apelantes entendem que a apelada não demonstrou que cumpriu a exigência de exposição circunstanciada ao respectivo órgão autárquico titular do direito, o que não consiste apenas num pressuposto processual, mas numa condição da acção.
Esta problemática havia por eles sido suscitada na alegação de direito oferecida nos termos do disposto no art. 657.º do CPC e foi objecto de análise na sentença, onde se decidiu dela não se conhecer, por dever ter sido oportunamente invocada na contestação, por força do princípio da preclusão ou da concentração da defesa.
Há, pois, que definir qual a natureza de tal questão, em ordem a apurar se operou aquele princípio ou se, por se tratar de excepção dilatória, de conhecimento oficioso, deve ainda ser tratada – art. 495.º do CPC.
Ora, o prévio condicionalismo positivo e negativo, que os apelantes invocam no sentido de dele depender o accionamento em causa, traduz-se em condições legais de legitimidade ad causam, pelo que a questão que suscitam é dessa natureza (STJ 18.5.06 proc. 06B1468 www.dgsi.pt), configurando uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso do tribunal (art. 495.º do CPC), logo cognoscível nesta fase.
Mas será que se torna necessário o cumprimento dessa formalidade prévia de entrega ao corpo administrativo de uma exposição circunstanciada acerca do direito que se pretendia fazer valer e dos meios probatórios de que se dispõe para o tornar efectivo e ainda o decurso do período de três anos de inactividade desse mesmo corpo administrativo?
Segundo Mariana Sotto Maior, Documentação e Direito Comparado, n.ºs 75/76, pág. 251, http://www.pt/actividade-editorial/pdfs, o Cód. Adm. de 1940 consagra três disposições referentes ao direito de acção popular, nas modalidades de acção popular supletiva (art. 369.º) e acção popular correctiva (art.s 822.º e 826.º).
Nesta última, considera a mais recente doutrina estar-se perante a atribuição de um direito subjectivo, de natureza cívica e com carácter político, consistente no geral e objectivo interesse do indivíduo na legalidade, sendo sujeito passivo o ente administrativo; ao passo que a acção popular substitutiva é considerada unanimemente pela doutrina um caso de substituição processual, no qual o agente prossegue em seu nome, risco e interesse próprio o direito de outra entidade, configurando-se uma forma de exercício privado de funções públicas.
Posto isto, podemos concluir que se não trata de uma acção popular correctiva, só podendo enquadrar-se na outra espécie.
Mas terá de chamar-se à colação o Cód. Administrativo?
Para chegarmos a uma conclusão acertada é necessário ver em que termos a A. baseou a acção e que pedido formulou.
Ora, a A. não estriba a acção no direito da autarquia ao caminho cuja dominialidade pública pede seja reconhecida, mas no direito do público em geral, entre o qual se inclui, a aceder ao mesmo. Está em causa, pois, um interesse difuso de determinada população utilizar um determinado caminho, o que, segundo afirma, foi posto em causa pelos RR. com a vedação do correspondente espaço. Do mesmo modo, pede a restituição ao domínio público, isto é, ao uso de todos, do caminho em questão.
Por conseguinte, a A. não se substitui à autarquia no exercício de um direito desta, mas invoca um interesse difuso para a propositura da acção.
Carlos Adérito Teixeira, Acção Popular, Novo Paradigma – http://www.diramb.gov.pt/data/basedoc/TXT, afirma que se estabelece na LAP uma ampla legitimidade ao reconhecer-se o direito de acção popular a qualquer cidadão, a associações e fundações defensoras dos interesses em causa, independentemente de terem interesse directo na demanda, e ainda a autarquias locais relativamente a interesses cujos titulares residam na área de circunscrição daquelas, sendo de registar o facto de se ver consagrada uma tríplice legitimidade: individual, do cidadão; colectiva, a cargo das associações e fundações; e institucional, na esfera das autarquias e, de modo restrito, do Mº Pº.
E continua que relativamente à legitimidade do cidadão pode dizer-se que ela constitui o polo nuclear da legitimidade, em coerência com a tradição do instituto, e ainda em obediência ao princípio de que a tutela subjectiva dos interesses individuais deve estar na disponibilidade dos seus titulares. O modelo português aproxima-se do sistema da common law ao eleger a legitimidade individual (representative plaintiff) como pedra angular, e não assente numa legitimidade institucional.
Desta foram, entendemos que não havia que dar cumprimento às exigências do § 1.º do art. 369.º do Cód. Adm.

2.
Passemos à análise da decisão da matéria de facto.
Insurgem-se os apelantes contra a resposta ao quesito 3.º, por encerrar uma questão de direito e por o art. 646.º/4 do CPC dispor que se têm por não escritas as respostas do tribunal sobre questões dessa natureza.
Cremos que lhes assiste razão.
O que está em causa na acção é a dominialidade desse caminho. E assim sendo, a resposta a um quesito que encerre a pergunta directa sobre se o mesmo é público, parece que resolve o problema completamente, dispensando a prova dos demais factos.
Ora, os quesitos não podem encerrar questões de direito nem conclusivas, sendo que as conclusões e soluções jurídicas hão-de resultar da prova de factos concretos.
Nem se diga que a expressão “caminho público” é já correntemente entendida pelo comum das pessoas como matéria de facto, porque nestes autos não se pode admitir isso, na medida em que constitui o cerne da decisão pretendida.
Mas o que deve ter-se como não escrito na dita resposta?
A formulação do quesito é esta:
«E confronta de sul e poente com caminho público?»
Ante o que foi dito, só tem de eliminar-se o qualificativo “público”, porque essa conclusão tem de extrair-se das respostas a outros quesitos, como sejam os quesitos 18.º a 23.º.

Também se não conformam os apelantes com a resposta ao quesito 13.º, por entenderem que tal facto só de podia provar documentalmente.
O quesito tem esta formulação:
«Atendendo a que, conforme referido, a submissão ao regime de propriedade horizontal ficou condicionada à implantação de uma entrada para a via pública?»
Admite-se que assista razão aos apelantes. No entanto, só deve censurar-se a resposta a quesitos que sejam relevantes para a decisão da causa.
Ora, o que está em causa nos autos e justifica a acção popular é a dominialidade do caminho a sul do prédio da A., sendo que saber o que a A. pretende fazer no seu prédio e se quer abrir uma saída para o dito caminho é manifestamente desinteressante para a decisão fulcral sobre a natureza do terreno.
Assim, porque é irrelevante, não se sindica a mencionada resposta.

Discordam os apelantes da resposta ao quesito 19.º.
O quesito é o seguinte:
«O caminho em referência, desde há tempos imemoriais e pelo menos há mais de cinquenta anos tem sido usado pelo público em geral, e em particular por todos quantos pretendem dirigir-se para prédios limítrofes e outras zonas a sul e nascente dos prédios em questão?»
Deu-se-lhe a resposta «Provado».
A primeira razão da discordância tem a ver com a expressão “desde há tempos imemoriais”, que deve reportar-se a um tempo que ultrapassa a memória dos homens, quando nenhuma das testemunhas terá referido o uso do caminho pela geração anterior.
Efectivamente, a testemunha F………. referiu que conhece o local desde 1947, que a mãe da A. ia lavar ao ribeirinho, tendo pedido para abrir um portão pequeno, para uma pessoa, para esse efeito, e que ele próprio esteve deitado no espaço onde se fazia estendal muitas vezes; G………., de 75 anos, disse que já a mãe dela ia lavar ao ribeirinho e depois da mãe passou a ir ela própria, e que toda a gente ia lavar ao ribeiro, estendia lá roupa e iam para lá com ovelhas; H………., que tem 62 anos, disse conhecer a casa da A. há 40 e tal anos, pensando que o caminho a sul da mesma era público, porque as pessoas estendiam lá roupa e estava livre, dizendo as pessoas da geração dela e da anterior que aquilo era maninho; I………. mora no prédio da A. para cima de há 17 anos, tem 69 anos e conhece o local desde a infância, afirmou que as pessoas punham ali a roupa a secar nuns arames, desde que se lembra, o que também era feita pela mulher dele; J………., de 68 anos, foi trabalhar para casa da A. com 12 anos e depois passou a inquilina da mesma, disse que as pessoas passavam no local e estendiam roupa a corar do lado do muro da A. e do outro lado, sendo o caminho no meio; L………., de 50 anos, disse que a mãe lavava toalhas e as estendia no dito caminho, na zona onde hoje se situam o muro e portão mandados fazer pelos RR., e que as pessoas não passavam no caminho para ir lavar, porque para isso iam por outro, apenas nele estendendo a roupa; M………., que está há 36 anos em E………., viu as mulheres a colocar uma corda para estender roupa no local.
Assim, a memória mais antiga concretizada não ultrapassa os 75 anos da testemunha G………. .
Pelo que a expressão “desde tempos imemoriais e pelo menos há mais de cinquenta anos” tem de ser substituída por “pelo menos há 75 anos”.
Entendem os apelantes que na mesma resposta se refere incorrectamente que o caminho era usado pelo público em geral, quando o seria, quando muito, pelas gentes de E………. que pretendiam lavar roupa no ribeiro então existente, do mesmo modo que não dava acesso a prédios limítrofes e a outras zonas a sul e nascente, mas apenas ao prédio dos RR.
Pretendem que a resposta seja negativa.
Quanto ao público em geral parece-nos que a especificidade da resposta não permite que se entenda que é mais do que a gente de E………., pelo que assim deve manter-se.
Quanto ao acesso aos prédios limítrofes e a outras zonas a sul e nascente não foi feita prova.
A tónica das testemunhas dirigiu-se a estender-se no local roupa a corar e a secar. Entre elas há mesmo divergências quanto à utilização do caminho para se aceder ao ribeiro, pois houve quem mencionasse uma ribanceira que o dificultava e ainda a existência de um caminho pavimentado, ao contrário deste, que vinha da linha férrea e dava acesso ao ribeiro. Por outro lado, ninguém disse que dava acesso a outras propriedades que não fosse a dos RR., mesmo no tempo dos anteriores proprietários.
Assim, F………. referiu que os anteriores donos do prédio hoje dos RR., quando ainda não havia casa aí construída, que segundo ele foi erigida na década de 60, passavam com o carro de gado e pisavam a roupa; G………. disse que antes da casa ter sido construída (referiu antes da Ré construir, mas sabemos que a Ré se limitou a comprar a casa de que era inquilina) só entravam carros de bois para o campo; H………. disse que a vedação dos RR. era mais atrás e referiu a passagem do carro de bois do homem que trabalhava o campo dos anteriores proprietários do que hoje é dos RR.; I………. referiu que o terreno de que os RR. se apoderaram só dava entrada para o campo de lavoura existente antes da feitura da casa, embora afirmasse que toda a gente utilizava esse espaço para secar roupas; J………. disse que só ia ao campo, hoje dos RR., o homem que o fazia, mais ninguém, e da parte onde estava colocada a cancela antiga para cá muita gente ia estender roupa, subindo a ribanceira do ribeiro ou vindo à volta pela estrada; L………., como já se referiu, disse que as pessoas apenas iam ao dito caminho para estender roupa; M……… disse que as mulheres utilizavam as escadinhas feitas em terra para vir do ribeiro pôr a roupa, em vez de irem à volta; as testemunhas dos RR. afirmaram que apenas se acedia por esse local ao prédio dos RR., embora a própria testemunha N………., antiga dona do imóvel hoje dos RR., que já pertencera a seus pais e avós, tenha dito que as pessoas estendiam ali roupa, dando o pai ordens aos criados para que avisassem as mulheres para as tirarem quando queriam passar com os bois, a fim de a não pisarem.
Assim, a resposta não pode ser negativa, mas deve ser alterada nestes termos:
«O caminho em referência, pelo menos há 75 anos, tem sido usado pelo público em geral para estender roupas e para aceder ao ribeiro onde as mesmas se lavavam, e pelos donos do prédio hoje dos RR. para entrar e sair do mesmo.»

Querem os apelantes que se altere a resposta ao quesito 20.º, em termos de ficar a constar «Provado apenas que existiu um ribeiro a sul, onde era uso proceder-se à lavagem de roupas por gentes de E……….».
O quesito foi feito desta forma:
«Era o caminho em causa utilizado por todos quantos se deslocavam para um ribeiro existente a nascente, onde era uso proceder-se à lavagem de roupas por gentes de E……….?»
A resposta foi positiva.
Como já dissemos, as testemunhas referiram que umas pessoas utilizavam o caminho para ir para o ribeiro, mas esse acesso não era fácil, pois até havia uns degraus feitos na terra da ribanceira, e que outras utilizavam o caminho pavimentado que vinha da linha férrea.
Por isso, a resposta deve ser: «Provado apenas o que consta da resposta ao quesito 19.º».

Relativamente aos quesitos 22.º e 23.º, os apelantes insurgem-se novamente contra o uso da expressão “caminho público”, que entendem dever considerar-se não escrita.
Vejamos o teor desses quesitos:
22.º. «Tal caminho, sempre foi referenciado como caminho público, e por todos como tal considerado e utilizado?»
23.º. «Sempre foi referenciado como caminho público ou caminho vicinal, sendo exemplo dessa circunstância a menção do mesmo, quer em escrituras públicas, quer em extractos de inscrições registrais?»
Ambos foram julgados provados, o que os apelantes não contestam, mas apenas o que foi dito quanto à aceitação da mencionada expressão.
Aqui não assiste razão aos apelantes. É que, diversamente da pergunta directa sobre a natureza do caminho, como acontecia no quesito 3.º, o que nestes está em causa é algo diferente, a saber, a forma como era considerado e referido.
Por isso, não havia maneira de se formularem as perguntas de outro modo.
No entanto, face à resposta ao quesito 19.º, o advérbio de tempo “sempre” tem de ser alterado por “pelo menos há 75 anos”, para que não haja contradição entre as respostas.

Relativamente ao quesito 24.º, os apelantes dizem, com razão, que a utilização do advérbio “abusivamente” é conclusiva. Se a ocupação dos RR. é ou não dessa natureza tem de decorrer de outros factos.
Por isso, a resposta passará a ser:
«Vêm os réus ocupando o caminho em questão».

Os quesitos 26.º, 27.º, 30.º e 31.º tiveram respostas positivas e isso não merece a concordância dos apelantes.
O que se pergunta neles é se os RR., ao deslocarem o portão e erigirem o muro nas condições em que o fizeram, prolongaram a estrema do seu prédio, ocupando o dito caminho.
E os apelantes acham que as testemunhas dos AA. sabem menos do que as dos RR., dado que logo a primeira destas foi a anterior dona do prédio hoje dos RR., tendo deposto de forma convincente que o seu prédio vinha ainda mais para fora do que o local onde os RR. colocaram o portão, já que o pequeno portão existente no muro da A. foi aberto com a autorização do pai dela testemunha, que era dono do prédio antes dela, sendo a estrema definida por uma oliveira que se cortou quando da construção da casa que vendeu aos RR., para passarem os camiões.
Assim foi de facto.
Há, na verdade, manifesta oposição entre os depoimentos das testemunhas de cada uma das partes e até nos pareceu que a anterior proprietária do que é hoje dos RR. fez um depoimento muito convincente.
No entanto, também é verdade que se não podem esquecer os depoimentos das testemunhas dos AA., que disseram que se ia abertamente estender a roupa no local em questão.
Ora, torna-se necessário fazer algumas considerações sobre o que se tem doutrinado e decidido sobre o problema da alteração da decisão da matéria de facto.
O acórdão da Rel. de Coimbra de 3.10.2000, CJ XXV, 4, 27, decidiu que a garantia do duplo grau de jurisdição no que respeita à reapreciação da decisão da matéria de facto, quando tenha havido gravação, não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz da 1.ª instância, e na formação dessa convicção não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação áudio ou vídeo.
Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II, 4.ª ed., pág. 266-267, dizendo isso mesmo, adverte que o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância, a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, que são factores dos quais o tribunal retira argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo.
O tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está vedada pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos dos autos) pode exibir perante si.
Considerando os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto deve, em regra, visar os casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados – ac. desta Relação de 19.9.2000, CJ, XXV, 4, 186.
Desta forma, tendo o tribunal da 1.ª instância tomado como boa a versão trazida ao julgamento pelas testemunhas da A., não nos é legítimo decidir que a versão adequada é a das testemunhas dos RR., embora os depoimentos se nos tenham afigurado plausíveis.
Mantêm-se, por conseguinte, as respostas aos quesitos 26.º, 27.º, 30.º e 31.º.

Ao mencionarem o quesito 33.º os apelantes transcreveram o quesito 32.º, pelo que entendemos que é a este último que quiseram reportar-se.
O quesito 32.º é o seguinte:
«Vedando assim o seu acesso a quem quer que seja, e nomeadamente a todos aqueles que o utilizavam quando se deslocavam para nascente?»
A resposta foi “provado”, mas os apelantes acham que atento o que se disse a propósito do quesito 19.º e ainda face à resposta dada ao quesito 41.º, não ficou provado que as pessoas se deslocassem por ele para nascente.
A resposta deve ser alterada em conformidade com o que ficou provado na resposta ao quesito 19.º, primeira parte, isto é, «O caminho em referência, pelo menos há 75 anos, tem sido usado pelo público em geral para estender roupas e para aceder ao ribeiro onde as mesmas se lavavam».
A resposta deve ser, portanto:
«Vedando o seu acesso a todos aqueles que o utilizavam nos termos referidos na resposta ao quesito 19.º».

Também não concordam os apelantes com a resposta ao quesito 34.º, que foi dado como provado e que é do seguinte teor:
«Acesso esse que sempre teve, através de portões colocados no muro que delimita o seu prédio a sul?»
Este quesito está ligado ao 33.º, que pergunta se com a sua conduta os RR. impedem a A. de ter acesso ao caminho em questão e que também foi considerado provado.
Os apelantes dizem que não se provou que a A. sempre tenha tido portões colocados no muro que delimita o seu prédio a sul, invocando o depoimento da testemunha N………. .
Vejamos.
A primeira testemunha da A., F………., referiu que a mãe da A. pediu para abrir uma passagem para uma pessoa, a fim de passar para aceder ao ribeirinho onde se lavava a roupa, dizendo que não sabia a quem pediu; I………. disse que o muro da A. tem um portãozinho que dá para o tal espaço; J………. disse que o portãozinho sai para a rua e sempre lá esteve; L………. disse que o portãozinho da A. sempre existiu; N………. disse que o pai da A. pediu ao pai dela para abrir o portãozinho e ele autorizou; O………. disse que não se recordava da cancela antiga ao fundo, no terreno dos RR., mas do portãozinho da A.; P.........., filho da antiga proprietária N………., disse que há uma entrada pequena, referindo-se ao portãozinho da A., mas que não sabe desde quando.
Parece, pois, que o portãozinho da A. não existiu sempre, mas desde o tempo do pai da mesma.
Por isso, a resposta deve ser:
«Acesso esse que teve desde o tempo do pai da A., através de um portão pequeno colocado no muro que delimita o seu prédio a sul».

Relativamente ao quesito 36.º, cuja desconformidade dos apelantes se prende com a mesma argumentação expendida a propósito do quesito 13.º, diremos o mesmo, isto é, a questão da constituição da propriedade horizontal pela A. não releva para o cerne desta questão, pelo que se nos afigura desinteressante tratar do tema.

Na resposta ao quesito 37.º não concordam os apelantes com o uso do caminho há mais de 100 anos, nem com a deslocação das pessoas através dele para nascente.
Em conformidade com o que se disse a propósito da resposta ao quesito 19.º, a referência temporal só pode ser “há pelo menos 75 anos”, o mesmo se passando com a deslocação das pessoas para nascente, em conformidade com a mesma resposta e ainda com a dada ao quesito 32.º.
Passará, assim, a resposta a ser:
«Também aqueles que, de forma ininterrupta, e há pelo menos 75 anos, se serviam do dito caminho, para nele estender roupas e para aceder ao ribeiro onde as mesmas se lavavam, se vêem ora impossibilitados de o fazer».

Quanto ao quesito 38.º, cuja formulação é esta:
«O caminho aludido, desde sempre esteve afecto ao uso público?», os apelantes não concordam com o “desde sempre”, no que lhes assiste razão, como já foi dito, nem com o “uso público”, pois que essa expressão é vaga e sabemos para que era usado, para secar e corar roupa e para aceder ao ribeiro pelos que não iam pelo outro caminho que era o principal.
No entanto, a resposta não se deve considerar não escrita, conforme pedem os apelantes, mas deve ser corrigida em conformidade.
Ficará, pois, nestes moldes:
«O caminho aludido desde há pelo menos 75 anos era usado pelo povo de E………. para secar e corar roupa e para aceder ao ribeiro onde a mesma era lavada».

Nos quesitos 40.º, 53.º, 54.º e 55.º, os apelantes entendem que as respostas devem ser positivas e não negativas, como foram.
Neles se perguntam factos tendentes à demonstração de que o caminho integra o prédio dos RR.
Já atrás dissemos que entre dois grupos de depoimentos de cariz contrário não nos é legítimo formar convicção de cariz diverso da 1.ª instância.
Ora, se se entendeu que o caminho esteve desde há pelo menos 75 anos no uso do público para as finalidades referidas, não se pode dar como provado que os RR. e seus antecessores sobre ele exerceram exclusivamente actos de posse tendentes à aquisição originária.
Por outro lado, se é certo que as testemunhas dos RR., com relevo para N………., manifestaram a sua convicção de que esse trato de terreno pertence ao prédio dos RR., e aduziram factos concretos nesse sentido, também não deixa de o ser que não negaram a utilização do mesmo pelo povo de E…….. para, pelo menos pôr a roupa a secar e a corar.

Finalmente, os apelantes não concordam com a resposta negativa ao quesito 56.º, que perguntava se:
«Nunca a Junta de Freguesia de ………. aí realizou quaisquer obras e/ou trabalhos?», por entenderem que nenhuma das testemunhas da A, soube dizer se a junta tinha feito alguma obra naquele caminho, enquanto a testemunha dos RR. S………., que fez parte de vários órgãos autárquicos da freguesia desde 25.4.1974, foi categórico em afirmar que a junta nunca realizou obras.
Têm razão os apelantes.
Com efeito, a referida testemunha, que é autarca desde 25.4.1974, tendo sido presidente e secretário da junta e também presidente da assembleia de freguesia, afirmou com toda a clareza que a junta não tinha nada que ver com o dito caminho, que não fazia parte do cadastro de registo dos bens da freguesia e que a junta nunca lá fez nada.
Ao passo que as testemunhas da A. não referiram qualquer acto de conservação ou outro da parte da junta.
Por isso, a resposta deve ser «Provado».

Enumeremos, então, a matéria de facto relevante para a questão da dominialidade do caminho.

1) No ………., freguesia de ………., concelho de Vila Nova de Famalicão, existe um prédio urbano constituído por edifício destinado a habitação (A).
2) Tal prédio confronta do Norte com linha férrea, do Nascente com C………. (B).
3) O prédio referido em "1" e "2" encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob os artºs. 51.º e 349.º (1.º).
4) E descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o nº. 38.593 (2.º).
5) E confronta do Sul e Poente com caminho (3.º).
6) O prédio a que se vem de aludir foi adquirido pela autora por doação titulada por escritura pública, lavrada a 15 de Fevereiro de 1980, exarada de fls. 96, do livro de escrituras Diversas B-98 do Primeiro Cartório Notarial de V. N. Famalicão (4.º).
7) Quer por si, quer por antepossuidores e anteriores proprietários, há mais de 5, 10, 15 e 20 anos que a autora está na posse do indicado prédio, aí habitando ou arrendando-o, colhendo os frutos e rendas, venerando a casa e quintal, pagando as respectivas contribuições, sempre à vista de todos, nomeadamente vizinhos, sem oposição ou embaraço de quem quer que seja, e na convicção de exercer um direito próprio, sem prejudicar ninguém, e em tudo se comportando como dona e por todos como tal sendo considerada, sendo que a sua posse sempre foi pública, pacífica, contínua e de boa fé (5.º).
19) (…) procedeu pois a autora à construção do portão destinado a entrada carral, portão esse implantado na extrema sul do seu prédio, e que fazia passagem para o caminho aí existente (17.º).
20) O caminho que se vem de referir, confronta em toda a sua extensão com a extrema sul do prédio da autora, tendo o seu inicio noutro caminho sito a poente, vai desembocar no prédio pertença dos réus, conforme melhor se constata por planta junta aos autos (18.º).
21) O caminho em referência, pelo menos há 75 anos, tem sido usado pelo público em geral para estender roupas e para aceder ao ribeiro onde as mesmas se lavavam, e pelos donos do prédio hoje dos RR. para entrar e sair do mesmo (19.º).
23) Nesse mesmo caminho era uso colocar-se roupas a secar e a corar ao sol (21.º).
24) Tal caminho, pelo menos há 75 anos é referenciado como caminho público, e por todos como tal considerado e utilizado (22.º).
25) Pelo menos há 75 anos é referenciado como caminho público ou caminho vicinal, sendo exemplo dessa circunstância a menção do mesmo, quer em escrituras públicas, quer em extractos de inscrições registrais (23.º).
26) Vêm os réus ocupando o caminho em questão (24.º).
27) A ré mulher erigiu, no caminho que se vem de referir, construção composta por muro e portão (25.º).
28) Os réus prolongaram a extrema sul do seu prédio (26.º).
29) Fazendo-a deslocar, nessa mesma direcção cerca de quatro metros (27.º).
30) Seguidamente, fizeram os réus erigir na delimitação sul do dito caminho, muro constituído por blocos de cimento, assente em estrutura de betão armado, com a largura de cerca de quarenta centímetros e um comprimento superior a 20 metros, contados desde o seu inicio até ao seu topo poente (28.º).
31) Efectuado que foi tal muro, implantaram os réus um portão de ferro que no seu topo norte encosta ao muro existente na extrema sul do caminho (29.º).
32) Com a construção do muro a que se vem de aludir, e com a implantação do referido portão, ficaram pois os réus a ocupar o caminho em questão (30.º).
33) Integrando-o no seu prédio (31.º).
34) Vedando o seu acesso a todos aqueles que o utilizavam nos termos referidos na resposta ao quesito 19.º (32.º).
35) Por outro lado, ao vedar assim o terreno, impedem os réus que a autora continue a ter acesso ao caminho em questão (33.º).
36) Acesso esse que teve desde o tempo do pai da A., através de um portão pequeno colocado no muro que delimita o seu prédio a sul (34.º).
37) Com a construção do muro e implantação do portão, ficou a autora impossibilitada de aceder ao seu prédio, pelos portões existentes da extrema sul (35.º).
39) Também aqueles que, de forma ininterrupta, há pelo menos 75 anos, se serviam do dito caminho, para nele estender roupas e para aceder ao ribeiro onde as mesmas se lavavam, se vêem ora impossibilitados de o fazer (37.º).
40) O caminho aludido desde há pelo menos 75 anos era usado pelo povo de E………. para secar e corar roupa e para aceder ao ribeiro onde a mesma era lavada (38.º).
41) Como se verifica melhor da planta topográfica, constante do doc. nº. 2 junto com a contestação, o prédio da ré está totalmente isolado em relação aos restantes:
a) De um lado, há a linha de caminho de ferro;
b) Do outro lado, é o prédio da Autora;
c) Do outro lado, é o prédio do vizinho (41.º).
43) O prédio da autora sempre teve um muro do lado do mesmo caminho (45.º).
44) E o acesso ao exterior também se fazia através de uma abertura do lado sul do prédio da autora (46.º).
45) Há uns três anos, mais ou menos, a autora procedeu à construção de uma abertura em tal muro (47.º).
46) Pretendendo passar através de tal caminho (48.º).
47) Pretendendo esta construir aí um portão (50.º).
48) A ré construiu um muro, tapando a mesma abertura feita pela autora (51.º).
49) Existe um canteiro encostado ao lado exterior do muro do lado sul do prédio da autora (52.º).
50) Nunca a Junta de Freguesia de ………. aí (no caminho) realizou quaisquer obras e/ou trabalhos (56.º).

3.
Os apelantes defendem que se não conjugam os requisitos para que o caminho seja considerado público.
A questão da dominialidade pública dos caminhos, foi tratada pelo Assento do S.T.J. de 19 de Abril de 1989 (B.M.J. 386-121), que doutrinou serem públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público, afastando a orientação jurisprudencial que defendia que para a dominialidade pública de um caminho se poder afirmar era indispensável a sua construção ou apropriação pelo Estado ou autarquias locais, ou que aquele ou estas o mantivessem sob a sua jurisdição e administração, constituindo o uso público directo e imediato, desde que imemorial, mera presunção natural dessa dominialidade, ilidível por prova em contrário - Marcelo Caetano, citado no voto de vencido do Conselheiro Ferreira da Silva, no referido Assento ).
Consta do Assento que: “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhe está inerente. É suficiente para que esta coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público. (...) Esta é a solução que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos e, assim, se obstar à apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público pelo privado. Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como público o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao trânsito de pessoas sem descriminação.”
Como se diz no acórdão do STJ de 27.4.2006, proc. 06B915, no site da DGSJ, o assento consagrou uma das três teses que vinham sendo sustentadas para a definição de caminhos públicos.
Uma entendia que, estando em vigor o art. 380.º do Cód. Administrativo, se tornava necessário para se definir um caminho como público que o mesmo tivesse sido produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público; outra bastava-se, para tanto, com o facto de o caminho estar no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais; outra, intermédia, fazia a mesma exigência, mas defendia que, provado o uso imemorial pelo público, o caminho assumia a natureza pública, por ser de presumir que houve apropriação lícita por parte das entidades de direito público, dado ser impossível uma prova directa, sendo essa presunção ilidível por prova em contrário.
E acrescenta que foi esta posição intermédia a adoptada no Assento.
No mesmo aresto se refere que os acórdãos que vêm procedendo à interpretação restritiva do Assento não alteraram esta posição doutrinal, apenas consideraram, no seguimento do voto de vencido nele expresso, que tal se torna necessário para distinguir "caminhos públicos" de "atravessadouros", "sob pena de o art. 1383.º do Código Civil ficar sem qualquer campo de aplicação e de todos os atravessadouros de uso imemorial terem de qualificar-se como caminhos públicos".
Com efeito, a doutrina do Assento tem vindo a ser interpretada restritivamente – Acórdãos do STJ de 10-11-1993 e de 15-6-2000, respectivamente in BMJ n.º 431, páginas 300 a 307 e n.º 498, páginas 226 a 232 – no sentido de que a publicidade dos caminhos exige, ainda, a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.
Vejamos, pois.
A primeira questão a tratar prende-se com o uso pelo público desde tempos imemoriais.
A expressão tempo imemorial significa o tempo passado que já não consente a memória humana directa de factos, ou seja, quando os vivos já não conseguem percepcioná-los pelo recurso à sua própria memória ou ao relato da sua verificação pelos seus antecessores.
Neste particular apenas se provou que a utilização pelo público do caminho para estender roupa e aceder ao ribeiro onde a mesma era lavada tem lugar pelo menos há 75 anos.
Ora, sem outros elementos que permitam concluir por uma utilização anterior tão longínqua no tempo que escapa à percepção da memória humana, falece o mencionado requisito da imemorialidade.

Também consideram os apelantes que não estão em causa fins de utilidade pública relevantes.
O uso directo e imediato do caminho pelo público envolve a sua afectação a utilidade pública, isto é, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos, sendo essa característica de afectação do caminho à utilidade pública, à satisfação de interesses colectivos relevantes, que distingue os caminhos públicos dos atravessadouros.
Mas será que estão aqui em causa interesses relevantes?
Pensamos dever concluir-se que não de acordo com os factos provados.
É que o povo de E………. utilizava o mencionado caminho para estender e corar roupa e para aceder, por uma ribanceira, onde parece que havia uns degraus talhados na terra, ao ribeiro onde a mesma roupa era lavada.
Ora, não parece que estende roupa e aceder mais rapidamente a um ribeiro sejam interesses colectivos de relevo.
Tanto mais que, como resultou dos depoimentos das testemunhas, embora isso se não reflicta nos factos provados, havia outro caminho para aceder ao dito ribeiro, que era pavimentado e vinha da linha férrea, e o curso do ribeiro foi mudado de lugar há anos, já lá se não lavando.
Por outro lado, com o desenvolvimento técnico deixou de se lavar nos ribeiros e rios, dado que quase toda a gente possui máquinas de lavar, facto que é notório, nem precisando de alegação e prova.
Por isso, o que há 30 anos ainda era relevante, por ser essencial para as pessoas, deixou há muito de o ser.
A doutrina e a jurisprudência têm considerado que a falta de utilização pelo público dos caminhos públicos implica a perda da sua característica pública em razão da desafectação tácita da respectiva utilidade, passando os mesmos a integrar o domínio privado da pessoa colectiva pública a que pertenciam (MARCELLO CAETANO, "Manual de Direito Administrativo", Coimbra, 1972, página 934, e Ac. deste Tribunal, de 14 de Outubro de 2004, Recurso nº 2576/2004).
Tudo argumentos para que o caminho em causa não deva ser classificado como público.

Face ao exposto, julga-se a apelação procedente e revoga-se a sentença, julgando-se a acção improcedente e absolvendo-se os RR. do pedido.

Custas em ambas as instâncias pela A.

Porto, 16 de Novembro de 2006
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira