Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0621293
Nº Convencional: JTRP00039046
Relator: CÂNDIDO LEMOS
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
SOCIEDADE COMERCIAL
Nº do Documento: RP200604040621293
Data do Acordão: 04/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 213 - FLS 170.
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo a parte uma sociedade comercial, a responsabilidade pela litigância de má cabe em exclusivo ao seu representante que esteja de má fé na causa e não à sociedade.
II - Sob pena de violação do contraditório, tal representante terá de ser ouvido antes de o Tribunal se pronunciar sobre a dita má fé.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

No ..ºJuízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, B………., S.A. com sede no Porto, requer providência cautelar de suspensão de deliberações sociais contra C………., L.da, com sede igualmente no Porto, pedindo que na procedência da mesma:
-a) seja suspensa a deliberação da gerência que determinou a amortização integral e antecipada do imobilizado incorpóreo;
-b) seja suspensa a deliberação emanada da assembleia-geral da requerida que aprovou o relatório de gestão e as contas do exercício de 2004;
-c) seja suspensa a deliberação emanada da assembleia-geral da requerida que aprovou que os resultados negativos do exercício – no valor apurado com base na deliberação de aprovação de contas – transitem para a conta de resultados transitados;
-d) seja suspensa a deliberação emanada da AG da requerida que aprovou a alteração da sede da sociedade e, consequentemente, não ser permitida a saída da sede da escrituração requerida;
-e) seja suspensa a deliberação emanada da AG que aprovou a nomeação do gerente D………. .
Em extenso articulado (nada menos de 328 artigos) pugna a requerida pelo indeferimento da providência, apontando para a falta de alegação de requisitos da mesma; por ilegitimidade da requerente e por falta de prova dos factos articulados.
Ao mesmo tempo pede a condenação da requerente como litigante de má fé, em multa e indemnização condigna, a ser apurada em liquidação de sentença, valor nunca inferior aos honorários dos seus mandatários, com juros e sanção pecuniária.
Só nos artigos 290.º a 316.º a requerida se refere à má fé. Aí justifica o seu pedido pelo único facto de a requerente ter pedido a sua notificação para junção da acta da AG de 27 de Abril de 2005, com a cominação do n.º1 do art. 397.º n.º1 do CPC.
O pedido da requerente é justificado nos arts.15.º e seguintes do requerimento inicial, alegando-se que o documento n.º 3 (fls. 28 a 38, sem qualquer assinatura) é mera minuta da Acta, encontrando-se o original em poder dos gerentes espanhóis.
Afirma então a requerida que a acta ainda não se encontra redigida por falta de consenso dos sócios quanto à sua redacção, o que é do conhecimento da requerida, que com tal alegação pretende o efeito cominatório (não recebimento da contestação).
A requerente apresenta requerimento de desistência dos pedidos formulados, à excepção do pedido de não alteração de sede (alínea d)).
A requerida apresenta então articulado com 107 artigos e notifica a parte contrária, que também se acha com direito de formular novo articulado, o que faz e onde pede o desentranhamento do da parte contrária. Não satisfeita esta, apresenta novo requerimento/resposta, agora com 30 artigos, sempre insistindo na condenação da requerente como litigante de má fé.
Só então é proferido despacho que, para além do mais que não vem ao caso, assim decidiu: “Não se anota nos autos má fé sendo certo que o julgamento das questões de facto alegadas com vista à procedência de tal pedido apenas em sede de instrução da causa poderiam ser apurados e, como do acima dito decorre, a causa não será julgada por extinção da instância por força quer da desistência parcial dos pedidos quer por força da extinção do procedimento noutra parte. Assim, sem quebra do devido respeito, não se acolhe a tese da requerida de que os autos deveriam prosseguir para apuramento da má fé por a tal não se destinar a presente providência cautelar sendo tal pretensão dependência e incidente do processo que não tem autonomia forma dele nem justifica de per si a continuação do julgamento da causa. Tanto mais que, como desde logo anuncia a requerida, o pedido de indemnização que lhe poderia aproveitar pode ser e será alegadamente exercido em acção própria.”
Inconformada a requerida apresenta este recurso de agravo e nas suas alegações formula as seguintes conclusões:
1ª- O meio próprio para que uma parte seja ressarcida pelas despesas que incorreu em virtude da litigância de má fé da contraparte é através do pedido da condenação desta como litigante de má fé, a ser deduzido no mesmo processo;
2ª- O facto de a Recorrente ter declarado que, caso não fosse julgado procedente o pedido de condenação em litigância de má fé, prescindiria da procuradora "sem prejuízo do direito ao recurso nos termos gerais" não constitui fundamento para o não conhecimento do pedido de condenação ou de que "o pedido de indemnização que lhe poderia aproveitar-se pode ser e será alegadamente exercido em acção própria";
3ª- Não é verdade que "o julgamento das questões de facto alegadas com vista à procedência de tal pedido apenas em sede de instrução da causa poderiam ser apurados";
4ª- Por um lado, os factos que fundamentam e constituem a causa de pedir do pedido inicial de condenação da Recorrida em litigância de má fé não são controvertidos, já que esta os admitiu em requerimento posterior;
5ª- Acresce que o segundo fundamento deduzido e concludente da litigância de má fé trata-se pura e simplesmente de um facto conclusivo que decorre de simples presunção judicial e, como tal, não é nem pode ser objecto de prova;
6ª- De qualquer forma - e ainda que assim não se entendesse - não haveria lugar a qualquer instrução, pois que a única prova requerida e apresentada foi a prova documental oferecida pela Requerida, ora Recorrente, (nomeadamente os documentos cuja apresentação foi autorizada pelo Presidente do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados);
7ª- Podia o Tribunal recorrido, quanto muito, requerer oficiosamente a produção de qualquer outra prova que julgasse necessária à descoberta da verdade material;
8ª- O que não poderia era abster-se de conhecer tal pedido com base na impossibilidade de instrução da causa;
9ª- Ainda que houvesse qualquer prova que carecesse de produção - o que não sucede - deveriam os autos prosseguir para apuramento das questões de facto pertinentes à decisão sobre o pedido de litigância de má fé;
10ª- Com efeito, "havendo desistência do pedido e tendo sido formulado pela parte contraria ao desistente pedido de indemnização por litigância de má fé, a correspondente condenação constitui objecto de pretensão que o Juiz não pode deixar de conhecer, sob pena de nulidade da sentença" (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-19-1991, proc. 33996, disponível em www.dgsi.pt);
11ª- Nada obsta a que esse Tribunal superior conheça do mérito do pedido de litigância de má fé que o Tribunal de 1ª instância entendeu erradamente não conhecer.
Pugna pela revogação do despacho recorrido, convidando-se as partes a produzir alegações nos termos do n.º2 do art. 753.º do CPC, condenando-se depois a requerente como litigante de má fé em multa e indemnização.
Contra-alega esta em defesa do decidido.
O despacho foi tabelarmente mantido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Os factos a ter em consideração para a decisão são os que resultam do antecedente, sendo certo que os mesmos não são impugnados pelas partes, nem oficiosamente se vê necessidade de acrescentar outros.
Mas, antes de avançar, vemo-nos na necessidade de demarcar a nossa posição sobre o presente recurso.
Em primeiro lugar, o recurso é apenas admissível e admitido na parte que diz respeito à não condenação como litigante de má fé da sociedade requerente.
Em segundo lugar, só serão levados em conta os articuladas que a lei permite para esta espécie de processos: requerimento inicial e contestação (arts. 396.º e 397.º do CPC).
Para melhor compreensão, repetimos aqui a matéria de facto assente e atinente à decisão:
-a) No art. 15.º do requerimento inicial, a requerente alega juntar sob o n.º3 o que chama “meras minutas” da acta da AG de 27 de Abril de 2005, afirmando ainda que o original se encontra em poder dos gerentes espanhóis;
-b) No final requer se ordene a citação da ré para “juntar aos autos a acta da AG de 27 de Abril de 2005, sob pena da cominação prevista no art. 397.º n.º1 do CPC:
-c) À data, a redacção de tal Acta ainda não estava plenamente concluída, estando os Advogados das partes em negociações para encontrarem uma redacção em que todos concordassem, o que era do conhecimento da requerente.
Cumpre agora conhecer do objecto do recurso, delimitado como está pelas conclusões das respectivas alegações (arts. 684.º n.º3 e 690.º n.º1 do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se a requerente litiga de má fé.
Atenta a data em que foi proposta a oposição (08/09/2005) é aplicável a versão actual do artigo 456° do Código de Processo Civil, introduzida pelos Decretos-Lei n.º 329-A/95 de 12-12 e 180/96, de 25-09.
Na vigência da anterior redacção daquele preceito legal, vinha sendo entendido que só a conduta dolosa, consubstanciada em dolo instrumental ou substancial, podia dar lugar à condenação por má fé (v., entre outros, os Acs. do STJ de 28-10-75, BMJ, 250, p. 156 e de 8-4-97, CJ-STJ, Tomo II, p. 37).
Na nova redacção, a par do realce dado ao princípio da cooperação e aos deveres de boa fé e de lealdade processuais, foi também alargado o âmbito de aplicação do instituto da litigância por má fé, passando a ser punidas não só as condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes.
Assim, nos termos do actual n.º 2, do artigo 456° do C.P.C, litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d)ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Segundo o art.458.º do CPC, sendo a parte uma sociedade, a responsabilidade recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.
Ao contrário do entendido pela agravante, o despacho posto em crise, que acima transcrevemos na íntegra, não omite a decisão sobre litigância de má fé. Até porque oficiosamente era obrigado a pronunciar-se sobre tal questão.
Embora de uma forma um tanto simplicista, sempre se afirma “não se anota nos autos má fé”.
Poderia, efectivamente, dizer mais, na medida em que a questão havia sido suscitada pelas partes.
Tem razão a agravante quando afirma que terminados os autos por desistência da instância ou do pedido, tem o Tribunal de conhecer da litigância de má fé, se suscitada pela contraparte.
Já o Tribunal não tem razão quando afirma da necessidade de “instrução” das questões de facto atinentes.
A decisão só pode contar com os factos alegados e com a posição das partes, no momento em que se decide: com os factos que entende como provados na altura em que decide.
Tanto assim é, que o Tribunal entende não existir má fé e isto só se entende se atendeu a tais factos.
Não havia, como não há, necessidade de prosseguimento dos autos. Ninguém entendeu tal, nem sequer a requerida.
Temos é de ver, tal como se encontra alegado nos autos, se a requerente deve ou pode ser condenada como litigante de má fé, tal como requerido.
Consta do sumário do Proc 1885/01-2ª Sec. in www.dgsi.pt., Acórdão de 29/01/2002: “Quando for parte na causa uma sociedade, esta pode ser condenada como litigante de má fé, apesar de a responsabilidade pelo pagamento da multa, indemnização e custas caber ao seu representante que estiver no processo. Por isso, e porque a actividade processual que conta é a do representante da sociedade, tal condenação não pode ter lugar sem prévia audição desse representante.”
Consoante o art. 458º citado, quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.
A responsabilidade dos gerentes das sociedades (ou dos representantes da pessoa colectiva) é, assim, uma responsabilidade por uma actuação em nome de outrem.
Não significa esta norma que a sociedade não possa ser condenada por má fé, pois quem é condenada é a parte (art. 456º, nº 1). Partes são as pessoas pela qual e contra a qual é requerida, através da acção, a providência judiciária [Antunes Varela e outros, Manual de Processo civil, 2ª ed., 107] e, nos termos do art. 5º, nº 2, do CPC, porque quem tem personalidade jurídica (pessoas jurídicas, singulares ou colectivas) tem igualmente personalidade judiciária, forçoso é que as pessoas colectivas, designadamente as sociedades, sejam representadas na lide por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem - art. 21º CPC. Parte na causa não é o representante da pessoa colectiva. «As sociedades, embora agindo necessariamente em juízo por meio dos seus representantes estatutários, são as verdadeiras partes da acção, sempre que esta seja proposta em nome delas ou contra elas» [Ibidem, 110]. As sociedades por quotas, dotadas de personalidade jurídica - art. 5º do CSC - são representadas, nas acções com terceiros [Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 146], pelos gerentes - 252º, nº 1 do mesmo CSC - e é de lei - art. 258º do CC - que o negócio jurídico realizado pelo representante produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado. Só que a especial natureza da representação orgânica das pessoas colectivas - que não pensam, não falam, não agem por si mas apenas através dos seus representantes - levou a lei (art. 458º do CPC) a pôr a cargo do representante que esteja de má fé na causa a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização em que a sociedade, parte na causa, tenha sido condenada por via da actuação (maliciosa) do seu representante.
O Tribunal Constitucional [Ac. do TC, de 22.2.95, no DR., II Série, de 17.6.95, pág. 6676] já se pronunciou sobre a aplicação destes preceitos, isto é, sobre a aplicação da litigância de má fé às sociedades, no sentido que deixámos transcrito. Para além do mais, sempre se imporia a audição prévia dos representantes da sociedade com intervenção nos autos.
Conclui-se, pois, pela impossibilidade de condenação da requerente Sociedade, nos termos em que foi requerido nos autos.
Salvo o devido respeito pela posição da agravante, também não entendemos que o facto de se ter requerido a junção da Acta da AG, essencial para os fins do processo, sabendo-se da sua não redacção definitiva, constitua litigância de má fé. Nem sequer o vencimento por regras processuais seria automático, como não o foi, na medida em que a oposição se encontra nos autos, não tendo sido ordenado o seu desentranhamento. Não existe, ainda, qualquer prova da intencionalidade da conduta da requerente.
Entende-se, assim, não declarar a B………., S.A. litigante de má fé.
DECISÃO:
Nestes termos se decide negar provimento ao presente agravo.
Custas pela agravante.
PORTO, 4 de Abril de 2006
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho