Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
104/10.1GCVPA.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
DIREITO AO SILÊNCIO
Nº do Documento: RP20111026104/10.1GCVPA.P1
Data do Acordão: 10/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A reconstituição do facto destina-se a reproduzir tão fielmente quanto possível as condições em que o ele ocorreu.
II – O contributo que, durante a reconstituição do facto, o arguido preste de forma livre, sem constrangimentos e acompanhado de defensor confunde-se com todos os outros elementos colhidos, incorporando-se num meio de prova autónomo, com valor próprio e distinto dos contributos parcelares que o conformaram, ficando, por isso, fora do âmbito de protecção do direito ao silêncio que venha posteriormente a exercer durante a audiência de julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 104/10.1GCVPA.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1.Relatório
No Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi submetido a julgamento o arguido B…, devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferido acórdão, no qual se decidiu absolvê-lo do crime de que vinha acusado (sic)[1].Inconformado com o acórdão, dele interpôs recurso o MºPº, pugnando pela sua revogação e substituição por outro que altere a decisão da matéria de facto de modo a fazer transitar para os factos provados todos os que foram considerados como não provados e, em consequência, declare que o arguido praticou os factos descritos na acusação, tipificados no crime de incêndio p. e p. pelo art. 274º nºs 1 e 2 al. a) do C. Penal, e o considere inimputável perigoso para, em seguida, após audiência complementar, o tribunal recorrido proceder à determinação da medida concreta da medida de segurança de internamento, ou, assim se não entendendo, considere verificadas as nulidades da sentença invocadas e determine a sua reformulação pelo mesmo tribunal, com a prolação de nova decisão onde se supram aqueles vícios, para o que apresentou as seguintes conclusões:

1. O arguido foi absolvido da prática do ilícito típico de incêndio, p. e p. pelo artigo 274°, n°s 1 e 2, al. a), do CP, pelo qual vinha acusado.
2. A apreciação da prova feita pelo tribunal, que conduziu à matéria provada e não provada, com especial relevo para a apreciação da prova constituída pelo auto de reconstituição do crime, na sua conjugação com os demais elementos de prova produzidos, deveria merecer uma diferente conclusão.
3. Há assim erro de julgamento relativamente aos factos dados como não provados nos pontos a) a e) do ponto 2.1.2 do acórdão recorrido, por isso, os mesmos devem ser dados como provados, por haver provas que impõem diversa decisão de facto, daí decorrendo a condenação do arguido.
4. Na verdade, a reconstituição do facto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, constitui prova autónoma, e este meio de prova deve bastar-se por si próprio enquanto meio de prova adquirido para o processo, e deve dispensar, no rigor das coisas, confirmações ou adjunções complementares.
5. A participação livre, sem ameaças e constrangimentos, no auto de reconstituição do crime por arguido inimputável (portador dum atraso mental moderado) assistido por defensor que não apresentou qualquer oposição à participação daquele na diligência não lhe retira o discernimento nem é impeditivo de o mesmo poder reconhecer e confirmar a prática dos factos objectivos (actos materiais) que praticou e lhe são imputados na acusação e dados como não provados pelo tribunal recorrido.
6. Efectivamente, afigura-se-nos que o arguido inimputável (portador dum atraso mental moderado) não está incapacitado de reconhecer e confirmar os factos objectivos (actos materiais) que praticou, apenas está impedido por tal anomalia psíquica de avaliar o significado e implicações, nomeadamente penais, desses actos.
7. Tal proposição infere-se, aliás, da análise global do relatório da perícia psiquiátrica realizada ao arguido.
8. Nunca tendo sido colocada em causa ao longo do processo a legalidade da reconstituição do crime pelo arguido deverá ser valorada de modo positivo e não de modo negativo como erroneamente fez o tribunal recorrido.
9. Pode e deve ser valorado de modo positivo, o que o tribunal recorrido também não fez, o depoimento de C…, agente Polícia Judiciária, que participou na reconstituição e referiu o modo como o arguido indicou os locais onde ateou os fogos e como o fez, como de resto vem sendo reconhecido pela jurisprudência dos tribunais superiores, indicando-se, entre tantos, o Ac. do STJ de 20/04/2006 proc. 06P363 in www.dgsi.pt.
10. A análise conjugada do auto de reconstituição assinalado, do depoimento do agente da Polícia Judiciária que procedeu à reconstituição, do auto de apreensão e do relatório pericial, e sua valoração conjunta positiva, bem como as regras da experiência comum, impõem decisão diversa da constante da decisão recorrida, permitindo ao Tribunal formular a convicção de que o arguido foi o autor dos incêndios e, consequentemente, dar como provados os factos que o tribunal recorrido considerou como não provados e constantes do ponto 2.1.2 do seu acórdão.
11. Nos termos do artigo 431°, als. a) e b), do CPP, face ao reexame das provas a efectuar por esse tribunal superior, deverão ser dados como provados os pontos a) a e) do ponto 2.1.2, indicados no acórdão recorrido como não provados.
12. A decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada visto que constando da acusação “Porque os factos cometidos se inserem numa expressão comportamental de distúrbio psicopatológico de que padece, que permite estabelecer uma relação de causalidade doença/incêndios há fundado receio de venha a cometer outros incêndios de igual gravidade jurídico-penal atenta a anomalia de que padece”, o tribunal a quo não fez constar tal factualidade nem dos factos provados e nem dos não provados.
13. Esta factualidade é essencial para a aplicação duma eventual medida de segurança de internamento ao arguido, conforme decorre do n° 1 do art. 91° do CP.
14. Constando do relatório da perícia psiquiátrica realizada ao arguido de fls. 410 e ss. que o arguido apresenta perigosidade para a prática de actos semelhantes aos de que é acusado, é possível, salvo melhor opinião, sanar o aludido vício com base no teor desse relatório que consta dos autos e tem a natureza de prova pericial, não se mostrando, assim, necessário o reenvio do processo para novo julgamento.
15. Nos termos do art. 426°, n° 1, do CPP deverá ser dada como provada a factualidade em causa e ligada à perigosidade do arguido.
16. Consequentemente, face à matéria de facto provada com a adição referida dos factos constantes dos pontos a) a e) do ponto 2.1.2 da decisão recorrida e ainda da factualidade mencionada no ponto II desta motivação e pelas razões aí expostas, deverá declarar-se que o arguido o praticou os factos descritos na acusação, tipificados no crime de incêndio p. e p. pelo art. 274° n°s 1 e 2 al. a) do CP e ser considerado inimputável perigoso.
17. Deverá ainda ser decretada a devolução ao tribunal recorrido para, em audiência complementar, procederá determinação da medida concreta da medida de segurança de internamento a aplicar-lhe e pronunciar-se sobre a eventual suspensão da execução do internamento (cf. artigos 369° a 371° do CPP e artigos 91° e 98° do CP).
CASO NÃO SEJA PROFERIDA A DECISÃO SUPRA SOLICITADA
18. A sentença é nula nos termos por inobservância do disposto nos arts. 374°, n°2 e 379°, nº 1 al. a) e do disposto no art. 379°, n° 1, al. c) todos do CPP por não ter feito constar quer dos factos provados e que dos não provados esta factualidade constante da acusação “Porque os factos cometidos se inserem numa expressão comportamental de distúrbio psicopatológico de que padece, que permite estabelecer uma relação de causalidade doença/incêndios há fundado receio de venha a cometer outros incêndios de igual gravidade jurídico-penal atenta a anomalia de que padece” e que é essencial para a boa decisão da causa.
19. A sentença é ainda nula, nos termos dos arts. 374° n° 2 e 379° n° 1 a) do CPP, ao não explicar de forma evidente e convincente para que possa impor-se quer aos seus destinatários, quer à comunidade de forma geral, qual a razão dum inimputável (portador dum atraso mental moderado) não poder participar na reconstituição dos factos que lhe são imputados, nem explicar porque não deve merecer credibilidade a sua colaboração nessa diligência processual, nem porque não valorou positivamente o depoimento de C…, agente Polícia Judiciária, que participou na reconstituição, nem o auto de apreensão do isqueiro que o arguido teria utilizado para atear os fogos.
20. Deve, assim ser declarada nula a sentença recorrida, por inobservância do disposto nos artigos 374° n° 2 e 379° n° 1 als. a) e c) ambos do CPP, a qual deve ser reformulada pelo mesmo tribunal, proferindo nova decisão onde se supram os vícios apontados.
21. Foram violados pelo tribunal recorrido os arts. 127°, 150°, 374° n° 2, 379° n° 1 a) e c), 410° n° 2, al. a) todos do CPP.

O arguido apresentou resposta, defendendo a manutenção da decisão recorrida, assim concluindo:

1.- O douto acórdão recorrido não infringe qualquer preceito legal, não padecendo de qualquer vício, pelo que não existe motivo para a sua revogação;
2.- É nosso modesto entendimento que não existe erro de julgamento sobre a matéria de facto, pois a convicção do tribunal recorrido foi formulada em conformidade com o disposto no artigo 127.° do C.P.P.;
3.- É que, o tribunal valorou toda a prova produzida em audiência, expressando de forma correcta as razões que conduziram a essa valoração, sendo que a prova constante dos autos não impõe decisão diversa daquela que foi proferida pelo tribunal recorrido, razão pela qual não existem razões para alterar a matéria de facto julgada como provada e não provada e consequentemente, o recurso não pode proceder;
4.- Quanto à alegada insuficiência da matéria de facto provada, é também nossa modesta opinião que, com o devido respeito, não assiste razão ao Digno Magistrado do M.P, porquanto o fundamento a que se refere a alínea a) do n.°2 do artigo 410.° do C.P.P. é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, que não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, pelo que não se verifica o vício referido;
5.- Finalmente, quanto à suscitada questão da nulidade da sentença também não se verifica que tenha existido por parte do tribunal recorrido qualquer omissão de pronuncia porquanto o douto acórdão enumerou correctamente os factos provados e não provados, fazendo uma exposição completa e adequada dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, fazendo ainda a indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, em respeito pelo artigo 374.°, n.°2 do C.P.Penal.
6.- É que, só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar da referida enumeração e estes constam, de facto, do douto acórdão recorrido.

O recurso foi admitido.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no qual, considerando que a decisão recorrida enferma de uma contradição insanável da fundamentação, se pronunciou no sentido de que, com a procedência desse vício, deve igualmente proceder o recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tenha sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.

2.Fundamentação
No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:

1) No dia 24 de Julho de 2010, pelas 15h00, no …, …, Ribeira de Pena, foi ateado fogo na superfície herbácea junto a um caminho florestal de terra batida ali existente.
2) O fogo alastrou primeiro através dos combustíveis fósseis - giestas, caruma e restolho - ali existentes em continuidade horizontal e depois através de um sem número de pinheiros, eucaliptos e outras espécies vegetais arbóreas, ardendo um total de 0,7 hectares de carvalho, no valor de €653,35.
3) Aliás, o fogo apenas não alastrou através de uma mancha maior de várias centenas de hectares de pinheiro e eucalipto e carvalho que se desenvolve por ali adiante em continuidade horizontal em virtude da pronta actuação dos bombeiros.
4) No mesmo dia 24 de Julho de 2007, pelas 16h00, no monte, em direcção ao …, …, …, Ribeira de Pena, foi novamente ateado um incêndio, na superfície herbácea existente junto a um caminho florestal de terra batida ali existente.
5) O incêndio alastrou primeiro através dos combustíveis fósseis - giestas, caruma e restolho ali existentes em continuidade horizontal e depois através de um sem número de carvalhos, ardendo cerca de 3,5 hectares de pinheiro e mato, cujos prejuízos foram avaliados em cerca de €8.165,85.
6) Tal incêndio apenas não alastrou através de uma mancha maior de várias centenas de hectares de carvalho e pinheiro que se espraia por ali adiante em continuidade horizontal devido à pronta actuação dos bombeiros.
7) O incêndio colocou em sério risco todas as propriedades circundantes, todas florestadas, em valor muito superior à área ardida.
8) O arguido quis provocar aqueles incêndios assim colocando em perigo as matas circundantes, nomeadamente as supra mencionadas provocando um prejuízo no valor de €8.819,20.
9) O arguido sofre de atraso mental moderado, desde a infância, provocando-lhe défices acentuados nas áreas cognitivas e na esfera relacional afectiva.
10) Além do mais, apresenta consumo de bebidas alcoólicas que também funciona como factor desinibidor e de maior impulsividade.
11) O arguido, devido à anomalia psíquica de que padece, é incapaz de se consciencializar dos comportamentos proibidos e punidos por lei.
12) O arguido viveu sempre com a progenitora e a avó materna, entretanto já falecida, não existindo qualquer contacto com o pai.
13) Chegou a frequentar a escola sem, contudo, obter qualquer grau académico face aos défices cognitivos.
14) Esteve desde os 12 anos até aos 18 anos de idade integrado na D….
15) A partir dos 18 anos de idade voltou a viver com a mãe numa casa sem condições, porquanto não está dotado de água e energia eléctrica.
16) A mãe do arguido encontra-se reformada por invalidez, tal como o arguido.
17) O arguido não tem antecedentes criminais.

Foram os seguintes os factos considerados como não provados:

a) O arguido decidiu que no dia 24 de Julho de 2010 iria incendiar a floresta.
b) Assim, o arguido, no dia 24 de Julho de 2010, pelas 15h00, no …, …, Ribeira de Pena, quando regressava a casa, sozinho, utilizando para o efeito um isqueiro de marca Bic e com as inscrições "Mad in Spain 202 1 ", de cor roxa, e através de chama directa ateou fogo na superfície herbácea junto a um caminho florestal de terra batida ali existente.
c) Logo de seguida, no regresso a casa, no mesmo dia 24 de Julho de 2007, pelas 16h00, o arguido deslocou-se novamente apeado e sozinho, pelo meio do monte, em direcção ao …, …, …, Ribeira de Pena, tendo novamente ateado um incêndio, utilizando novamente a chama directa do referido isqueiro, na superfície herbácea existente junto a um caminho florestal de terra batida ali existente, que percorria em direcção a casa.
d) O arguido quis provocar aqueles incêndios assim colocando em perigo as matas circundantes, nomeadamente as supra mencionadas.
e) Não mostra arrependimento pelo que fez, tentando desvalorizar esses actos.

A motivação da decisão de facto foi assim explicada:

Em sede de motivação da decisão de facto, ponderou-se o conteúdo dos documentos juntos aos autos
Pericial:
- relatório pericial de fls. 410 a 413.
Documental:
- doc. de fls. 41; 55; 69; 175; 306; 329
- relatório de ocorrência a fls. 83 e 84;
- auto de apreensão de fls. 87 e 88
- ficha biográfica de fls. 118 e 1 19
CRC do arguido a fls. 183. - certidão de fls. 184 a 186;
- Certidão de nascimento do arguido a fls. 253;
- doc. clínico de fls. 355.
- auto de reconstituição de fls. 383 a 387
- relatório social fls. 553 e ss

Ponderaram-se os depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento.
As testemunhas E… e F…, GNR, referiram ter ido ao local e o incêndio ainda estava activo, o incêndio era pequeno mas ficava perto das residências.
O incêndio foi logo atacado pelo helicóptero, o incêndio consumiu mata e carvalhos.
A testemunha G…, guarda-florestal, foi ao local investigar as áreas ardidas e prejuízos dos incêndios, o que fez quando estes já estavam extintos.
Nos … ardeu cerca de 0,5h, se não tivesse sido combatido pelos bombeiros tinha-se propagado e havia perigo de atingir as habitações.
No … ardeu cerca de 4,6h causando um prejuízo de cerca de €8.165,85
H…, GNR, referiu ter-se deslocado ao …, o local é um monte com pinheiros e eucaliptos, tendo casas à volta, o incêndio foi apagado pelos bombeiros.
I… referiu que no … foi queimado um pinhal da testemunha de 1h, teve um prejuízo de €300,00.
A testemunha J… referiu que o incêndio no … queimou eucaliptos e pinheiros da cunhada, a qual teve um prejuízo de cerca de €500,00.
Os bombeiros foram rápidos a actuar, caso contrário as casas tinham sido atingidas.
A testemunha C…, PJ, referiu ter intervindo no auto de reconstituição de fls. 383, houve uma colaboração expontânea do arguido, indicando os distintos pontos onde o incêndio foi provocado.
No local havia pinheiro bravo e eucalipto, havendo casas a 200m do local do incêndio.
As testemunhas K…, L…, M…, amigos do arguido, referiram que o arguido está inserido no meio social e toda a gente gosta dele, vai fazendo recados para as pessoas.
Nunca o viram em distúrbios, educado com as pessoas.
As testemunhas N… e O…, respectivamente tia e prima do arguido, referiram que o arguido tem uma reforma de invalidez por deficiência mental.
O arguido é muito boa pessoa e relaciona-se bem com as pessoas.

Análise crítica da prova.
Algumas considerações cabem ser feitas sobre a matéria de facto provada e não provada.
Relativamente aos factos não provados de a) a d) tal ficou a dever-se ao facto de nenhuma prova concludente se ter produzido sem sede de audiência de discussão de julgamento.
Com efeito, o arguido remeteu-se ao silêncio, nenhuma testemunha presenciou ou viu comportamentos do arguido de onde se pudesse extrair a ilação da prática dos factos.
Ora, apenas temos o auto de reconstituição de fls. 383, o qual de per si não constitui prova suficiente para imputar a prática dos factos ao arguido.
A propósito, veja-se que o arguido é inimputável, conforme decorre do relatório pericial psiquiátrico, fls. 412, revela dificuldade de compreender algumas questões, tem alterações de memória recente e retrógrada.
Ora, o auto de reconstituição efectuado nestas circunstâncias (com a colaboração de arguido inimputável) não é suficiente para que a prática de tais factos possa ser imputada ao arguido, ou seja, existe uma dúvida séria que os factos tenham sido praticados pelo arguido, sendo certo que seguindo o princípio in dubeo pro reo a dúvida sobre a prova tem de ser valorada a favor do arguido.
Relativamente às condições sócio-económicas e aos antecedentes criminais do arguido teve-se em consideração depoimentos das testemunhas que sobre tal depuseram, relatório social, bem como o CRC.

3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[3]
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, são as seguintes as questões submetidas a apreciação:
- erro de julgamento quanto aos pontos a) a e) dos factos não provados;
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
e, para a eventualidade de não serem acolhidos esses fundamentos do recurso:
- nulidades por inobservância do disposto nos arts. 374º nº 2 e 379º nº 1 al. a) e, quanto a uma delas, também do disposto na al. c) do preceito referido em segundo lugar.
Além destas, foi suscitada pelo Exmº Sr. PGA a ocorrência do vício da contradição insanável entre o ponto 8. dos factos provados e a al. d) dos não provados.

3.1. O recorrente insurge-se contra a forma como foi decidida a matéria de facto, apontando como incorrectamente julgados todos os pontos que foram considerados como não provados e sustentando que a prova produzida, em concreto o auto de reconstituição do facto, o depoimento da testemunha C…, agente da P.J. que participou nessa diligência, o auto de apreensão e o relatório pericial, devidamente valorada e conjugada com as regras da experiência comum, impunha decisão diversa, ou seja, que os factos vertidos naqueles pontos deviam ser dados como provados.

Ao invocar o erro de julgamento como um dos fundamentos do recurso, o recorrente seguiu uma das vias através das quais a decisão da matéria de facto pode ser atacada, a impugnação nos termos dos nºs 3 e 4 do art. 412º do C.P.P., cujos limites e requisitos vamos começar por recordar como base para a análise das objecções concretamente apontadas e que mais adiante iremos fazer.
Na decisão da matéria de facto assume capital importância a regra geral contida no art. 127º do C.P.P., de acordo com a qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Assim, na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que essa apreciação não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos. De facto, a livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”[4]. Sendo a “a liberdade de apreciação da prova (…), no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir chamada «verdade material»”[5] que tem de ser compatibilizado com as garantias de defesa com consagração constitucional -, impõe a lei (cfr. nº 2 do art. 374º do C.P.P.) um especial dever de fundamentação, exigindo que o julgador desvende o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção[6] (indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância), não só para que a decisão se possa impor aos outros, mas também para permitir o controlo da sua correcção pelas instâncias de recurso.
Dentro dos limites apontados, o juiz que em primeira instância julga goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção[7] e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade[8]. E, como a demonstração da verdade dos factos juridicamente relevantes não se faz exclusivamente através da prova directa dos mesmos, também nada impede que, no caso de ela não existir, não se encontrar disponível ou ser inconcludente, a convicção se forme com base em prova indiciária[9],[10]. Ao invés, existindo apenas prova desta natureza, não está o tribunal dispensado de proceder à sua análise concatenada e à luz das regras da experiência comum, em ordem a verificar se ela é suficiente para alcançar a certeza moral[11] que, em caso afirmativo, resista a dúvidas consistentes e confira adequado suporte à decisão condenatória, não estando legitimado, sem mais e a pretexto de não ter sido produzida prova directa, que recorra ao princípio in dubio pro reo[12].
É na audiência de julgamento que o princípio da livre convicção e apreciação da prova assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355º do C.P.P., pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova[13]. Só os princípios da oralidade e da imediação “permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”[14].
No respeito destes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Assim, para impugnar eficientemente a decisão sobre a matéria de facto, "a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode (…) assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão"[15]. É que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si”[16]. Dito de outra forma: “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas”.[17] Além disso, a reponderação de facto não é ilimitada, antes se circunscreve à apreciação das discordâncias concretizadas pelo recorrente “já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.”[18]
Em conclusão: os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não naqueles em que essa resposta é uma entre as várias possíveis e plausíveis com sustentáculo nos meios de prova postos à disposição do tribunal recorrido - e que este teve oportunidade de avaliar em toda a sua plenitude, mormente no que concerne à prova testemunhal e por declarações dada a posição privilegiada proporcionada pela imediação e a oralidade – porque então, e a menos que se evidencie no juízo fundamentador da opção feita algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, a resposta dada pela 1ª instância estriba-se na regra estabelecida no art. 127º do C.P.P. e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se.

Por outro lado, a possibilidade de sindicação da matéria de facto, quando assente na impugnação da decisão que sobre ela foi proferida, depende da observância, por parte do recorrente, dos requisitos formais indicados no nº 3 do art. 412º do C.P.P., em concreto da delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas que, em seu entender, impõem[19] decisão diversa da recorrida, e (quando disso seja o caso) das que devam ser renovadas, especificações estas que hão-de ser feitas de acordo com o estabelecido no nº 4 do preceito acima referido.

Tendo o recorrente cumprido integralmente os ónus de especificação acima aludidos, e contando-se entre as provas que considera imporem decisão diversa o auto de reconstituição do facto que foi levada a cabo durante o inquérito, vejamos antes de mais, com apoio em abundante jurisprudência dos tribunais superiores, que traduz um entendimento largamente maioritário e com o qual concordamos, em que termos esse meio de prova pode ser valorado, e em particular quando o arguido, em julgamento, se remeteu ao silêncio, como no presente caso sucedeu.

A reconstituição do facto é um dos meios de prova típicos previstos no C.P.P., de que se lança mão “quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de uma certa forma” e que “consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo” (cfr. nº 1 do art. 150º daquele diploma legal). A reconstituição, que deve ser efectuada de acordo com os procedimentos previamente traçados no despacho que a ordenar (cfr. nº 2 do mesmo preceito), depois de documentada e desde que tenha sido obtida de forma legal e válida[20], constitui meio de prova processualmente admissível e, tal como os demais para os quais a lei não fixa um valor pré-determinado, depois de sujeita ao contraditório, há-de ser valorada de acordo com a regra da livre apreciação da prova, ou seja, “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”[21].
Porque a reconstituição se destina a reproduzir tão fielmente quanto possível as condições em que o facto ocorreu, é admissível que nela intervenha o arguido, sendo nesse caso imprescindível, para que possa valer como meio de prova, que ele a tal se disponha de forma inteiramente livre, sem quaisquer constrangimentos[22], devendo, ainda, para adequada garantia dos seus direitos de defesa (cfr. al. f) do nº 1 do art. 61º do C.P.P.) estar acompanhado de defensor.[23]
O contributo que o arguido preste, dentro desse condicionalismo, para a reconstituição do facto confunde-se com todos os outros colhidos para o mesmo fim, incorporando-se num meio de prova autónomo[24], com valor próprio e distinto dos contributos parcelares que o conformaram[25], e ficando, por isso, fora do âmbito de protecção do direito ao silêncio que venha posteriormente a exercer durante o julgamento[26],[27],[28],[29]. Assim, também as declarações dos órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição, relativamente às percepções sobre factos e circunstâncias de que tenham tido conhecimento directo durante a diligência – logo, por meios diferentes das declarações prestadas pelo arguido, seja as que hajam sido processualmente registadas no decurso do processo, seja em conversas informais -, ficam fora da órbita da proibição constante do nº 7 do art. 356º do C.P.P. [30],[31],[32],[33],[34],[35],[36],[37]. O que não representa qualquer compressão dos direitos de defesa do arguido pois em qualquer dos casos fica sempre salvaguardado o exercício do contraditório.
Revertendo ao caso sub judice, resulta da motivação da decisão de facto que o tribunal recorrido considerou como não provados os factos em que assentava a imputação ao arguido do ateamento dos dois incêndios aludidos nos pontos 1. a 7. dos factos provados por considerar que não foi produzida prova concludente a esse respeito na medida em que o arguido usou do direito ao silêncio e nenhuma testemunha o viu ateá-los ou praticar qualquer comportamento que permitisse relacioná-lo com a prática dos factos, considerando ademais o auto de reconstituição do facto insuficiente para o efeito tanto mais que se suscitam sérias dúvidas de que ele os haja praticado face à sua inimputabilidade e às limitações assinaladas no relatório do exame psiquiátrico a que foi submetido, nomeadamente a dificuldade em compreender algumas questões e as alterações de memória recente e retrógrada.
Começando por desmontar os argumentos aduzidos pelo tribunal recorrido para desvalorizar o auto de reconstituição do facto, junto aos autos a fls. 383 e ilustrado pelas fotografias a fls. 384-387, vejamos o que se colhe do relatório de perícia médico-legal a fls. 410-413, complementado pelo esclarecimento prestado a fls. 427. Destes elementos resulta que o arguido tem um “discurso lógico e coerente”, embora revele “dificuldades de compreensão de algumas questões, sobretudo no raciocínio e formulação de conceitos”, “tem alterações da memória quer da memória recente quer da memória retrógrada”, mas “sem actividade psicótica (delírios e/ou alucinações)” e “embora possua juízo crítico e social, ou seja saiba quais as normas básicas da sociedade, parece não haver uma real capacidade de avaliar alguns dos seus actos, podendo mesmo desvalorizar situações como por exemplo a de que é acusado, em que parece não ter uma percepção correcta das implicações. Tem uma noção do certo e errado, do bem e do mal, mas poderá ter dificuldades de avaliação sobretudo em situações que não tenha tido grande aprendizagem”. Do exame objectivo então efectuado concluiu-se que o arguido “apresenta um Atraso Mental moderado”, doença que se arrasta desde a sua infância, “e tem interferido no seu desenvolvimento psicomotor, provocando-lhe défices acentuados nas áreas cognitivas, mas também na esfera relacional e na esfera afectiva”, muitos dos quais poderiam ter sido ultrapassados se lhe tivessem sido propiciados “estimulação apropriada e ambiente familiar adequado e positivo”. Porque assim não sucedeu, o arguido “apresenta um funcionamento social muito limitado”, a que acresce “como factor desinibidor e de maior impulsividade” o consumo de bebidas alcoólicas, e “não mostra arrependimento pelo que fez, tentando desvalorizar esses actos”. O arguido foi considerado inimputável em virtude de apresentar, face à sua doença, “uma incapacidade total para avaliar de forma adequada os factos de que é acusado, sem juízo crítico para os tais actos”, apresentando também “perigosidade para a prática de actos semelhantes aos de que é acusado”.
Perante o quadro clínico traçado neste exame[38], não vislumbramos como se podem sustentar dúvidas razoáveis – a existirem, sempre poderiam ter sido removidas através da solicitação de esclarecimentos complementares ao perito de psiquiatria forense que efectuou o exame e subscreveu o respectivo relatório - acerca da capacidade do arguido de relatar situações em que tenha intervindo e comportamentos que tenha assumido. Não há dúvidas de que se trata de um indivíduo com algumas limitações, que tem dificuldades de compreensão[39] e de expressão, mas ainda assim não deixa de ter um discurso lógico e coerente e até tem alguma consciência ética, embora não consiga avaliar devidamente as consequências dos seus actos. Além disso, as alterações da memória que apresenta significam que não tem um registo semelhante ao da normalidade, que esquece mais facilmente ou não consegue recordar com o mesmo pormenor, não que fabule ou falte à verdade, sendo ainda de notar que foi expressamente referido não ter actividade psicótica. A doença mental de que padece (atraso mental moderado), com os défices que dela decorrem e que determinaram que fosse considerado como inimputável para a prática dos factos – juízo pericial cuja correcção não foi nem vemos como pudesse ser contrariada –, “não lhe retira o discernimento nem é impeditivo de o mesmo poder reconhecer e confirmar a prática dos factos objectivos (actos materiais) e dados como não provados pelo tribunal. Impeditivo será tão-somente o reconhecimento dos factos subjectivos, ou seja a capacidade de avaliar o mal que pratica e se determinar de acordo com essa avaliação”, como bem aponta o recorrente.
Daí que o argumento fulcral que o tribunal recorrido opôs à valoração do auto de reconstituição se mostre completamente destituído de fundamento.
Quanto ao mais, temos que, na reconstituição do facto em que participou – e cuja legalidade em momento algum foi questionada -, o arguido estava acompanhado pelo defensor oficioso que lhe foi nomeado (aliás, o mesmo que o tem o acompanhado ao longo de todo o processo), o que já de si constituía garantia de que essa participação foi completamente livre e voluntária mas que também foi expressamente confirmado, quando inquirida a esse respeito, pela testemunha C…, inspector da P.J. que também participou nessa diligência. Esta testemunha, confrontada com o referido auto, confirmou-o, acrescentando que o arguido descreveu dois pontos geograficamente distintos que indicou como tendo sido aqueles em que deu início aos incêndios e que ficou ali mencionado o material por ele utilizado para os atear. E, conferido o auto em questão, verificamos que nele se fez constar os locais referidos pelo arguido como tendo sido aqueles onde ateou os fogos, utilizando para o efeito o isqueiro que foi apreendido nos autos (cfr. fls. 87) na sequência da respectiva entrega que ele próprio antes havia efectuado, assim como os percursos por ele seguidos, tudo conforme vem ilustrado nas fotografias que o acompanham.
Ora, mesmo na ausência de prova directa da prática dos factos, a leitura conjugada de todos estes elementos de prova, feita à luz das regras da experiência comum, aponta uniforme e decisivamente no sentido de que foi o arguido o autor dos factos ilícitos que lhe foram imputados. De facto, outra explicação, minimamente lógica e plausível, não se encontraria nem para o facto de o arguido ter indicado dois locais (situados em zona geográfica próxima do lugar onde reside, visível nas fotografias a fls. 113-117, e que certamente bem há-de conhecer) como sendo aqueles onde os incêndios foram ateados (e correspondentes efectivamente a zonas onde os incêndios lavraram, como melhor se vê das fotografias a fls. 100 e 108, tiradas em data mais próxima dos factos, quando a natureza ainda não dava mostras de ter iniciado o seu processo de regeneração, e também tem confirmação quer nas fotografias e mapas anexos às fichas elaboradas pelo SEPNA/EPF, quer em vários depoimentos, em particular o da testemunha C…) e nem para a precisão com que os mesmos foram indicados[40], bem como os percursos seguidos até ao primeiro e deste para o segundo, nem sequer para a entrega que ele fez de um objecto não destinado mas notoriamente adequado à utilização que indicou ter-lhe dado, a de atear incêndios. Assim, e considerando também o que acima se disse acerca das capacidades intelectuais do arguido, temos de concluir – sem margem para qualquer dúvida razoável, pois todas as que se colocaram encontram resposta adequada e unívoca nos meios de prova que estiveram à disposição do tribunal e que este apreciou de forma que já vimos não ser de aceitar, aplicando sem justificação o princípio in dubio pro reo - que as provas produzidas, mormente as que pelo recorrente foram apontadas, impunham, efectivamente, decisão diversa, no sentido de se considerar que o arguido ateou os dois incêndios, tal como lhe vinha imputado, e que o fez de forma livre e voluntária, embora com os condicionamentos e limitações decorrentes da sua deficiente compreensão da ilicitude dos seus actos e respectivas consequências.
Decorrentemente, verificado o erro de julgamento invocado pelo recorrente, há que proceder à alteração da decisão da matéria de facto, com a recondução aos factos provados daqueles que incorrectamente foram considerados como não provados – excepção feita ao vertido na al. d) que vai simplesmente eliminada porque ele já havia sido considerado como provado no ponto 8. -, passando os primeiros, depois de reformulados, a ficar com a seguinte redacção e numeração:

1) O arguido decidiu que no dia 24 de Julho de 2010 iria incendiar a floresta
2) Assim, o arguido, no dia 24 de Julho de 2010, pelas 15h00, no …, …, Ribeira de Pena, quando regressava a casa, sozinho, utilizando para o efeito um isqueiro de marca Bic e com as inscrições "Mad in Spain 202 l", de cor roxa, e através de chama directa ateou fogo na superfície herbácea junto a um caminho florestal de terra batida ali existente.
3) O fogo alastrou primeiro através dos combustíveis fósseis - giestas, caruma e restolho - ali existentes em continuidade horizontal e depois através de um sem número de pinheiros, eucaliptos e outras espécies vegetais arbóreas, ardendo um total de 0,7 hectares de carvalho, no valor de €653,35.
4) Aliás, o fogo apenas não alastrou através de uma mancha maior de várias centenas de hectares de pinheiro e eucalipto e carvalho que se desenvolve por ali adiante em continuidade horizontal em virtude da pronta actuação dos bombeiros.
5) Logo de seguida, no regresso a casa, no mesmo dia 24 de Julho de 2007, pelas l6h00, o arguido deslocou-se novamente apeado e sozinho, pelo meio do monte, em direcção ao …, …, …, Ribeira de Pena, tendo novamente ateado um incêndio, utilizando novamente a chama directa do referido isqueiro, na superfície herbácea existente junto a um caminho florestal de terra batida ali existente, que percorria em direcção a casa.
6) O incêndio alastrou primeiro através dos combustíveis fósseis - giestas, caruma e restolho ali existentes em continuidade horizontal e depois através de um sem número de carvalhos, ardendo cerca de 3,5 hectares de pinheiro e mato, cujos prejuízos foram avaliados em cerca de €8.165,85.
7) Tal incêndio apenas não alastrou através de uma mancha maior de várias centenas de hectares de carvalho e pinheiro que se espraia por ali adiante em continuidade horizontal devido à pronta actuação dos bombeiros.
8) O incêndio colocou em sério risco todas as propriedades circundantes, todas florestadas, em valor muito superior à área ardida.
9) O arguido quis provocar aqueles incêndios assim colocando em perigo as matas circundantes, nomeadamente as supra mencionadas provocando um prejuízo no valor de €8.819,20.
10) O arguido sofre de atraso mental moderado, desde a infância, provocando-lhe défices acentuados nas áreas cognitivas e na esfera relacional e afectiva.
11) Além do mais apresenta consumo de bebidas alcoólicas que também funciona como factor desinibidor e de maior impulsividade.
12) Não mostra arrependimento pelo que fez, tentando desvalorizar esses actos.
13) Quando o arguido actuou, devido à anomalia psíquica de que padece estava incapaz de se consciencializar de que tais comportamentos eram proibidos e punidos por lei.
14) O arguido viveu sempre com a progenitora e a avó materna, entretanto já falecida, não existindo qualquer contacto com o pai.
15) Chegou a frequentar a escola sem, contudo, obter qualquer grau académico face aos défices cognitivos.
16) Esteve desde os 12 anos até aos 18 anos de idade integrado na D….
17) A partir dos 18 anos de idade voltou a viver com a mãe numa casa sem condições, porquanto não está dotado de água e energia eléctrica.
18) A mãe do arguido encontra-se reformada por invalidez, tal como o arguido.
19) O arguido não tem antecedentes criminais.

Com esta alteração fica prejudicada a questão suscitada pelo Exmº Sr. PGA acerca da contradição insanável entre o ponto 8. dos factos provados e a al. d) dos não provados porque, com a eliminação desta última, fica expurgado aquele vício que, reconheça-se, era gritante e se terá devido, estamos em crer, a um “copy and paste” da acusação sem que a posterior adequada depuração tenha sido feito com o cuidado que se impunha.

3.2. O recorrente defende, ainda, que a decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto em virtude de não ter feito constar de decisão da matéria de facto, nem dos factos provados nem dos não provados, factualidade que havia sido descrita na acusação e que, face ao disposto no nº 1 do art. 91º do C. Penal, reputa de essencial para a aplicação duma eventual medida de segurança de internamento ao arguido, em concreto o seguinte segmento: “Porque os factos cometidos se inserem numa expressão comportamental de distúrbio psicopatológico de que padece, que permite estabelecer uma relação de causalidade doença/incêndios há fundado receio de venha a cometer outros incêndios de igual gravidade jurídico-penal atenta a anomalia de que padece.”

Para além da impugnação da matéria de facto nos termos acima referidos, a sindicância da matéria de facto pode ser provocada através da invocação dos vícios da decisão (desta, e não do julgamento) - de resto, de conhecimento oficioso -, que podem constituir fundamento do recurso “mesmo nos casos em a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” como expressamente permitido no nº 2 do art. 410º do C.P.P. Esses vícios, os três que vêm enumerados nas alíneas deste preceito (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova), terão de ser ostensivos e passíveis de detecção através do mero exame do texto da decisão recorrida (sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo), por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – que não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual já cai no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, ultrapassando os limites do reexame da matéria de direito[41] -, a sua aferição faz-se cotejando os factos acolhidos na decisão com aqueles que são objecto do processo (e que vêm indicados no nº 4 do art. 339º nº 4 do C.P.P.).
“Na pesquisa do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artigo 410 n.2 alínea a) do Código de Processo Penal, há que averiguar se o tribunal, cingido ao objecto do processo desenhado pela acusação ou pronúncia, mas vinculado ao dever de agir oficiosamente em busca da verdade material, desenvolveu todas as diligências e indagou todos os factos postulados por esses parâmetros processuais, concluindo-se pela verificação de tal vício - insuficiência - quando houver factos relevantes para a decisão, cobertos pelo objecto do processo (mas não necessariamente enunciados em pormenor na peça acusatória) e que indevidamente foram descurados na investigação do tribunal criminal, que, assim, se não apetrechou com a base de facto indispensável, seja para condenar, seja para absolver.”[42],[43] Ou, por outras palavras, “a insuficiência a que se refere a alínea a), do artigo 410º, nº. 2, alínea a), do CPP, é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre facto(s) alegado(s) ou resultante(s) da discussão da causa que sejam relevante(s) para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”[44]. “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP) supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena.”[45]
A insuficiência da matéria de facto para a decisão (entendida esta como a decisão justa que devia ter sido proferida, e não como a decisão que efectivamente foi proferida[46]) existe, pois, quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão proferida, ou seja, “quando, através dos factos dados como provados, não sejam logicamente admissíveis as ilações do tribunal a quo, não estando, porém, definitivamente excluída a possibilidade de as tirar”[47], admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, caso tivessem sido averiguados pelo tribunal "a quo" através dos meios de prova disponíveis, teriam sido dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas[48]. Para invocar este vício, “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”[49].

Que também nesta questão assiste inteira razão ao recorrente é conclusão incontornável.
De facto, o segmento que o tribunal recorrido ignorou olimpicamente – provavelmente antecipando já a absolvição, atitude que não pode passar sem reparo porque só depois de fixados os factos é que se deve determinar a adequada solução jurídica e, de todo o modo, há sempre que acautelar alterações que recursos que eventualmente venham a ser interpostos possam vir a determinar – constava da acusação deduzida contra o arguido, mais precisamente da al. o) da parte I. Além disso, a matéria de facto nele vertida tem indesmentível relevância para efeitos da aplicação da medida de segurança, visto que, de acordo com disposto no nº 1 do art. 91º do C. Penal, a existência de fundado receio de que o inimputável que tenha praticado um facto ilícito típico venha a cometer outros factos da mesma espécie constitui pressuposto da aplicação da medida de internamento.
Donde que a evidência nos dispense de mais alongadas considerações para concluir pela verificação do vício invocado.
A sua existência, porém, só tem como consequência o reenvio do processo para novo julgamento quando não seja possível decidir da causa, conforme o preceituado no nº 1 do art. 426º do C.P.P. E, no caso, existem elementos nos autos – em concreto o juízo técnico-científico contido no exame psiquiátrico (que conclui que o arguido, tendo em atenção a doença de que padece e os inerentes défices, aliados ao consumo de bebidas alcoólicas, “apresenta perigosidade para a prática de actos semelhantes aos de que é acusado”) do qual não vislumbramos razões para divergir - que nos permitem expurgar mais este vício, levando aos factos provados a matéria fáctica que, apesar de alegada, foi ignorada pelo tribunal recorrido.
Assim, haverá que acrescentar aos factos mais um ponto, que passará a ser o 14., com a redacção correspondente à que constava da al. o) da acusação, acima transcrita, mantendo-se os que acima foram indicados de 14. a 19., apenas com a respectiva renumeração sequencial devido a esse acrescento.
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Em decorrência da procedência dos dois fundamentos principais do recurso, ficam prejudicados as demais questões cautelarmente suscitadas pelo recorrente.

Aqui chegados, cumpre tirar as devidas consequências da alteração da decisão da matéria de facto.
Em vista dela, temos de concluir, por um lado, que o arguido tem de ser considerado como inimputável para a prática dos factos, tal como definido no nº 1 do art. 20º do C. Penal, e declarado inimputável perigoso, e, por outro que, em face dos factos agora dados como definitivamente assentes, a sua conduta integra indubitavelmente o ilícito típico de incêndio p. e p. pelo art. 274º nº 2 al. a) do C. Penal (que vem cominado com pena de prisão de 3 a 12 anos), conforme a imputação que lhe havia sido feita na acusação.
Mostrando-se preenchidos os pressupostos de que o nº 1 do art. 91º do C. Penal faz depender a aplicação da medida de internamento, e correspondendo os factos praticados pelo arguido a um crime de perigo comum (categoria a que o crime de incêndio pertence) punível com pena de prisão superior a 5 anos, “o internamento tem a duração mínima de 3 anos, salvo se a libertação se revelar incompatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”, de acordo com o disposto no nº 2 do mesmo preceito.
Haveria, agora, que proceder à determinação da duração do internamento. Como, porém, a sua duração concreta e a sua persistência dependem do estado de perigosidade do arguido e não dispomos de dados suficientes para saber se é possível controlá-la e preveni-la em liberdade, mediante a sujeição a tratamentos e acompanhamento adequados, entendemos dever cometer essa tarefa ao tribunal recorrido que, para o efeito, deverá reabrir a audiência a fim de obter todos os esclarecimentos necessários (que podem ser pedidos ao perito psiquiatra e aos serviços de reinserção social, nomeadamente) à prolação de uma decisão conscienciosa quer sobre a duração da medida de segurança, quer sobre a possibilidade de a sua execução vir a ser suspensa e, neste caso, sob que condições.

4. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, julgam o recurso procedente e, em consequência, revogam o acórdão recorrido, determinando que:
a) a decisão da matéria de facto seja alterada, com a eliminação da al. d) dos factos não provados e a recondução dos demais não provados aos provados, passando a constar destes últimos os seguintes:

1) O arguido decidiu que no dia 24 de Julho de 2010 iria incendiar a floresta
2) Assim, o arguido, no dia 24 de Julho de 2010, pelas 15h00, no …, …, Ribeira de Pena, quando regressava a casa, sozinho, utilizando para o efeito um isqueiro de marca Bic e com as inscrições "Mad in Spain 202 l", de cor roxa, e através de chama directa ateou fogo na superfície herbácea junto a um caminho florestal de terra batida ali existente.
3) O fogo alastrou primeiro através dos combustíveis fósseis - giestas, caruma e restolho - ali existentes em continuidade horizontal e depois através de um sem número de pinheiros, eucaliptos e outras espécies vegetais arbóreas, ardendo um total de 0,7 hectares de carvalho, no valor de €653,35.
4) Aliás, o fogo apenas não alastrou através de uma mancha maior de várias centenas de hectares de pinheiro e eucalipto e carvalho que se desenvolve por ali adiante em continuidade horizontal em virtude da pronta actuação dos bombeiros.
5) Logo de seguida, no regresso a casa, no mesmo dia 24 de Julho de 2007, pelas l6h00, o arguido deslocou-se novamente apeado e sozinho, pelo meio do monte, em direcção ao …, …, …, Ribeira de Pena, tendo novamente ateado um incêndio, utilizando novamente a chama directa do referido isqueiro, na superfície herbácea existente junto a um caminho florestal de terra batida ali existente, que percorria em direcção a casa.
6) O incêndio alastrou primeiro através dos combustíveis fósseis - giestas, caruma e restolho ali existentes em continuidade horizontal e depois através de um sem número de carvalhos, ardendo cerca de 3,5 hectares de pinheiro e mato, cujos prejuízos foram avaliados em cerca de €8.165,85.
7) Tal incêndio apenas não alastrou através de uma mancha maior de várias centenas de hectares de carvalho e pinheiro que se espraia por ali adiante em continuidade horizontal devido à pronta actuação dos bombeiros.
8) O incêndio colocou em sério risco todas as propriedades circundantes, todas florestadas, em valor muito superior à área ardida.
9) O arguido quis provocar aqueles incêndios assim colocando em perigo as matas circundantes, nomeadamente as supra mencionadas provocando um prejuízo no valor de €8.819,20.
10) O arguido sofre de atraso mental moderado, desde a infância, provocando-lhe défices acentuados nas áreas cognitivas e na esfera relacional e afectiva.
11) Além do mais apresenta consumo de bebidas alcoólicas que também funciona como factor desinibidor e de maior impulsividade.
12) Não mostra arrependimento pelo que fez, tentando desvalorizar esses actos.
13) Quando o arguido actuou, devido à anomalia psíquica de que padece estava incapaz de se consciencializar de que tais comportamentos eram proibidos e punidos por lei.
14) Porque os factos cometidos se inserem numa expressão comportamental de distúrbio psicopatológico de que padece, que permite estabelecer uma relação de causalidade doença/incêndios, há fundado receio de venha a cometer outros incêndios de igual gravidade jurídico-penal atenta a anomalia de que padece.
15) O arguido viveu sempre com a progenitora e a avó materna, entretanto já falecida, não existindo qualquer contacto com o pai.
16) Chegou a frequentar a escola sem, contudo, obter qualquer grau académico face aos défices cognitivos.
17) Esteve desde os 12 anos até aos 18 anos de idade integrado na D….
18) A partir dos 18 anos de idade voltou a viver com a mãe numa casa sem condições, porquanto não está dotado de água e energia eléctrica.
19) A mãe do arguido encontra-se reformada por invalidez, tal como o arguido.
20) O arguido não tem antecedentes criminais.

b) o arguido seja declarado inimputável perigoso;
c) a sua conduta integra um ilícito típico de incêndio p. e p. pelo art. 274º nº 2 al. a) do C. Penal, procedendo a acusação contra ele deduzida;
d) o tribunal recorrido reabra a audiência para os fins acima indicados.
Sem custas.

Porto, 26 de Outubro de 2011
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
____________
[1] O arguido vinha acusado, como inimputável, da prática de factos integradores do crime de incêndio florestal p. e p. pelo art. 274º nºs 1 e 2 al. a) do C. Penal.
[2] (cfr. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[3] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[4] cfr. CPP de Maia Gonçalves, 12ª ed., pág. 339.
[5] cfr. Fig. Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., pág. 202.
[6] Com interesse neste particular, veja-se este trecho retirado do Ac. T.C. 198/2004 de 24/3/04, DR, II S., de 2/6/04: “O acto de julgar é do tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Como ensina Figueiredo Dias (Lições de Direito Processual Penal, pp. 135 e segs.), na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
A recolha de elementos - dados objectivos -, sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
Sobre esses dados recai a apreciação do tribunal - que é livre - artigo 127.º do Código de Processo Penal mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
A liberdade da convicção aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a da percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.”
[7] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. Idem, Ibidem, pág.298.
[8] “(…) há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” Ac. RG 20/3/06, proc. nº 245/06-1.
[9] A partir da qual o julgador há-de elaborar raciocínios lógico-dedutivos ou demonstrativos em ordem a alcançar a verificação dos “factos juridicamente relevantes” - as presunções simples ou naturais (admissíveis em processo penal, face ao disposto no art. 125º do C.P.P. e porque não são proibidas por lei).
[10] Ponto é que a sua apreciação se rodeie de cuidados acrescidos, impondo uma análise cuidadosa do valor probatório dos indícios e uma correlacionação entre todos os meios de prova disponíveis que permita afirmar com segurança o facto probando, com a exclusão de outras causas a que o(s) indício(s) também possa(m) ser atribuído(s).
Veja-se este trecho do Ac. STJ 7/1/04, proc. 03P3213, bem elucidativo acerca das regras que presidem ao funcionamento das presunções:
“Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.”
[11] “A verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação - interpretação para retirar conclusões - dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova - as presunções naturais.” cfr. Ac. STJ 6/10/10, proc. nº 936/08.JAPRT
[12] O qual só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”(Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615).
Como, citando Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, se refere no Ac. STJ 10/1/08, proc. nº 07P4198, “«A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal»”.
[13] Como se refere no Ac. STJ de 20/9/2005, proc. nº 05A2007, “a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos". Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe”.
[14] cfr. Fig. Dias, Direito Processual Penal, 1º Vol., págs. 233-234.
[15] cfr. Ac. T.C. 198/2004 de 24/3/04, acima citado.
[16] cfr. Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28
[17] cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763.
[18] cfr. Ac. STJ 12/6/08, proc. nº 07P4375 .
[19] “Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” - Ac. STJ 17/2/05, proc. nº 04P4324
[20] “(…) só nos casos em que tenha sido colocada em causa a legalidade da reconstituição dos factos é que esta não deverá ser valorada de modo positivo.” cfr. Ac. RC 22/9/10, proc. nº 65/06.1GHCTB.C1.
[21] “A reconstituição do facto, prevista como meio de prova autonomizado por referência aos demais meios de prova típicos, uma vez realizada e documentada em auto ou por outro vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» - artigo 127° do CPP.” cfr. Ac. STJ 5/1/05, proc. nº 04P3276.
[22] “Pela sua própria configuração e natureza, a reconstituição do facto, embora não imponha nem dependa da intervenção do arguido, também a não exclui, sempre que este se disponha a participar na reconstituição, e tal participação não tenha sido determinada por qualquer forma de condicionamento ou perturbação da vontade, seja por meio de coação física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no artigo 126° do CPP.” cfr. Ac. cit. na nota precedente.
[23] “Quando a reconstituição é realizada com a colaboração do arguido é de todo aconselhável que este se mostre já acompanhado de defensor, para que seja assegurado o efectivo exercício do seu direito de defesa. E isto é tão mais importante porquanto tendo este meio de prova a virtualidade de materializar e objectivar o acontecimento histórico em causa (levando em consideração também contributos do próprio arguido), o mesmo poderá ser utilizado em sede de audiência de discussão e julgamento, permitindo não só melhor compreender o facto histórico a julgar, como potenciando o êxito de produção de prova, na medida em que vale de per si.” – cfr. C.P.P. Comentários e notas práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, pág. 400.
[24] “A reconstituição do facto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está legalmente vinculada, autonomiza-se, como meio de prova, das contribuições individuais de quem nela tenha participado e das declarações que tenham co-determinado os seus termos e resultado.” cfr. Ac. RE 24/9/09, proc. nº 2829/08-1.
[25] “A reconstituição do facto, uma vez realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, autonomiza-se das contribuições individuais de quem tenha participado e das informações e declarações que tenham co-determinado os termos e o resultado da reconstituição, e as declarações (rectius, as informações) prévias ou contemporâneas que tenham possibilitado ou contribuído para recriar as condições em que se supõe ter ocorrido o facto, diluem-se nos próprios termos da reconstituição, confundindo-se nos seus resultados e no modo como o meio de prova for processualmente adquirido. cfr. Ac. cit. na nota 18.
[26] “Havendo no processo auto, regular, de reconstituição do crime em que tomou parte o arguido, mesmo que o arguido se cale em julgamento, valem como prova as informações das testemunhas que a ele assistiram e descrevem os actos pelo arguido praticados durante a mesma reconstituição.” cfr. Ac. RC 22/10/03, proc. nº 3054/03.
[27] O privilégio contra a auto-incriminação, traduzido nos direitos do arguido a não responder a perguntas ou a não prestar declarações, “significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos (v. g., documentais) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória (…). A possibilidade de colaboração co-determinante no processo, desde a fase de recolha da prova (aquisição da prova), até ao momento de administração relevante e contraditória (utilização) das provas encontra-se porém, na disponibilidade do arguido, que pode livremente colaborar na investigação e contribuir para aquisições probatórias substanciais autónomas das simples declarações que as proporcionam, e que, nessa medida, não podem ser eliminadas posteriormente pela invocação da garantia contra a auto-incriminação.” cfr. Ac. STJ 5/1/05, proc. nº 04P3276, sendo nossos os sublinhados.
“(…) a reconstituição é uma aproximação ao real acontecido, através de uma tentativa de reconstrução do facto ilícito praticado com intuitos indiciários ou probatórios. É um meio de prova e, como tal, com objectivos potencialmente incriminatórios. Como se concilia a pretensão punitiva do Estado através do uso deste meio de prova e o privilégio contra a auto-incriminação? Como todos sabem, a reconstituição não é uma diligência em que o arguido tenha a obrigação de colaboração. E, precisamente, na medida em que supõe uma participação activa do arguido na reconstrução do ilícito, passa ser um facere que pode contrariar o privilégio contra a auto-incriminação, sendo certo que o mesmo se encontra na sua inteira disponibilidade.” cfr. Ac. RC 22/9/10, proc. nº 65/06.1GHCTB.C1.
[28] “15 - A reconstituição constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações, podendo ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio, sem que tal configure violação do art. 357.º do CPP.
16 - A verbalização que suporta o acto de reconstituição não se reconduz ao estrito conceito processual de «declarações», pois o discurso ou «declarações» produzidos não têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação à recriação do facto.(…)
18 - As informações prestadas pelo arguido no acto de reconstituição não são declarações feitas à margem do processo a órgão de polícia criminal; são a verbalização do acto de reconstituição validamente efectuado no processo, de acordo com as normas atinentes a este meio de prova e particularmente com o prescrito no art. 150.º do CPP, e mesmo que prestadas, neste e naquele passo, a solicitação de órgão de polícia criminal ou do Ministério Público, destinam-se no geral a esclarecer o próprio acto de reconstituição, com ele se confundindo.
20 - Tendo todas estas provas e nomeadamente a reconstituição sido produzidas e examinadas na audiência e como tal sujeitas ao princípio do contraditório, não podendo a recorrente invocar a opção pelo silêncio de ambos os arguidos para arguir, por exemplo, a violação do princípio da cross examination em relação às «declarações» que incorporam o próprio acto de reconstituição, pois uma tal pretensão está para além do círculo de interesses que constituem a protecção essencial daquele direito, integrado no direito à defesa. ” cfr. Ac. STJ 20/4/06, proc. nº 06P363.
[29] “Na medida em que supõe uma participação activa do arguido na reconstrução do ilícito, passa ser um facere que pode contrariar o privilégio contra a auto-incriminação, sendo certo que o mesmo se encontra na sua inteira disponibilidade.” cfr. Ac. RC 17/11/10, proc. nº 250/09.4JALRA.C1.
[30] “O artigo 356 n. 7 do Código de Processo Penal não abrange na sua proibição a situação dos agentes da Polícia Judiciária ouvidos em audiência sobre a reconstituição do crime a que procederam e não sobre as declarações prestadas pelo arguido.” cfr. Ac. STJ 11/12/96, proc. nº 96P780.
[31] “Os depoimentos dos agentes de autoridade, cujo conhecimento dos factos receberam por assistirem à reconstituição dos crimes de incêndio pelo arguido e presenciaram este a admiti-los, não são depoimentos indirectos podem e devem ser valorados, por não estarmos perante prova proibida por lei, pois não se trata de declarações, cuja leitura seja proibida, pelo art. 356.º, n.º 7, do C. P. P.” cfr. Ac. RC 12/11/03, proc. nº 2050/03.
[32] “Muito embora não possam ser tidas em conta as conversas informais do arguido com os agentes policiais que intervieram na fase de inquérito, os depoimentos desses agentes sobre a reconstituição dos factos em que participaram, reduzida a auto e complementada por fotografias, constituem prova susceptível de valoração.” cfr. Ac. RC 15/12/04, proc. nº 3174/04, C.J. ano XXIX, t.V, pág. 53.
[33] “Vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o processo, e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre os modo e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto, não estando abrangidas na proibição do artigo 356º, nº 7 do CPP.” cfr. Ac. cit. na nota 18.
[34] “Se os depoimentos de um inspector da PJ e de um funcionário da Guarda Florestal - que participaram no reconhecimento documentado nos autos - não reproduzem quaisquer declarações do recorrente prestadas em inquérito, antes incidem sobre a reconstituição dos factos, em que o recorrente colaborou - meio de prova que não se confunde com a prestação de declarações - tal é admitido pelo art. 150.º do CPP. A circunstância de o arguido ter participado na reconstituição dos factos não tem o efeito de fazer corresponder esse acto a declarações suas para se concluir pela impossibilidade de valoração daquele meio de prova, ponto é que só sejam valorados como provas os depoimentos das testemunhas sobre o que observaram e não as revelações feitas durante a realização dessas diligências.” cfr. Ac. STJ 14/6/06, proc. nº 06P1574.
[35] “Os órgãos de polícia criminal, na estrita medida em que deponham sobre a actividade investigatória que realizaram, nomeadamente buscas e apreensões, ainda que levada a cabo com a colaboração ou a informação de suspeitos, não depõem sobre matérias proibidas, já que depõem, não sobre factos que lhes tenham sido transmitidos, antes, sobre o resultado da sua percepção directa, colhida durante a realização da actividade investigatória autónoma, embora sequencial. Portanto, nesta perspectiva, não se trata de depoimento indirecto, sujeito ao regime do artigo 129.º do CPP(…). Nessa estrita medida, os depoimentos dos agentes policiais constituem meio de prova processualmente válido e admissível, a valorar, como a demais prova testemunhal, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.” cfr. Ac. RP 7/3/07, proc. nº 0646472.
[36] “As testemunhas não podem ser inquiridas sobre o conteúdo de quaisquer declarações do arguido, prestadas na fase do inquérito, dado que a sua leitura não é permitida, face ao disposto no art. 357º, 1 do CPP. Nada impede, porém, que as testemunhas sejam ouvidas sobre outras diligências realizadas no inquérito para apuramento da verdade, designadamente sobre a reconstituição dos factos, meio de prova admitido no art. 150º do CPP. A circunstância de o arguido ter participado na reconstituição dos factos não tem o efeito de fazer corresponder esse acto a declarações suas, para se concluir pela impossibilidade de valoração daquele meio de prova.” cfr. Ac. RP 27/2/08, proc. nº 0717017, em que a ora relatora interveio como adjunta.
[37] “Os órgãos de polícia criminal que recolham declarações cuja leitura não seja permitida não ficam inibidos de deporem como testemunhas mas sim, e apenas, relativamente ao conteúdo daquelas declarações. Excluídas do impedimento constante do artº 356º, nº7, do CPP ficam as percepções obtidas em todos os actos processuais que não sejam interrogatórios ou inquirições, mesmo que neles tenham participado arguidos ou testemunhas. Assim acontece, como tem reconhecido a jurisprudência do STJ, com a reconstituição do facto, em que o testemunho do referido agente da Polícia Judiciária resulta de conhecimento directo sobre o que se passou nesse acto, ganhando assim autonomia, pois nessa parte não envolve a repetição de declarações do arguido.” cfr. Ac. RC 2/4/08, proc. nº 1541/06.1PBAVR.
[38] Ao qual vai de encontro a conclusão tirada no relatório social de fls. 553-556, do seguinte teor: “O arguido cresceu num ambiente familiar desfavorecido, bem como pouco estimulante e estruturante. Apresenta um atraso mental moderado, que do ponto de vista do seu funcionamento individual condiciona a sua capacidade de avaliar e ponderar de forma adequada as situações.”
[39] Mas que não o impediram de, durante o inquérito e questionado acerca de 4 incêndios ocorridos em idênticas circunstâncias temporais e proximidade geográfica, assumir a autoria de 2 deles e negar peremptória e reiteradamente a dos restantes, nem tão-pouco de assimilar a estratégia que foi delineada pela defesa, como decorre da resposta que deu ao perito médico, aquando do exame psiquiátrico a que foi submetido (“o advogado diz que não há provas”), quando por ele foi confrontado com declarações anteriores que tinha feito em que se responsabilizava por vários fogos, e, bem assim, da recusa em prestar declarações durante o julgamento. O que aqui só trazemos à colação para ilustrar a concreta extensão dos défices cognitivos do arguido. A reforçar a conclusão de que as suas limitações não o impedem de compreender, comunicar e executar tarefas pouco complexas, a aptidão por ele revelada, e referida por várias testemunhas de defesa, de fazer os “recados” que lhe são amiúde solicitados pelos seus conterrâneos.
[40] E há que salientar que a comparação entre as fotografias tiradas durante o auto de reconstituição e aquelas tiradas anteriormente durante uma diligência externa em que o arguido também participou evidenciam que, no interior de uma mata ainda com alguma dimensão, de ambas as vezes ele indicou os mesmos dois locais como sendo aqueles onde ateou os fogos.
[41] Há que notar que a al. a) do nº 2 do art. 410º do C.P.P.”se refere à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questões bem diferentes, existindo a primeira quando os factos considerados como provados não são suficientes para o julgador alcançar a conclusão jurídica a que chegou e dizendo a segunda questão respeito ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal, que é insindicável em recurso restrito à matéria de direito, como é o caso presente.” cfr. Ac. RE 8/3/05, proc. nº 1791/04-1-II.
[42] cfr. Ac. RP 6/11/96, proc. nº 9640709.
[43] “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto.
Se o tribunal ficou impossibilitado de prosseguir na descoberta da verdade material, é porque apreciou toda a matéria de facto e todas as provas admissíveis e, por conseguinte, em tal hipótese, a existir insuficiência, esta traduz-se em erro na qualificação jurídica dos factos provados, tratando-se de erro de direito ou de julgamento que dá lugar à revogação ou alteração da decisão recorrida, não ao reenvio do processo para outro julgamento.” cfr. Ac. STJ 5/11/97, proc. nº 97P549.
[44] cfr. Ac STJ 7/7/99, proc. nº 99P348.
[45] cfr. Ac. STJ 13/7/05, proc. nº 05P2122
[46] cfr. Ac. STJ de 13/5/98, CJ, Acs. do STJ, t. II, pág. 199.
[47] Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª ed., pág. 1035.
[48] cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, 2ª ed., págs. 737-739.
[49] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, t. III, 2ª ed., p. 339.