Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0512259
Nº Convencional: JTRP00038044
Relator: BORGES MARTINS
Descritores: DIFAMAÇÃO
Nº do Documento: RP200505110512259
Data do Acordão: 05/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: Na luta política pode considerar-se legítimo o uso de frases ou expressões que, no âmbito das relações privadas, seriam ofensivas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, neste Tribunal da Relação:

A- Recurso da decisão que condenou os assistentes em multa:

Nos Autos de Instrução n.º ..../02.0, da Comarca de Baião, foi proferido o seguinte despacho, constante da acta de leitura da decisão instrutória: Atentas as faltas dos assistentes B.................. e C............. e do arguido D.............., vão condenados na multa de 2 Ucs (178 euros) cada um deles.

Recorreram os assistentes desta condenação, considerando-a sem fundamento legal. Para tal invocaram preceitos que foram já alterados pelo DL n.º 320-C/2000, de 15.12., em tese geral concluindo que não foram notificados para comparecerem pessoalmente no acto, com carácter de obrigatoriedade.
Respondeu o M.º P.º junto do Tribunal recorrido, alegando que foram regularmente notificados para comparecer e não o fazendo nem justificando a falta tal acarreterá na sua condenação entre 2 e 10 Ucs.

Fundamentação:

A fls. 380 e ss consta a acta de audiência de debate instrutório, realizado em 3.12.2004, na qual se pode verificar que foram dados como presentes os dois Arguidos e dois Mandatários, não se indicando mais ninguém como faltoso. Mais se pode verificar no final da mesma acta que foram notificados os presentes da nova data para a leitura da decisão instrutória, a qual ocorreu em 15.12.2004.
Neste processado intercalar não consta nenhuma notificação aos assistentes, pelo que é com surpresa que são dados como faltosos na acta da leitura a fls. 386.
Nos termos do disposto no art.º 307.º, n.º 3 do CPP o juiz comunica aos presentes a data em que o despacho será lido, considerando-se notificados os presentes.
Resultando do art.º 113.º, n.º 9 do CPP, que a notificação da decisão instrutória aos assistentes teria depois de ser diligenciada como pessoal, caso os mesmos não estivessem presentes na diligência de leitura, tal não implica que os mesmos devessem ser condenados em multa, por não comparecerem a um acto, para o qual nem sequer foram convocados.

B- Recurso da decisão de não pronúncia:

Esta teve o seguinte teor, na vertente impugnada, por considerar não existirem indícios para levar os arguidos a julgamento:

Em primeiro lugar, porque referem os arguidos que as notícias que foram publicadas nos jornais "Repórter do Marão", edições de 3 de Agosto e de 24 de Agosto de 2001 e "O Comércio de Baião", edição de 29 de Agosto de 2001, não reproduzem com total exactidão o que constava de comunicados do Partido Socialista que foram lidos à imprensa, e que motivaram mesmo um comunicado de esclarecimento que foi igualmente publicado no primeiro daqueles jornais (fls. 36 e 37), o que faz com que se possam levantar dificuldades ao nível da prova.
Por outro lado, não se considera que as afirmações cuja autoria se imputa aos arguidos (diga-se que nem todos elas, porquanto decorre com clareza do teor de fls. 5 - recorte do jornal "Repórter do Marão", edição de 24 de Agosto de 2001 - que quem terá dito que "é de todo inconcebível. Ou alguém fecha os olhos ou não sei o que se passa. Verifica-se um aproveitamento ilícito por parte de um casal, de condições objectivas que o mandato autárquico cria para ampliar a fortuna. E toda a gente fica calada" não foi nenhum dos arguidos mas E............, o que os assistentes não colocam em causa e contra quem não apresentaram queixa) sejam clara e objectivamente ofensivas da honra e consideração, dado se referirem a questões de índole política, mais concretamente de gestão camarária, com algum interesse público, tendo sido proferidas, tanto quanto se percebe, num ambiente de eleições, sendo certo que não é raro que as pessoas que estão no mundo da política recorram a figuras de estilo ou a mensagens metafóricas quando pretendem caracterizar os seus adversários, podendo apontar-se como exemplos dessa técnica a utilização de expressões do género de Baião não ser de duas ou de três pessoas, nem ficar na América Latina, que os socialistas de Baião são vesgos (o que se pode ler em diversos cartazes colocados nesta Vila), ou ainda, num plano mais nacional, dizer-se que determinada pessoa agiu como um caudilho.
Acresce que, em concreto, não há matéria séria que permita aquilatar da vontade dos arguidos em ofender os assistentes, resultando antes que agiram no âmbito de um "combate político" (dito pelos próprios (fis. 50 e 52) e pelas testemunhas F.............. (fis. 93), G................. (fis. 95) e H............... (fis. 102).
No que se refere à existência de um tratamento privilegiado pela Câmara Municipal de Baião (CMB) ao assistente B............. relativamente a uma terraplanagem num terreno que lhe pertence, resulta do teor de fls. 44 e 45 dos autos, que tal pedido deu entrada na CMB em 06/07/1998 e teve resposta positiva no dia seguinte, não podendo deixar de se considerar que o tratamento camarário foi (e bem) célere, contrastando com a resposta atrasada que a mesma entidade terá dado a F................ quando este solicitou umas informações à Câmara, pelo menos a acreditar naquilo que o próprio conta (fls. 93), sendo certo que o Tribunal não dispõe de outros elementos de comparação.
Finalmente, tendo em conta que resulta dos documentos de fls. 119 e seguintes que se mostram registados a favor do assistente B............. 31 prédios sitos nas freguesias de Campelo e Ovil do concelho de Baião, 8 dos quais adquiridos por doação e os restantes por compra, todos eles registados a seu favor entre Dezembro de 1994 e Agosto de 1998, com especial incidência nos anos de 1995 e 1996, sempre se poderia considerar que os arguidos agiram ao abrigo da justificação da ilicitude específica prevista no artigo 180.º,2, do CP, ou seja, afirmando factos de interesse público com fundamento sério para, em boa fé, os reputarem como verdadeiros, independentemente de o serem.
Desta forma, na ausência de mais elementos de prova indiciadores de responsabilidade criminal dos arguidos e dado estes beneficiarem da presunção de inocência, considera-se que os indícios recolhidos não permitem considerar como razoável a aplicação aos arguidos de uma pena pela prática de um crime de difamação ou de outro, razão pela qual não serão pronunciados.

Recorreram os assistentes, com vista à pronúncia dos arguidos, alegando o seguinte:
a) não é aos ofendidos que incumbe fazer a prova de que os factos são torpes e falsos, mas sim aos arguidos, sobre os quais recai o ónus de provarem que tinham um interesse legítimo na sua publicação, que os factos imputados correspondiam à verdade ou tinham fundamento sério para, em boa fé, os reputarem de verdadeiros;
b) não atentou a decisão recorrida no teor dos documentos juntos aos autos;
c) está excluída a boa-fé prevista no art.º 180.º, n.º 2, al. b) do CP, por os arguidos serem dirigentes politicos concelhios de um partido político contrário ao dos assistentes e terem o especial dever de se informarem acerca da veracidade dos factos imputados;
d) as afirmações feitas versam sobre factos não verdadeiros, com o propósito de afectarem a honra devida aos assistentes.

Respondeu o M.º P.º junto do tribunal recorrido, considerando que as expressões em causa resultam de combate político eleitoral, não sendo objectivamente ofensivas de honra e consideração; os arguidos agiram ao abrigo da justificação da ilicitude própria do art.º 180.º, n.º 2 do CP.
Respondeu também o arguido D............, sublinhando o contexto de grande luta política da ocasião em que as afirmações foram publicadas; não está indiciada a autoria, pelos arguidos, das afirmações em apreço.

O Exmo PGA junto deste Tribunal da Relação pronunciou-se pelo não provimento do recurso, pelas razões da Resposta do M.ºP.º supra mencionada.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação:

Estão em causa afirmações essencialmente da mesma natureza: este tipo de actuação espelha o ambiente de prepotência e intimidação que se vive no concelho/ o marido da senhora presidente da Câmara não deve esquecer que Baião não é duas ou três pessoas, não fica na América Latina, nem é terra de coronéis, embora ele aja como se fosse/ adquiriu a maior parte dos terrenos de reserva agrícola e ecológica situados nos limites da área urbanizável do concelho, antes da autarquia a alargar, o que permitiu valorizações da ordem dos 1. 000 por cento/ uma das pessoas que mais terrenos comprou foi o marido da actual presidente da Câmara/ dar um tratamento privilegiado ao marido é coisa que não é nova para a actual presidente da Câmara/ apenas está a servir interesses especulativos e particularmente os interesses de quem comprou terrenos em reserva Agrícola e em Reserva Ecológica por um preço irrisório e que hoje valem milhares e milhares de contos. Um verdadeiro negócio da China(...).

É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu ontológico as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades.
Estas situações, entre outros meios, expressam-se ao nível da linguagem, por vezes de forma exagerada ou descabida. Onde uns reconhecem firmeza, outros qualificam de gritaria, impropérios, má educação ou indelicadeza.
Mas como se escreveu em recentes acórdãos desta Relação e Secção, “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” – ac. de 12.6.02, Recurso 332 /02, de que foi relator o Des. Dr. Manuel Braz.
Não cabe aos tribunais avaliar se uma afirmação é justa, razoável ou grosseira.
Reconhecem-se como plenamente válidas as asserções contidas na decisão recorrida, acerca da peculiar natureza do combate político eleitoral, onde é natural haver agressividade, por vezes exageradas pelo clima emocional destas situações, nas imputações de comportamentos aos responsáveis políticos.
O normal é tais imputações, quando provindas de dirigentes da oposição, gerarem profundo descontentamento nos destinatários, que sentirão que pelo contrário se sacrificaram ao serviço do bem público.
Apenas há um limite: não pode ser atingida a honra do visado – um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior - Comentário Conimbricence, Tomo I, pág. 607.
Também esta ideia do Prof. Faria Costa a ter em conta: o facto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais- de limites extraordinariamente baixos- que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica protecção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem- tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal – págs. 104-105,” Direito Penal Especial”, Coimbra Editora, 2004.
Encontramos a mesma constatação na doutrina e jurisprudência comparados:
na luta política, para a consecução dos fins a que esta aspira, historicamente verificou-se uma alteração na linguagem e uma desensibilização da opinião pública sobre o significado de algumas palavras e sobre certas frases usadas por pessoas que na mesma estão envolvidas, de modo que pode considerar-se como legítimo o uso de frases e expressões que em comum, no âmbito das relações privadas, seriam ofensivas – “Diffamazione a mezzo stampa e risarcimento del danno”, Francesco Verri e Vincenzo Cardone, giuffré editore, 2003, pág. 210.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reteve como licitas, no âmbito da luta política, uma expressão como imbecil,(1.7.1997, DDP, 1997, 10, 1209); lobbista, experiente em urbanizações selvagens, comissário de negócios sujos, são outros exemplos mencionados na ob. cit. , a fls. 213.
Nas apontadas asserções poderá depara-se com algum tipo de censura, ao nível ético, de deselegância, de injusto possivelmente – mas no fundamental trata-se de debate político corriqueiro e do quotidiano da democracia.
Diferente seria o caso de se tratar de expressões gratuitamente injuriosas, não correlacionadas com a ideia que se pretende exprimir ou a formulação de juízos de valor que não exprimissem uma polémica tomada de posição contra um particular modo de gerir os assuntos públicos mas apenas uma vontade de agressão gratuita e de confronto com a personagem pública.
Os próprios documentos a que o recorrente faz alusão traduzem uma variedade de incorporações patrimoniais no casal assistente que não será excepção - e vão ao encontro de um sentimento geral de observação de enriquecimento substancial dos autarcas, e que não raro tem originado mediáticos processos crime.
Por outro lado, a imputação de actos especulativos e de tratamento privilegiado não é imputação de actos criminosos, cuja autoria lançasse o opóbrio sobre os seus autores.

Decisão:

Pelo exposto, acordam os juizes deste Tribunal da Relação em conceder provimento parcial ao recurso, interposto pelos assistentes B.............. e C............., revogando o despacho da sua condenação em multa; e confirmando integralmente a decisão de não pronúncia.
Os recorrentes pagarão taxa de justiça cujo montante se fixa em 7 Ucs.

Porto, 11 de Maio de 2005
José Carlos Borges Martins
José Manuel da Purificação Simões de Carvalho
Maria Onélia Vicente Neves Madaleno