Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1734/11.0TTPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: JUSTIFICAÇÃO DA FALTA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201301211734/11.0TTPRT.P1
Data do Acordão: 01/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A instrução genérica de serviço, emitida pelo empregador, no sentido de que não serão justificadas as faltas para doação de sangue nos feriados de 25 de Dezembro e 1 de Janeiro e respetivas vésperas contraria o disposto no art. 26º, nº 1, do DL 294/90, de 21.09, devendo a não justificação da falta decorrer de uma apreciação casuística, perante a verificação de que, em cada caso concreto, ocorrem “motivos urgentes e inadiáveis de serviço que naquele momento desaconselhem o seu [do trabalhador] afastamento do local de trabalho”.
II - Ao empregador compete, nos termos do art. 342º, nº 2, do Cód. Civil, o ónus de alegação e prova dos factos que, nos termos do citado art. 26º, nº 1, poderão determinar a não justificação da falta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 1734/11.0TTPRT.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 610)
Adjuntos: Des. Maria José costa Pinto
Des. António José Ramos

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

B…, intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra C…, pedindo:
- a declaração de ilegalidade do Aviso …;
- a declaração de justificação da ausência do A. ao serviço no dia 31/12/2010 e ilícita a sanção disciplinar aplicada àquele;
- a condenação da Ré a pagar ao A. o valor de € 32,36 de vencimento, complemento salarial, diuturnidades e agente único acrescida dos juros à taxa legal que se vencerem desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, e em síntese, alegou que detém a categoria de motorista de serviço público, é dador de sangue e no dia 29/12/2010, informou que iria doar sangue no dia 31 seguinte e requereu a justificação da ausência; no dia 31/12/2010, durante a manhã, efetuou uma dádiva de sangue e logo no 1.º dia de trabalho após essa ausência apresentou à Ré documento comprovativo só que esta, durante a tarde, deu-lhe conhecimento que esse pedido tinha sido indeferido, escalando-o de serviço nesse dia; como o A. não compareceu ao serviço escalado, a sua ausência foi considerada injustificada e foi sujeito a procedimento disciplinar, sendo punido com repreensão registada.

A Ré contestou alegando, em síntese, que a falta de trabalhadores, por motivos de dádiva de sangue, causou, ao longo dos anos, perturbação na organização do trabalho da Ré, razão pela qual foram emitidos avisos internos que regulam a situação, o que era do conhecimento do Autor; as partes devem agir de boa fé no cumprimento das obrigações, pelo que o trabalhador, na escolha do dia para dar sangue, deveria ter ponderado que a R. presta serviços de transporte de interesse público.

Proferido despacho saneador, com dispensa da seleção da matéria de facto, fixado o valor da ação (em €5.000,01), realizada a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto, foi proferida sentença julgando a ação improcedente e absolvendo a ré dos pedidos contra ela formulados.

Inconformado, veio o A. recorrer, formulando, a final das suas alegações, as seguintes conclusões:
“1ª - O Aviso …, da C… é um instrumento de gestão desta na avaliação e decisão de questões relacionadas com a justificação/injustificação de ausências ao serviço dos trabalhadores, no caso o Rc;
2ª – Tal Aviso acoberta as decisões da Rd no que concerne à justificação/injustificação dos dias de ausência para dádivas de sangue;
3ª – As clª 36ª e 37ª do AE celebrado entre a C… e o D… – onde se encontra filado o Rc – regula as situações e condições de justificação das ausências ao serviço;
4ª – A ausência do Rc ao serviço no dia 31.12.10 foi justificada pela C… pelo facto da ausência ocorrer naquele específico dia e do documento entregue pelo trabalhador não “comprovar a urgência da dádiva”;
5ª – Não cumprindo, assim, o disposto naquele Aviso interno;
6ª – Está provado que o Rc – como dador de sangue há muitos anos – sempre procedeu da mesma forma como no dia 31.12. e entregou os mesmos documentos comprovativos da justificação da ausência;
7ª – E em todas essas situações sempre a C… lhe justificou a ausência;
8ª – E, nesta ausência concreta, o Rc deu cumprimento quer quanto aos procedimentos internos instituídos na empresa quer quanto ao cumprimento dos formalismos legais exigidos no AE nas clªs 36ª e 37º;
9ª – Não se alcança, assim, que o RC não tenha dado cumprimento ao estatuído na clª 36ª, nº 3, do AE, como se concluiu na douta sentença;
10ª – Tanto mais que a C…, para injustificar a ausência do Rc no dia 31.12 não aduziu, sequer, violação de preceitos legais e ou regulamentares, mas sim e apenas que aquele “não comprovou a urgência da dádiva” para o dia 31 e para o qual não podia faltar nos termos do Aviso;
11ª – Não se vislumbrando quer da lei quer do AE que no documento comprovativo da dádiva deva constar, obrigatoriamente, a referida menção;
Para além do mais
12ª – Nunca a C… alegou em seu abono e tal deu a conhecer ao trabalhador na Nota de Culpa que “existiam motivos urgentes e inadiáveis de serviço” que o desaconselhassem de se afastar do seu local de trabalho, naquele momento (dia 31);
13ª – Sendo que tal ónus é imposto pelo D.L. 294/90;
14ª – Ora, o dito Aviso interno não é fonte de direito;
15ª – Sem embargo de que impõe restrições que ultrapassam o enquadramento legal e regulamentar estabelecido para as ausências dos trabalhadores ao serviço da R para efeitos de dádivas de sangue;
16ª – E, nesta medida, clama o Recorrente pela sua ilegalidade;
17ª – Conclui-se, assim, que a decisão da MM Juiz a quo não encontra suporte nas normas em apreço que sufraguem a sua douta decisão
18ª – Razões estas que justificam o presente recurso por se entender que a decisão do Mm Juiz a quo, por deficiente interpretação do clausulado, violou a clª 36ª e 37º do AE, bem como o disposto no art.º 26º do D.L. 294/90, de 21.09.90.
Termos em que devendo ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a douta sentença parte recorrida e substituindo-a por outra que dê tradução ao conteúdo das conclusões apresentadas (…)”.

A Ré contra-alegou pugnando pelo não provimento do recurso.

A Exmª Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da confirmação da sentença recorrida, sobre o qual as partes, notificadas, não se pronunciaram.

Colheram-se os vistos legais.
*
II. Matéria de Facto dada como provada pela 1ª instância:
1. Por contrato de trabalho celebrado entre Autor e Ré em 23/07/2001, foi aquele contratado para, sob as ordens, direção e fiscalização desta, exercer as funções de motorista de serviço público;
2. Autor detém a categoria de motorista de serviço público;
3. O Autor é dador de sangue com o n.º nacional ……;
4. No dia 29 de Dezembro de 2010 o Autor informou a Ré que iria dar sangue no dia 31 seguinte e requereu a justificação da ausência;
5. A Ré não autorizou a falta do Autor o que publicou no portal no dia 31 de Dezembro de 2010;
6. A Ré escalou o Autor para o serviço no dia 31 de Dezembro de 2010;
7.No dia 31 de Dezembro de 2010, durante a manhã, o Autor efetuou uma dádiva de sangue no serviço de imuno-hemoterapia do Hospital … e logo no primeiro dia de trabalho após a sua ausência apresentou à Ré documento emitido pelo Hospital … comprovando a dádiva de sangue efetuada;
8. A ausência do Autor nesse dia provocou perturbações na organização do trabalho agravadas pelo facto do dia em questão se inserir numa época festiva, o que acarretou reduções dos serviços e um acréscimo de pedidos de ausência;
9. Em consequência de não ter justificado a ausência do Autor, no mês de Janeiro de 2011, a Ré retirou ao Autor as seguintes importâncias a título de vencimento--€23,12, complemento salarial--€ 0,34, diuturnidade--€ 2,22 e agente único--€ 6,68;
10. Por via disso, por comunicação datada de 09 de Fevereiro de 2011, a Ré endereçou ao A. nota de culpa nos termos constantes do documento de fls. 20 a 22 cujo teor se dá por reproduzido;
11. O A. respondeu à nota de culpa mediante escrito dirigido à R., via CCT, em 22/02/2011 nos termos de fls. 24/25;
12. Por decisão da Presidente do CA da Ré, com data de 24 de Março de 2011, foi o Autor punido com a sanção disciplinar de “repreensão registada”;
13. O procedimento instituído na Ré para as ausências de serviço, quaisquer que sejam, consiste numa comunicação escrita do trabalhador em impresso próprio fornecido pela Ré, entregue no próprio dia da ausência ou nos imediatos, no caso de ausências imprevisíveis e, sendo previsíveis, com a maior antecedência possível, em que os trabalhadores solicitam a justificação da ausência indicando qualquer das situações previstas na cláusula 37.ª, n.º 1 do AE e juntam documento neste exigido que comprove
cada uma das situações em causa;
14. Desde que trabalha na Ré que o A. tem efetuado, ao longo dos anos, dádivas de sangue;
15. Para o efeito, sempre procedeu da forma acima referida;
16. Nas situações anteriores em que o Autor efetuou dádivas de sangue, sempre a Ré justificou as ausências;
17. A falta de trabalhadores por motivos de dádiva de sangue causou ao longo dos anos, perturbação na organização de trabalho da Ré, razão pela qual foi emitido o seguinte aviso “Nas épocas festivas e resultante de pressões de vária ordem, temos vindo a constatar um aproveitamento abusivo e progressivo do estipulado para a utilização da dispensa por dádiva de sangue.
Nestas situações o serviço prestado pela C… sofre uma acentuada degradação uma vez que para além das normais reduções de serviço e dum maior recurso a pedidos de ausência assiste-se posteriormente a ausências imprevistas que são depois legalizadas com recurso à licença acima referida.
Para corrigir uma tendência altamente prejudicial à empresa e à imagem de quantos aqui trabalham informa-se que, para os dias de Natal e Ano Novo e respectivas vésperas, a C… não aceitará justificações de ausência evocando dádiva de sangue a menos que esta resulte de um pedido de urgência para esses dias, devidamente comprovado por declaração escrita a emitir pela entidade que recebe essa dádiva.”
18. O alegado aviso encontrava-se publicado, em 2005, por afixação nos locais de estilo da Ré e nos anos subsequentes no portal da intranet, em termos de poder ser conhecido pelos trabalhadores;
19. A Ré tem um efetivo de 1600 trabalhadores, dos quais 341 são dadores de sangue inscritos;
20. O escopo empresarial da Ré C… tem inerente um interesse público decorrente da prestação de serviços de transporte aos cidadãos nos termos da concessão que lhe é atribuída pelo Estado Português;
21. Tal concessão obriga a empresa a garantir a realização de serviços de transporte em determinadas linha durante 365 dias do ano, parte dos quais durante 24 horas.
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Na nota de culpa mencionada no nº 10 dos factos provados consta o seguinte:
“(…)
2 – O arguido, em 20.12.2010, solicitou dispensa, para doar sangue, para o dia 31.12.2010, pedido este indeferido/recusado.
3 – Mesmo assim, o arguido faltou nesse dia.
Acontece que,
4 – O arguido viria a apresentar um documento, datado de 31.12.2010, do Hospital … a atestar em como esteve presente no serviço de imuno-hemoterapia onde efectuou uma dádiva de sangue.
E isto quando,
5 – O arguido, através do Aviso …, que “… para os dias de Natal e Ano Novo e respectivas vésperas, a C… não aceitará justificações de ausência evocando dádiva de sangue, a menos que esta resulte de um pedido de urgência para esses dias, devidamente comprovado por declaração escrita a emitir pela entidade que recebe essa dádiva”.
Porém,
6 – O documento entregue não comprova a urgência da dádiva (conf. Aviso …), motivo pelo qual a justificação apresentada não pode ser considerado.
Assim,
7- A atitude do arguido é reveladora do seu manifesto desinteresse no exercício das suas funções, com absoluto desrespeito pelas normas da empresa, pela sua Entidade Patronal, pelos seus colegas de trabalho e pelos clientes da empregadora.
8 – Nos termos da cláusula 36ª do Acordo de Empresa aplicável, conjugada com o disposto no artigo 249º, nºs 1, 2 alínea i) e 3 da Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro e Ordenações do CA de 16.09.97 (CA OR 013,97) e de 26.03.98 (CA OR 01.98), a falta não autorizada pela entidade patronal, em virtude da improcedência da justificação apresentada pelo trabalhador, determina que a mesma seja considerada injustificada e sujeita a instauração de procedimento disciplinar.
9 - Com o seu comportamento, o arguido causou prejuízos à entidade patronal, pondo em causa a programação e funcionamento do serviço, tendo criado, desta forma, perturbações à organização do trabalho.
10 – Tal comportamento descrito consubstancia, também, uma infracção disciplinar grave, nos termos do disposto no nº 2 do art. 256º da Lei 7/2008 de 12 de Fevereiro, uma vez que, no dia 31 de Dezembro de 2010, o arguido faltou antes de um período de descanso (01.01.2011).
Em conclusão,
11- O arguido sabia e tinha consciência que a sua conduta, atrás descrita, era punível disciplinarmente.
12 – O arguido violou, assim, obrigações emergentes do seu contrato de trabalho, nomeadamente, a de respeitar e tratar a entidade patronal, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa com urbanidade e probidade, a de comparecer ao serviço com pontualidade e assiduidade, a de realizar o trabalho com zelo e diligência, a de obedecer à entidade patronal em tudo o que respeite à execução e disciplina do trabalho, a de guardar lealdade à entidade patronal e a de promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa (conforme o previsto nas alíenas a), b), c), e), f) e h) do Artº 128º do C.T. aprovado pela Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro, bem como os deveres impostos pelo Acordo de Empresa (cfr. Cláusula 6ª, nº 1, 2, 4 e 8).
13 - (…)”
*
III. Do Direito

1. Nos termos do disposto nos artºs 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1, do CPC (na redação introduzida pelo DL 303/2007, de 24.08), aplicáveis ex vi do disposto nos artºs 1º, nº 2, al. a), e 87º do CPT (na versão introduzida pelo DL 295/2009, de 13.10), as conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o objeto do recurso, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
Daí que sejam as seguintes as questões a apreciar (pela ordem por que o faremos):
- Da ilegalidade do Aviso …;
- Se a falta dada pelo A. no dia 31.12.2010 deve ser considerada justificada e, por consequência, se é ilícita a sanção disciplinar aplicada.

2. Da 1ª Questão

Tem esta questão por objeto a alegada ilegalidade do Aviso DOP AV 430.05 (ao qual se reporta o nº 17 dos factos provados), ilegalidade que o Recorrente sustenta por entender que ele ultrapassa o enquadramento legal e regulamentar estabelecido para as ausências dos trabalhadores ao serviço da ré para efeitos de doação de sangue.
Ao caso é aplicável o CT/2009[1], bem o Acordo de Empresa publicado no BTE, nº 43, de 22.11.84, instrumento este cuja aplicabilidade é invocada nos autos, mormente na sentença recorrida e não é posta em causa.
Para além das demais situações previstas no art. 249º do CT, este, no seu nº 2, al. j), refere que são consideradas faltas justificadas as que por lei sejam como tal consideradas, dispondo ainda o art. 250º do mesmo que as disposições relativas aos motivos justificativos de faltas e à sua duração não podem ser afastadas por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (salvo em relação à situação prevista na al. g) do nº 2 do citado art. 249º), nem por contrato de trabalho.
Por sua vez dispõe o art. 26º do DL 294/90, de 21.09 que:
1 – Aos dadores benévolos de sangue é concedida autorização para se ausentarem das suas actividades, a fim de darem sangue, por solicitação de qualquer dos serviços da rede nacional de transfusão de sangue ou por iniciativa própria, salvo quando haja motivos urgentes e inadiáveis de serviço que naquele momento desaconselhem o seu afastamento do local de trabalho.
2 – No caso previsto no número anterior, se não se comprovar a apresentação do trabalhador no local da colheita de sangue, a falta ao trabalho é considerada, nos termos gerais da lei, como injustificada, sem prejuízo do procedimento disciplinar a que haja lugar.
3 – As ausências ao trabalho a que se refere o nº 1 não determinam a perda de quaisquer direitos ou regalias e, designadamente, não são descontadas nas licenças.
4 – (…).
De referir que, nos termos do preâmbulo do citado diploma “Cabe (…) aos cidadãos (…) o dever social de contribuírem para a satisfação das necessidades colectivas daquele produto” [sangue], o qual “é considerado uma dádiva à comunidade (…)”.
Quanto ao AE prevê ele como justificada a falta dada para doação de sangue, na medida de 1 dia por cada doação.
O mencionado enquadramento normativo não pode ser contrariado por determinação do empregador, que não pode coartar ou restringir a possibilidade da doação de sangue por parte do trabalhador nem o consequente direito de ver a sua falta justificada, a menos que hajam “motivos urgentes e inadiáveis de serviço que naquele momento desaconselhem o seu afastamento do local de trabalho”. Esta exceção, a nosso ver, não se compadece com uma mera perturbação do serviço, mas sim “com motivos urgentes e inadiáveis” do serviço que desaconselhem a ausência. E, por outro lado, essa apreciação apenas será compatível perante uma verificação casuística, aquando da falta [“(…) que naquele momento (…)”, como diz a lei], da efetiva e real da necessidade de o trabalhador não se ausentar, e não com base num juízo prévia e de forma abstrata e genericamente formulado.
No caso, a Ré, em 2005, emitiu e deu a conhecer aos seus trabalhadores o Aviso referido no nº 17 dos factos provados, aviso que, dada a sua formulação abstrata e genérica, e desligada da apreciação casuística de cada falta e sua efetiva repercussão na organização do trabalho, se nos afigura coartar e restringir o regime legal das faltas para doação de sangue, restrição que não é admissível por essa via e que extravasa os limites do poder de conformação da prestação laboral por parte do empregador.
Por outro lado, conferindo a lei ao trabalhador o direito a ver justificada a falta que dê para doação de sangue, a possibilidade dessa justificação não ocorrer consubstancia uma situação de exceção, pelo que é ao empregador que compete o ónus de alegação e prova da existência de situação justificativa, em cada momento, da recusa de autorização da falta dada para o efeito (art. 342º, nº 2, do Cód Civil). Ou seja, é ao empregador que compete a prova da existência de “motivo urgente e inadiável que desaconselhe” a falta e não ao trabalhador, sob pena da falta ser considerada injustificada, a prova de que a dádiva de sangue resulta de um pedido de urgência por parte da entidade que a recebe, tal como imposto no mencionado Aviso. Tal exigência, formulada em abstrato e de forma genérica para valer independentemente da concreta, real e efetiva situação que se verifique em cada momento em que a autorização da falta seja requerida, não só consubstancia uma limitação ao regime legal, como subverte as regras gerais de repartição do ónus da prova.
Ou seja, e em conclusão, entendemos que a restrição, genérica e abstrata, constante do mencionado Aviso, não é legal, não sendo, em consequência, dispensada a apreciação casuística da justificação da falta para doação de sangue e dos pressupostos que, em cada caso concreto, poderão motivar a não autorização e justificação dessa falta.

3. Da 2ª questão

Tem esta questão por objeto saber se a falta dada pelo A. no dia 31.12.2010 deve ser considerada justificada e, por consequência, se é ilícita a sanção disciplinar aplicada.

3.1. Da justificação (ou não) da falta

Relativamente ao Aviso em questão sobre ele já nos pronunciámos acima, decorrendo das considerações aí tecidas que não pode ele ser invocado para, sem mais, fundamentar a recusa de justificação da falta dada pelo A. para doação de sangue, sendo que tal recusa apenas poderia ser fundamentada em motivo urgente e inadiável que, nesse momento, se verificasse e que desaconselhasse a ausência do A., competindo à Ré o ónus de alegação e prova de tal facto.
Ora, a “factualidade” constante da nota de culpa, bem como a dada como provada na sentença [segundo a qual a ausência do A. nesse dia provocou perturbações na organização do trabalho] afigura-se-nos insuficiente no sentido de fundamentar a recusa da justificação da falta.
Aliás, e em bom rigor, o constante quer da nota de culpa (ponto 9), quer do nº 8 dos factos assentes, mais não consubstanciam do que conclusões, pelo que este nº 8 deverá, até, ser tido como não escrito atento o disposto no art. 646º, nº 4, do CPC. Mas, mesmo que assim se não entendesse, ele não permite saber que perturbações, em concreto, se verificaram na organização do trabalho em consequência da falta do A. e, assim, aquilatar, na concreta situação em apreço, da imprescindibilidade, necessidade ou conveniência da presença do A. por forma a poder concluir-se no sentido de que a sua ausência era desaconselhada e justificaria a recusa da autorização. E para tanto não basta a prova de que a falta ocorreu em período festivo, em que se verificam reduções de serviço e um acréscimo de pedidos de ausência, sendo necessário algo mais do que isso para se poder concluir que, por falta de motoristas, a Ré não poderia dispensar a presença do A. no dia 31.12.2010. Ora, porque impeditivo do direito à justificação da falta para doação de sangue, competia à Ré o ónus da prova dos factos justificativos da recusa dessa justificação (art. 342º, nº 2, do Cód. Civil), prova essa que, como se disse, não fez.
Por outro lado, não procede também o argumento, invocado pela Ré, de que a falta não foi, em concreto, autorizada e que o A. sabia dessa falta de autorização. Com efeito, da matéria de facto provada apenas decorre que o A., no dia 29.12., informou a Ré que iria dar sangue no dia 31 e requereu a justificação da ausência e que a Ré o não autorizou, falta de autorização essa que foi publicada no portal no próprio dia 31. Ou seja, de tal factualidade resulta que a não autorização apenas foi publicitada no próprio dia da falta, desconhecendo-se se o A. disso terá tido conhecimento atempadamente, isto é, de modo a, perante essa falta de autorização, poder prestar o seu trabalho. De todo o modo, essa falta de autorização sempre deveria ser, conforme decorre do acima referido, concretamente fundamentada, competindo à Ré o ónus de alegação e prova dos respetivos pressupostos.

Acontece é que, nos termos da clª 36ª, nº 3, do AE as faltas previsíveis devem ser comunicadas com a maior antecedência possível de forma a evitar perturbações do serviço e que, pese embora tal clª não defina um concreto período de tempo, o art. 253º, nº 1, do CT dispõe que a ausência, quando previsível, é comunicada ao empregador, acompanhada da indicação do motivo justificativo, com a antecedência mínima de 5 dias, e o nº 2, que, caso tal antecedência não possa ser respeitada, nomeadamente por a ausência ser imprevisível com essa antecedência, a comunicação ao empregador deverá ser feita logo que possível, tudo sob pena da ausência ser injustificada (nº 5 do citado art. 253º).
Por outro lado, compete ao trabalhador o ónus de alegação e prova do cumprimento de tal prazo ou, não sendo a falta previsível de modo a que o mesmo seja respeitado, cabe-lhe a prova dos factos correspondentes, de forma a que se conclua pela impossibilidade da sua observância, prova essa que, no caso, não foi feita.
Com efeito, o A. apenas comunicou a falta com dois dias de antecedência e não já com os referidos cinco dias. E, por outro lado, nem alegou, nem fez prova, como lhe competia, de que a falta não fosse ou não pudesse ser previsível com maior antecedência de modo a justificar a comunicação com, apenas, dois dias de antecedência.
A este propósito diga-se que, sem que o A. o haja impugnado ou atacado no recurso, na sentença recorrida referiu-se que “(…) nos termos da cláusula 36.ª, n.º 3 do AE, no caso de serem previsíveis, as faltas devem ser comunicadas com a maior antecedência possível de forma a evitar perturbações de serviço.
Ora, a comunicação de intenção de doar sangue, com apenas dois dias de antecedência em relação ao dia 31 de Dezembro manifestamente não cumpriu a referida cláusula do Acordo de Empresa.”
Assim sendo, consideramos que a falta do A. deverá ser considerada injustificada, o que, nos termos do art. 256º, nº 1, do CT/2009, determina a perda da retribuição correspondente.

De todo o modo, mesmo que se considerasse justificada a falta, cumpre esclarecer que não seria de, agora, proceder à condenação da Ré a pagar ao A. a quantia de €32,36 a título de vencimento, complemento salarial, diuturnidades e agente único, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento, quantia aquela descontada nos termos referidos no nº 9 dos factos provados.
Com efeito, tal pedido foi formulado na petição inicial, sendo que a mencionada quantia foi descontada conforme decorre do no nº 9 dos factos provados.
Acontece que o A., no recurso e tendo embora decaído em tal pedido, não recorreu desse segmento.
Com efeito, é o que resulta quer do introito das suas alegações, quer das conclusões.
Naquelas (alegações), o Recorrente refere que “Vai o presente recurso interposto da decisão do Mm Juiz a quo que julgou totalmente improcedente o peticionado pelo recorrente, no que tange:
- à declaração da ilegalidade do Aviso …
- à declaração da justificação da ausência do A. ao serviço no dia 31.12.10 e consequente ilicitude da sanção disciplinar aplicada.”.
Ou seja, o A. restringe o objeto do recurso a essas duas questões.
E, nas conclusões (assim como na restante parte das alegações), não faz também qualquer alusão à revogação da sentença na parte que se reporta à absolvição do pedido que tinha por objeto a condenação no pagamento da quantia de €32,36.

3.2. Da sanção disciplinar aplicada

O facto de a falta dada dever ser considerada como injustificada, não significa, todavia, que seja lícita a sanção disciplinar aplicada (por virtude da injustificação dessa falta), pelas razões que se aduzirão.
Da nota de culpa, a qual, sob pena de preterição do direito de defesa, baliza os termos da acusação imputada ao trabalhador, decorre que ao A. lhe foram imputados os seguintes factos: ter solicitado, em 29.12.2010, dispensa para doar sangue para o dia 31.12.2010; ter faltado ao trabalho, por esse motivo e nesse dia, não obstante tal pedido lhe ter sido indeferido/recusado; e saber, através do mencionado Aviso, que a Ré não aceitaria, para os dias de Natal e Ano Novo e respetivas vésperas, justificações de ausência para dádiva de sangue, a menos que resulte de um pedido de urgência para esses dias, devidamente comprovado por declaração escrita a emitir pela entidade que recebe a dádiva; o documento entregue pelo A. não comprovar a urgência da dádiva; com o seu comportamento, ter o A. causado prejuízos, pondo em causa a programação e funcionamento do serviço, tendo criado perturbações à organização do trabalho.
Ou seja, o trabalhador não pode ser disciplinarmente punido por factos de que não foi acusado na nota de culpa e, no caso, na nota de culpa não foi imputado ao A. o incumprimento desse prazo de 5 dias e/ou que a comunicação não haja sido feita com maior ou com a necessária antecedência possível. O que lhe foi imputado foi apenas e tão só ter faltado quando o pedido de autorização lhe havia sido inferido e, bem assim, saber o A., atento o já mencionado Aviso, que a Ré não aceitaria justificações de ausência com fundamento em dádiva de sangue nos dias de Natal e Ano Novo e respetivas vésperas.
Por outro lado, não nos parece, também e salvo melhor opinião, que proceda o argumento, invocado pela Recorrida, de que a boa-fé na execução contratual impusesse que o A. se abstivesse de faltar ao trabalho no dia em questão e que este haja atuado com abuso de direito (tal como também considerado na sentença).
É certo que o dia 31.12 coincide com um período de festividades, que da matéria de facto provada decorre que essa época acarreta um acréscimo de pedidos de ausência e reduções dos serviços e que a falta de trabalhadores por motivos de dádiva de sangue causou ao longo dos anos perturbação na organização do trabalho da Ré, o que levou à emissão do já referido Aviso, que era do conhecimento do A.
Não obstante, no caso em apreço, e como já referido, não decorre da matéria de facto provada factos suficientes que permitam aquilatar da real e concreta perturbação do serviço que a falta do A., nesse dia, iria ocasionar ou ocasionou por forma a podermos concluir no sentido de que era necessária ou, pelo menos, desaconselhada, a sua ausência, sendo que também não decorre dos factos provados que tais concretas razões a, porventura existirem, terão sido comunicadas ao A.
Ora, perante a omissão de tal prova, não é possível concluir que o A. haja adotado comportamento contrário ao principio geral da boa fé na execução contratual previsto no art. 126º, nº 1, do CT ou que haja posto em causa a colaboração na obtenção de maior produtividade da Ré (art. 126º, nº 2, e 128º, nº 1, al. h), do mesmo), assim como que haja atuado em abuso de direito.
Acresce que a falta por motivo de doação de sangue é um imperativo social que não é, nem pode ser visto, como uma situação de absentismo laboral, apenas não devendo ser permitida em situações concretas e devidamente justificadas por necessidades imperiosas do serviço, prova essa que compete ao empregador e que, no caso, a Ré não fez.
Resta referir que pese embora não se nos afigure que a doação de sangue demande necessariamente a falta ao trabalho da totalidade do dia de trabalho, a verdade é que o AE prevê a concessão, para tal efeito, de um dia de trabalho, para além de que nem decorre dos factos provados que outra fosse a prática da Ré e, bem assim, que tivesse sido imputado ao A., na nota de culpa, que tivesse este faltado por período de tempo superior ao que lhe seria permitido.
Assim sendo, e pese embora a falta deva ser considerada injustificada atento o incumprimento do disposto no art. 253º, nº 1, e falta de prova, por parte do A., da situação prevista no nº 2 desse preceito, afigura-se-nos ilícita a sanção disciplinar, de repreensão registada, aplicada ao A.

4. Ou seja, e em conclusão, afigura-se-nos que procedem parcialmente as conclusões do recurso, considerando-se ilegal, por contrariar o disposto no art. 26º, nº 1, do DL294/90, de 21.09, o Aviso … e, bem assim, considerando-se ilícita a sanção disciplinar aplicada.
Já quanto à declaração da justificação da falta, entendemos não procederem as conclusões do recurso.
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IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, em consequência do que se decide:
a. Declarar ilegal o Aviso …, a que se reporta o nº 7 dos factos provados e julgar ilícita a sanção disciplinar de repreensão registada aplicada ao Autor em consequência da falta ao serviço dada no dia 31.12.2010, assim se revogando, nesta parte, a sentença recorrida;
b. Absolver a Ré do demais peticionado, assim confirmando-se, nesta parte, a sentença recorrida.

Custas, na 1ª instância, na proporção do decaimento, que se fixa em 1/3 para o A. e 2/3 para a Ré.
Custas do recurso pela Recorrida.

Porto, 21-01-2013
Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho
Maria José Pais de Sousa da Costa Pinto
António José da Ascensão Ramos
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[1] Abreviatura de Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12.02.
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SUMÁRIO
I. A instrução genérica de serviço, emitida pelo empregador, no sentido de que não serão justificadas as faltas para doação de sangue nos feriados de 25 de Dezembro e 1 de Janeiro e respetivas vésperas contraria o disposto no art. 26º, nº 1, do DL 294/90, de 21.09, devendo a não justificação da falta decorrer de uma apreciação casuística, perante a verificação de que, em cada caso concreto, ocorrem “motivos urgentes e inadiáveis de serviço que naquele momento desaconselhem o seu [do trabalhador] afastamento do local de trabalho”.
II. Ao empregador compete, nos termos do art. 342º, nº 2, do Cód. Civil, o ónus de alegação e prova dos factos que, nos termos do citado art. 26º, nº 1, poderão determinar a não justificação da falta.

Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho