Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0720800
Nº Convencional: JTRP00040278
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ARTICULADOS
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
PODERES DO JUIZ
Nº do Documento: RP200704240720800
Data do Acordão: 04/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 246 - FLS 30.
Área Temática: .
Sumário: I – O convite ao aperfeiçoamento dos articulados baseado no nº 3 do artº 508º do CPC está reservado a falhas menores na alegação dos factos, não sendo permitida a intromissão do juiz na intromissão do pleito, o que conduziria à violação do princípio do dispositivo (artº 264º do CPC).
II – O convite ao aperfeiçoamento não pode bulir com a estrutura básica da causa de pedir ou afectar o que resulta dos princípios do dispositivo, da preclusão e da estabilidade da instância (artº 268º do CPC).
III – O convite ao aperfeiçoamento baseado no citado nº 3 do artº 508º é um poder funcional não vinculado, que o juiz pode ou não exercer de acordo com o seu prudente arbítrio e as circunstâncias do caso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B………., residente na Rua ………., ………., Paredes, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra C………., residente na Rua ………., n.º .., r/c, Ermesinde, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 29.765, 68, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.
Alega para o efeito que, em 05.01.2002, o Réu emitiu uma letra de câmbio no valor de € 19.951,92, a qual não pagou nem na data de vencimento nem posteriormente, não obstante o Autor o ter interpelado para tal.

Regularmente citado, o Réu apresentou contestação onde invoca a prescrição do direito do Autor e impugna os factos alegados na petição inicial.
No mesmo articulado deduziu pedido de condenação do Autor como litigante de má-fé.

A Mmª Juiz a quo dispensou a audiência preliminar e conheceu imediatamente do pedido, julgando procedente a excepção da prescrição e absolvendo o Réu do pedido.
Julgou-se também improcedente o pedido de condenação do Autor como litigante de má fé.

O Autor não se conformou com a decisão da 1ª instância e recorreu.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com efeito devolutivo – v. fls. 84.

Nas alegações de recurso o apelante pede que se revogue o julgado e formula, para esse fim, as conclusões que seguem:
1. A decisão sob censura apresenta uma enorme confusão quanto à caracterização da situação jurídica em apreço, e uma total e incorrecta aplicação do Direito.
2. A presente acção foi instaurada como uma acção de processo comum sob a forma de processo ordinário declarativo de condenação – artigos 460º, 461º e 462º do CPC e não sob a forma de processo comum de execução – artigo 465º do referido código.
3. Por isso, a decisão sob censura errou ao invocar para a sua fundamentação o artigo 70º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
4. Com efeito, não estamos perante uma acção cambiária, mas sim perante uma acção declarativa, na qual o título de crédito junto aos autos vale apenas como quirógrafo, comprovativo de que o R. quis obrigar-se ao pagamento daquela quantia.
5. A fundamentação de direito da sentença ao julgar verificada a excepção peremptória da prescrição com base no disposto no artigo 70º da LULL, não faz qualquer sentido, pois não estamos perante uma acção cartular ou executiva e, consequentemente, não tem aí qualquer aplicação o disposto naquele referido artigo, devendo, para tal, recorrer-se às disposições constantes do Código Civil.
6. Conforme determina o art. 309º do CC, o prazo ordinário de prescrição para o exercício do direito do A. é de 20 anos, e, por isso, não está completada a prescrição.
7. A acção intentada pelo A. contra o R. deve ser equiparada à acção de enriquecimento sem causa, já que manifestamente existe:
- enriquecimento do R.;
- nexo causal entre o enriquecimento do R. e o empobrecimento do A.;
- falta de causa justificativa do enriquecimento.
8. Face à falta de requisitos legais de exequibilidade da letra de que é possuidor, ao A. não restava outra alternativa que não fosse o recurso à acção declarativa, na qual a letra vale tão-somente como quirógrafo, reconhecendo o débito.
9. No caso em apreço, não ocorreu, nem podia ocorrer a alegada excepção peremptória de prescrição com o fundamento da violação do art. 70º da LULL, já que não estamos perante uma acção cambiária.
10. Perante uma eventual falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, em obediência aos princípios estabelecidos nos arts. 264º e seguintes do CPC, o Senhor Juiz da 1ª instância deveria ter determinado ao A. que realizasse os actos necessários à regularização da instância, convidando o A. a praticar tais actos, tudo conforme determina o disposto no n.º 2 do art. 265º e no art. 508º, ambos do CPC.
11. Ao Senhor Juiz a quo estava-lhe vedado decidir uma questão no âmbito de uma acção declarativa, fundamentando a sua decisão com um preceito da LULL, que como se sabe tem aplicação nas acções cartulares.
12. Deve, pois, ser declarada não provada a excepção da prescrição, e, consequentemente, ser determinado o prosseguimento da acção, ordenando-se, se assim for entendido, a realização dos actos necessários à regularização da instância, convidando o A. a praticar tais actos, tudo conforme determina o disposto no n.º 2 do art. 265º e no art. 508º, ambos do CPC.
13. Ao caso em apreço não poderia ter sido aplicada a norma do art. 70º da LULL, mas sim o disposto no art. 309º do CC.
14. Do mesmo modo, se o Senhor Juiz da 1ª instância entendia que o articulado padecia de alguma irregularidade ou vício, deveria ter aplicado o disposto no n.º 2 do art. 265º e no art. 508º, ambos do CPC, e, consequentemente, ter determinado ao A. que realizasse os actos necessários à regularização da instância, convidando-o a praticar tais actos, igualmente em obediência aos princípios estabelecidos nos arts. 264º e seguintes do CPC.

O Réu/apelado contra-alegou, batendo-se pela confirmação da sentença da 1ª instância.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – as questões em debate são:
a) Como se caracteriza a presente acção?
b) Verifica-se a excepção da prescrição arguida pelo Réu?
c) Nesse caso, deveria a Mmª Juiz, antes de proferir decisão de mérito, fazer uso do mecanismo previsto no art. 508º do CPC?
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos.

1. O Autor é portador de uma letra de câmbio, no valor de € 19.951,92 (dezanove mil novecentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos), emitida em 5 de Janeiro de 2002, com vencimento em 22 de Junho de 2002.

2. Nessa letra consta como sacador e aceitante o Réu.

3. A letra não foi paga na data de vencimento da letra nem posteriormente.

Está ainda provado que:
4. A presente acção foi instaurada em 14 de Março de 2006 – cfr. fls. 2.

O DIREITO

a)

É imerecida a forma como o apelante critica a decisão da 1ª instância, mormente quando afirma que “… a mesma apresenta uma enorme confusão quanto à caracterização da situação jurídica em apreço, e uma total e incorrecta aplicação do direito” - cfr. 3 § do corpo das alegações, a fls. 103, e conclusão 1ª.
O que podemos desde já adiantar é que se existe enorme confusão não é, seguramente, da parte da Mmª Juiz a quo.
Demonstrando:

O Autor propôs esta acção declarativa condenatória, com processo ordinário, alegando unicamente o seguinte:
“O Réu emitiu em 05 de Janeiro de 2002 a letra, no valor de € 19.951,92 – documento n.º 1.
Assim querendo obrigar-se ao seu pagamento.
Todavia, na data de vencimento o R. não pagou a referida letra.
Pelo que, ficou o A. desembolsado daquele montante.
Interpelado para proceder ao pagamento da quantia que a letra representa, o R. ainda não o fez até à presente data.
Deste modo, é o A. credor do R. da quantia de € 19.951,92, acrescida dos juros de mora à taxa legal desde a data de vencimento até integral pagamento.
Os quais contados desde a data da emissão da letra à data de hoje se liquidam em € 9.813,76.
Elevando o montante do débito para € 29.765,68”.
São estes os únicos factos alegados, distribuídos pelos oito artigos da petição inicial.

Ora, o artigo 28º da LULL dispõe da seguinte forma:
“O sacado obriga-se pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento.
Na falta de pagamento, o portador, mesmo no caso de ser ele o sacador, tem contra o aceitante um direito de acção resultante da letra, em relação a tudo que pode ser exigido nos termos dos artigos 48º e 49º”.
Configura-se neste preceito o direito de o portador mover acção cambiária, porque exclusiva e directamente fundada no título cambiário, contra o aceitante.
A acção cambiária pode ser directa e de regresso. A acção directa é a que é dirigida contra o devedor principal; a acção de regresso é a que é dirigida contra os garantes da obrigação cambiária.
A acção cambiária, ao contrário do que pensa o apelante, pode ser declarativa ou executiva.
Na hipótese dos autos o demandante optou claramente pela acção cambiária na via declarativa, invocando como única causa de pedir a letra assinada pelo Réu e reclamando o seu pagamento, acrescido dos juros vencidos e vincendos.

b)

O prazo de prescrição da acção cambiária directa é de três anos a contar do vencimento – art. 70º da LULL.
Ao fim desses três anos a obrigação formal ou cartular deixa de ter os privilégios da acção cambiária, e os títulos passam a ter natureza de simples títulos particulares, necessitando de ser apoiados em factos atinentes à verificação da obrigação subjacente.
Ora, a letra junta a fls. 8 vencia-se em 22.06.2002 – v. 1., sendo certo que a presente acção só deu entrada em juízo no dia 14.03.2006 – v. 4.
Mostra-se, assim, largamente ultrapassado o prazo de prescrição de três anos previsto no art. 70º da LULL, pelo que, inexistindo causa que obste ao decurso normal desse prazo, terá de concluir-se que a acção cambiária prescreveu.
Isso não impede, como já se aludiu, que o portador possa demandar os intervenientes na relação fundamental ou subjacente, se as respectivas obrigações não se houverem ainda extinguido nos termos gerais. Necessita, porém, de alegar e provar os factos que de tais obrigações possam resultar, não bastando, portanto, alegar que subscreveram letra – v. Ac. STJ de 04.03.1969, BMJ 185, pág. 287. Por conseguinte, o portador pode instaurar a chamada “acção causal”, ou seja, a que resulta do negócio subjacente que determinou a obrigação cambiária, alegando os elementos de facto caracterizadores desse negócio e os respectivos vínculos obrigacionais que dele emergiram.

c)

Há um princípio do processo civil que é comummente esquecido mas que tem uma importância vital: o da auto-responsabilidade das partes.
São as partes que conduzem o processo a seu próprio risco e, por isso, são elas que têm de promover e fazer valer os meios de ataque e de defesa que mais lhes convenham – v. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, edição de 1963, pág. 352.
A negligência ou inépcia das partes resulta inevitavelmente em prejuízo delas, salvo as possibilidades de intervenção do juiz, de que a seguir falaremos, na adequação de determinados aspectos processuais, sob a égide do princípio da cooperação desenhado no art. 266º do CPC.
De acordo com o art. 508º, n.º 1, al. b), do CPC, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos nºs 2 e 3.
Poderá, então, convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa (n.º 2), e poderá ainda convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido (n.º 3).
Centremos a nossa atenção nesta última modalidade do despacho de aperfeiçoamento, trazida à liça pelo apelante.
“Quando a lei se refere a insuficiência na exposição da matéria de facto, estar-se-á a reportar a condições de procedência da acção ou da excepção, sempre pressupondo que da análise dos articulados respectivos resulte a existência de causa de pedir ou de defesa por excepção.
A alusão efectuada pela lei às imprecisões da matéria de facto anda ligada à deficiente concretização, nomeadamente quando não é respeitada a distinção entre matéria de facto e de direito, quando são feitas afirmações de pendor conclusivo ou quando a versão apresentada suscita algumas dúvidas, embora sem tornar ininteligível a posição assumida” – v. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, pág. 81.
O convite ao aperfeiçoamento baseado neste n.º 3 está, pois, reservado a falhas menores na alegação dos factos, não sendo permitida a intromissão do juiz na definição do pleito, o que conduziria à violação do princípio do dispositivo – art. 264º. Isto é, o convite ao aperfeiçoamento não pode bulir com a estrutura básica da causa de pedir ou afectar o que resulta dos princípios do dispositivo, da preclusão e da estabilidade da instância (art. 268º do CPC).
Estamos, assim, de acordo com o Ac. do STJ de 21.09.2006 (Salvador da Costa), processo n.º 06B2772, em www.dgsi.pt., no qual, a dado passo, se escreveu: “sob pena de subversão do processo, o princípio da cooperação não pode ser aplicado sem ter em conta o princípio da auto-responsabilidade das partes, que não comporta ou justifica o suprimento por iniciativa do juiz de toda e qualquer omissão de factos estruturais da causa”.
Por outro lado, deve notar-se que o convite ao aperfeiçoamento baseado no citado n.º 3 é um poder funcional não vinculado, que o juiz pode ou não exercer de acordo com o seu prudente critério e as circunstâncias do caso.
No caso em análise, face à da causa de pedir invocada (que, aliás, não padece de qualquer insuficiência ou imprecisão na alegação da matéria de facto), não faz qualquer sentido a invocação do artigo 508º do CPC.
Em complemento do que acabou de referir-se e directamente relacionado com o vertido na conclusão 7ª, diremos ainda, à guisa de esclarecimento, que a acção de enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, isto é, o portador só pode exercê-la quando não puder exercer a acção cambiária ou quando não puder exercer a acção causal contra o seu devedor imediato.
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante.
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PORTO, 24 de Abril de 2007
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha