Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0336382
Nº Convencional: JTRP00036773
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: PENHORA
ISENÇÃO
Nº do Documento: RP200401150336382
Data do Acordão: 01/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: Quem aufere de vencimento mensal 660,86 euros e tem cinco filhos menores a seu cargo não está isento de penhora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Angélica ..............., residente em ........., veio instaurar acção executiva, para pagamento de quantia certa, contra

Leonida ............., residente na Rua ..............., ............, e marido
Jorge ............., residente na Rua .............., n.º .., ............, ..........,

pretendendo, tanto quanto resulta dos elementos que instruíram o presente recurso, a cobrança coerciva de ambos os executados da quantia de 8.452,49 euros (1.694.572$00).

No desenrolar da lide executiva foi ordenada a penhora de 1/3 do vencimento auferido pela executada, sendo que esta última veio entretanto requerer a suspensão da penhora do seu vencimento, devendo aguardar-se o término de uma outra penhora que já incidia sobre o seu vencimento a favor da Fazenda Nacional, sustentando-se para o efeito no disposto no art. 824, n.º 3, do CPC.

Justificando o assim requerido, alegou a executada que o seu vencimento mensal ilíquido, no exercício da docência no ensino preparatório, era de 789,19 euros, incidindo sobre o mesmo a penhora de 1/6 a favor da Fazenda Nacional, acrescendo que vinha arcando com a amortização de empréstimo bancário para aquisição da casa de habitação, que era a morada de família, pelo montante mensal de 600 euros;
adiantou que o seu marido, também executado, se encontrava desempregado, correndo o respectivo processo de reforma por invalidez, assim recaindo sobre ela o encargo com o sustento dos seus 5 filhos, todos ainda menores, pelo que, face às penhoras que incidiam sobre o seu vencimento, pouco lhe restava para prover ao sustento da sua família.

A exequente, ouvida sobre tal pretensão, opôs-se ao seu deferimento, tendo-se seguido decisão a indeferir o pretendido pela executada, para tanto se aduzindo que esta última não havia oferecido prova bastante quanto ao essencial do que alegara, já que não tinha feito prova de que vinha suportando a prestação com a amortização do empréstimo para aquisição da aludida habitação; que vivia em economia comum com o seu marido, também executado; que este último estivesse desempregado, com processo a correr termos para sua reforma por invalidez e que tivesse a seu cargo exclusivo cinco filhos menores.

Do assim decidido interpôs a requerente executada recurso de agravo, tendo apresentado alegações em que concluiu pela revogação do mencionado despacho, devendo ser ordenada a suspensão da penhora ordenada, posto que dos autos já constavam elementos suficientes para concluir pela sua manifesta insuficiência económica, a ponto de, face aos encargos que vinha suportando, o rendimento que lhe restava e resultante do vencimento que auferia ser diminuto e imprescindível para a satisfação dos mais elementares encargos da sua sobrevivência e dos seus filhos.

Não foi apresentada resposta a tais alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do agravo, sendo que a instância mantém a sua validade.

A materialidade a atender para a apreciação do objecto do presente agravo, há que reconhecê-lo, não é abundante, sendo que a agravante, como se refere no despacho recorrido, também não carreou aos autos elementos bastantes para comprovar a totalidade do por si alegado, de forma a justificar a pretensão por si formulada de suspensão da penhora ordenada sobre o seu vencimento e para garantir a cobrança da quantia exequenda.

De todo o modo, ponderando os elementos documentais que instruíram o presente recurso, poder-se-á dar como adquirido, desde logo, o seguinte:

- Corre termos contra a recorrente e seu marido execução para a cobrança coerciva da quantia que atinge, pelo menos, o montante de 8.452,48 euros (1.694.572$00);

- Nos autos de execução em causa foi ordenada a penhora de 1/3 do vencimento auferido pela executada agravante;

- A recorrente, no exercício da docência, aufere o vencimento mensal ilíquido de 798,18 euros, a que corresponde o rendimento líquido, feitos os descontos, de 660,68 euros;

- Entre os descontos a que está sujeito o referido vencimento encontra-se a dedução do montante de 131,53 euros (26.369$40), por via da penhora de 1/6 a favor da Fazenda Nacional;

- Os executados têm a seu cargo cinco filhos ainda menores, encontrando-se o executado desempregado;
- A ambos os executados foi concedido nos autos principais de que a execução é dependente o benefício de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono oficioso, bem assim de dispensa de pagamento de preparos e custas.

De assinalar que, apesar de alegado, não resulta da documentação junta pela agravante, aquando da formulação da dita pretensão, que venha suportando o pagamento da quantia mensal de 600 euros pela amortização de empréstimo contraído com aquisição de casa de habitação, bem como o encargo com o sustento dos filhos dos executados corra apenas a expensas da agravante ou ainda que, apesar de desempregado, o executado não disponha de qualquer outro tipo de rendimento.

Posto isto, importará então averiguar se motivos existem em revogar a decisão impugnada, enquanto denegou a pretensão da agravante em ver suspenso o desconto ordenado no seu vencimento, correspondente a 1/3, até se encontrar findo aquele outro que vem sucedendo a favor da Fazenda Nacional.

A agravante sustentou esta sua pretensão no disposto no art. 824, n.º 3, do CPC, na redacção inicial que lhe vinha conferida pela reforma de 97, ao aí se estabelecer que o juiz pode excepcionalmente isentar de penhora a parte do vencimento (1/3) que, em princípio, não beneficia de impenhorabilidade (n.º 1, al. a)).

Importa observar, desde já, que o exercício desse poder, podendo partir da iniciativa do tribunal, aquando do despacho a ordenar a penhora dos bens do executado, terá ainda lugar a requerimento do executado por via do incidente de oposição à penhora a que aludem os arts. 863-A e 863-B, do CPC.

No caso em presença e face aos elementos disponíveis nos autos, não cremos que a possibilidade conferida naquele normativo (n.º 3, do citado art. 824) tenha de ser considerada no âmbito do falado incidente tipificado, nem tão pouco está em causa, por manifesto, a impugnação, por via de recurso, do despacho que ordenou a penhora do vencimento da recorrente, por violar qualquer norma de impenhorabilidade do mesmo, situações que àquela estavam facultadas, mas que, como se depreende do referido, não terão pela mesma sido desencadeadas.

De toda a forma, admitindo que a pretensão formulada pela exequente poderá ser formulada a todo tempo e desde que se verifiquem os necessários pressupostos, como incidente não tipificado, importará avaliar se motivos existem para deferir o pretendido, ou seja, a suspensão do falado desconto e pelo período referido.

A isenção de penhora dos rendimentos a que vimos aludindo – prevista na inicial redacção do n.º 3, do art. 824, resultante da Reforma de 1997 e mantida após a que resultou da entrada em vigor em Setembro do corrente ano (n.º 4, do citado art.) – tem em vista a consagração na lei ordinária dos princípios que decorrem, nomeadamente, dos arts. 1.º e 59.º, da Constituição da República.

As mencionadas normas constitucionais visam garantir a todos os cidadãos o recebimento de uma remuneração do seu trabalho que lhes possibilite arrecadar o mínimo indispensável para a sua própria sobrevivência e do seu agregado familiar de forma condigna.

É certo que poderá surgir um conflito de interesses entre o direito do credor a ver concretizado o seu direito, aliás também com tutela constitucional (art. 62), e aquele outro direito do trabalhador a receber uma remuneração que lhe garanta, bem como à sua família, uma sobrevivência digna.
Só que, no caso da verificação desse conflito de direitos, deve o legislador e, diremos mesmo, também o julgador, em ordem a salvaguardar a tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana, sacrificar, na medida do necessário, o direito do credor e, se tal for preciso, totalmente, enquanto a realização do direito daquele último ponha em causa a subsistência do devedor ou do seu agregado familiar – v., a propósito o Ac. do TC, n.º 318/99, de 26.5, in DR, II.ª série, de 22.10.99.

Já Alberto dos Reis, reflectindo sobre esta problemática, alertava que “razões de decência e de humanidade fazem com que se subtraia à penhora, qualquer que seja a natureza da dívida, aquilo que é absolutamente indispensável à vida do executado e de sua família – seria odioso e aparatoso de todos os sentimentos de respeito pela pessoa humana que a penhora se levasse até ao ponto de deixar o executado e os seus inteiramente despojados do que lhes é estritamente imprescindível para a satisfação das mais elementares necessidades da vida” – in “Processo de Execução”, vol. I, pág. 352.

Em situações como as referidas, aí se incluindo a de isenção de penhora de vencimento, estará em causa, no fundo, a ponderação dos interesses em confronto, havendo que fazer um juízo de equidade e de bom senso, por forma a avaliar em que medida os falados rendimentos devem ou não ser subtraídos à penhora, tendo como linha delimitadora a salvaguarda do direito do executado e sua família a manterem uma sobrevivência digna da pessoa humana. – v. sobre esta questão a análise ao citado art. 824 de Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil”.

Confrontados com as linhas mestras que devem presidir à solução da questão a que nos vimos referindo, importa, então, debruçar-nos sobre o caso que é trazido à nossa apreciação.

Como acima referimos e acolhendo em parte o que reflectido vem pelo tribunal “a quo”, a materialidade que vem recolhida e é possível retirar da documentação que instruiu o presente recurso não confirma de todo o inicialmente alegado pela agravante para sustentar a sua pretensão.
Na verdade, não é dado adquirido que a executada suporte todas as despesas que invocou, nomeadamente, a que diz respeito à amortização com o falado empréstimo para aquisição de habitação, bem ainda que seja ela a suportar na totalidade os custos com a sobrevivência dos seus cinco filhos, ainda menores.

Contudo, em face do demais que se deu como apurado e do que sustentou a decisão que concedeu no processo principal o benefício de apoio judiciário, nas modalidades apontadas, depreende-se que a agravante não dispõe de situação económica desafogada, já que para o seu sustento e do necessário contributo para os seus cinco filhos menores, dispõe apenas mensalmente 660,86 euros (132.454$00), o que não poderá considerar-se exagerado.

De assinalar também que o vencimento que vem auferindo está já onerado com o desconto de 1/6, por força de penhora a favor da Fazenda Nacional, afigurando-se-nos relevante para avaliar da parte daquele rendimento que, independentemente de outras considerações, como as acima referidas, pode estar sujeito a penhora (1/3) – art. 824, n.º 1, al. a), do CPC.

Ora, não custará reconhecer, diante do circunstancialismo assinalado, que a penhora ordenada no processo executivo – 1/3 daquele vencimento ilíquido – acrescendo àquela outra penhora de 1/6, constituirá o onerar o vencimento da recorrente para além dos limites que no citado artigo são previstos, independente das outras considerações a que fizemos referência.

Pretende-se com este raciocínio demonstrar que não será exigível, atento o preceituado no n.º 1, do citado art., onerar o aludido rendimento com uma penhora que vai além da percentagem que em termos normais aquele está sujeito.

Só que, em face dos considerandos acima explanados, também não se justifica a suspensão dos descontos ordenados e pelo período pretendido pela recorrente, mas já se admitindo que é possível encontrar um equilíbrio de descontos que não ponha em causa a sobrevivência daquela e do seu agregado familiar.

Nesta perspectiva e aceitando a oportunidade do pretendido, bem assim o disposto no art. 824, do CPC, cremos justificar-se a redução da percentagem do vencimento da executada que deve estar adstrita ao pagamento do que peticionado vem na execução, ou seja, reduzir tal percentagem para 1/6 enquanto perdurar aquela outra penhora a favor da Fazenda Nacional.

Cremos, desta forma, repor um maior equilíbrio no conflito dos interesses a que fizemos referência, tudo na interpretação que se faz ao citado normativo, a cobrir a situação que vem colocada que, a nosso ver, exige a aplicação de uma justiça equitativa, a que o julgador não pode alhear-se.

Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao agravo, nessa medida devendo o tribunal recorrido proferir novo despacho a fixar a aludida percentagem de descontos e enquanto perdurar aquela outra penhora, tudo nos termos atrás referidos.

Custas do presente recurso a cargo de exequente e executada em igual proporção, sem prejuízo do benefício de apoio judiciários que aos mesmos tenha sido concedido.
Porto, 15 de Janeiro de 2004
Mário Manuel Baptista Fernandes
Pedro dos Santos Gonçalves Antunes
Fernando Baptista Oliveira