Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0131438
Nº Convencional: JTRP00029851
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200111080131438
Data do Acordão: 11/08/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J VIEIRA MINHO
Processo no Tribunal Recorrido: 193/99
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
DIR COMUN.
Legislação Nacional: CCIV66 ART508 N1.
Sumário: Na sequência da segunda directiva 84/5/CEE, tem de se entender que o artigo 6 do Decreto-Lei n.522/85, de 31 de Dezembro, revogou tacitamente o disposto no artigo 508 n.1 do Código Civil, pelo que actualmente não existem limites máximos para a responsabilidade derivada do risco.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Em 99.12.09, no Tribunal Judicial da Comarca de Vieira do Minho, Lino ..... e mulher Maria ....., instauraram contra o Fundo da Garantia Automóvel a presente acção com processo ordinário
alegando
em resumo
- a existência de um acidente de viação
- nele intervieram dois veículos: um motociclo, conduzido por um seu filho e uma carrinha
- a morte desse seu filho em virtude do acidente
- a existência de outros danos
- a culpa de um condutor de outro veiculo, uma carrinha
- o desconhecimento da sua identidade
pedindo
- a condenação da R. a pagar-lhes a quantia de 11.667.257$00 e juros de mora, a titulo d indemnização
contestando
e também em resumo
o R. alegou
- não estar demonstrada a sua responsabilidade
- desconhecer o acidente
- a indemnização é excessiva
Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.
Em 01.03.30, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar aos AA a quantia de 4.000.000$00 e juros de mora.
Inconformados, os AA deduziram a presente apelação, apresentando as respectivas alegações e conclusões.
O R. contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
As questões
Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são as seguintes as questões propostas para resolução:
A) - repartição do risco pelo condutores interveniente no acidente
B) - limite máximo da indemnização
Os factos
Uma vez que não foi impugnada nem há lugar a qualquer alteração da matéria de facto, remete-se para os termos da decisão da 1ª instância que decidiu sobre a matéria - art.713º, nº6, do CPC
Os factos, o direito e o recurso
A - Vejamos, então, como resolver a primeira questão.
Na sentença recorrida decidiu-se que o apelado deveria responder pelas consequências do acidente em termos de responsabilidade objectiva ou pelo risco, repartindo este em 40% para o malogrado filho dos apelantes e em 60% para o outro condutor.
Os apelante entendem que essa repartição deve ser de 1/5 para aquele e 4/5 para este.
Nos termos do disposto no art.506º, nº1, do Código Civil, a repartição da responsabilidade objectiva, em caso de colisão de veículos, deve efectuar-se na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos.
Em teoria, a relatividade do risco tenderia à adopção de um critério de proporcionalidade, de acordo com classe, potência ou cilindrada dos veículos.
No entanto e conforme de extrai do ferido normativo, esta teorização tem que ser temperada com a situação concreta em análise, ou seja, há que ter em conta a forma como em concreto os danos foram produzidos.
Parece-nos evidente que a carrinha conduzida pelo desconhecido interveniente no acidente contribuiu, em termos de risco, em maior proporção para a ocorrência do acidente.
No entanto, parecem-nos judiciosas as considerações feitas na sentença recorrida para justificar a repartição aí referida, tendo em conta, nomeadamente, o facto de o risco que a vitima corria ao circular num ciclomotor ter sido determinante para que fosse projectado para o solo e assim, contribuído para a produção dos danos.
Pelo que entendemos nenhuma censura merecer a sentença recorrida quanto à questão em causa.
B - Atentemos, agora na segunda questão.
Na sentença recorrida foram calculados os danos sofridos pela vítima e pelos apelantes em 10.640.000$00, pelo que atento à repartição do risco acima assinalada, estes teriam direito a receber como indemnização a quantia de 6.384.000$00.
No entanto, face à limitação estabelecida no nº1 do art.508º do Código Civil - dobro da alçada da Relação - a indemnização foi fixada em 4.000.000$00.
Os apelantes entendem que a referida limitação contraria o disposto na Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 72.04.24, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitante ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização da obrigação de segurar esta responsabilidade, que além de entrar directamente na ordem jurídica interna, prevaleceria e até substituiria a norma de direito interno, pelo que a indemnização fixada não deveria ser limitada, como o foi.
Vejamos como resolver a questão.
Estabelecida a responsabilidade objectiva e a obrigação de indemnizar, dispõe-se no referido art.508º, nº1, do Código Civil, que a indemnização por morte está limitada ao dobro da alçada da Relação.
O art.1º, nºs 1 e 2, da Segunda Directiva dispõe:
“1. O seguro referido no nº1 do art.3º da Directiva 72/166/CEE deve, obrigatoriamente, cobrir os danos materiais e os danos corporais.
2. Sem prejuízo de montantes de garantia superiores eventualmente estabelecidos pelos Estados-Membros, cada Estado-Membro deve exigir que os montantes pelos quais este seguro é obrigatório, se situem, pelo menos, nos seguintes valores:
- 350.000 ECUs, relativamente aos danos corporais, quando haja apenas uma vitima, devendo tal montante ser multiplicado pelo número de vítimas, sempre que haja mais que uma vitima em consequência do mesmo sinistro;
- 100.000 ECUs por sinistro, relativamente a danos materiais, seja qual for o número de vitimas.
(...).
Nos termos do art.5º da referida directiva, com a redacção que lhe foi dada pelo Anexo I, Parte IX, F, que tem como epígrafe “Seguros”, do Acto relativo às condições de adesão do Reino Unido e da República Portuguesa e às adaptações dos Tratados (JO 1985 L 302, p.23, 218):
“1. Os Estados-Membros alterarão as sua disposições nacionais para darem cumprimento à presente directiva o mais tardar até 31 de Dezembro de 1987.
(...)
2. As disposições alteradas nos termos acima referidos serão aplicadas o mais tardar em 31 de Dezembro de 1988.
3. Por derrogação ao nº2:
a) o Reino da Espanha, a Republica Helénica e a Republica Portuguesa dispõem do período até 31 de Dezembro de 1995 para aumentarem os montantes das garantias até aos montantes previstos no nº2 do art 1º. Se fizerem uso dessa faculdade, os montantes de garantia devem, em relação aos montantes previstos no referido artigo, atingir:
- uma percentagem superior a 16% o mais tardar em 31 de Dezembro de 1988;
- uma percentagem de 31%, o mais tardar em 31 de Dezembro de 1992.
Consoante se declarou no Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) de 00.09.14, resulta desta Directiva, assim como da Primeira e Terceira Directivas, que os Estados-Membros estão obrigados a garantir que a responsabilidade civil aplicável segundo o seu direito nacional esteja coberta por um seguro e que este seguro deve respeitar os montantes mínimos de garantia fixados nos arts.1º, nº2 e 5º, nº3, na redacção que lhe foi dada pela Segunda Directiva.
Por conseguinte e conforme se diz naquele acórdão, “em relação aos sinistros cobertos por esta responsabilidade civil, a legislação não pode prever limites máximos de indemnização inferiores a esses montantes mínimos”, independentemente da responsabilidade ser baseada na culpa ou no risco.
Em matéria de reenvio prejudicial - como foi o caso do acórdão referido, fruto de interpelação do Tribunal de Setúbal - a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça cria para os tribunais nacionais uma autêntica proibição de interpretação desconforme - veja-se, neste sentido, o acórdão do STJ de 01.03.01, relatado pelo Sr. Conselheiro Neves Ribeiro, ao que sabemos, ainda não publicado.
Na verdade, o Juiz nacional não só fica obrigado a interpretar o seu direito interno de modo a torná-lo conforme as disposições de uma directiva não transposta, como fica impedido de optar por uma solução de interpretação desconforme à directiva, na medida em que seja possível formar duas ou mais soluções de interpretação possíveis.
Com efeito, não é possível uma solução de interpretação contra legem, ou seja, que não tenha nos textos da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso - cfr. art.9º, nº2, do Código Civil.
Concluindo, pode-se dizer que através da via acima referida e tendo em conta a força interpretativa dos seus acórdãos, o Tribunal de Justiça atinge o mesmo resultado a que se chegaria com a aplicação imediata da Directiva às relações entre particulares.
Voltando à questão que nos ocupa e tendo em conta a força interpretativa referida, é patente que do confronto do referido art.508º, nº1, com os artigos da Segunda Directiva acima assinaladas - interpretados, como se disse, em termos de que neles não se faz qualquer distinção entre responsabilidade civil baseada na culpa e responsabilidade pelo risco - resulta claramente uma contradição entre aquela norma com estes artigos.
Na verdade, enquanto na norma referida se estabelece um limite máximo para a responsabilidade civil baseada no risco, na Directiva mencionada apenas se estabelecem limites mínimos.
A questão que agora se põe consiste em saber o que resulta dessa contradição.
A obrigação de transposição da Segunda Directiva 84/5/CEE, em prazos definidos, consta de um tratado internacional devidamente ratificado pelo Estado Português: o Acto Relativo às Condições da Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa às Adaptações dos Tratados, publicado em suplemento ao DR I Série, de 85.09.18.
Em cumprimento dessa Directiva e dos prazos de transposição fixados no Acto de Adesão, o art.6º do DL 522/85, de 31.12, na sua redacção original, estabeleceu um capital obrigatoriamente seguro de 3.000.000$00, sucessivamente aumentado por diversos diplomas posteriores.
Todos estes diplomas referem todos, no seu preâmbulo, a necessidade de transposição para o direito interno dos capitais estabelecidos na Segunda Directiva.
Assumem, assim, expressamente, a sua função de transposição da directiva aqui em discussão.
Ora, considerando que o regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil tanto se aplica às situações de responsabilidade subjectiva como às situações de responsabilidade objectiva e vigora em todos os acidentes de viação, desde logo se torna evidente um problema de incompatibilidade entre o art.508º, nº1, do Código Civil e o aludido art.6º do DL 522/85.
Duas soluções de interpretação se afiguram possíveis: ou o art.508º é uma norma especial em relação ao aludido art.6º do DL 522/85, ou então este último revogou tacitamente aquele outro.
Ambas as soluções são viáveis, pois têm um mínimo de correspondência
Ora, tendo em conta que, como se disse, existe a obrigação de a interpretação ter de ser feita conforme as Directivas Comunitárias, os Tribunais Portugueses têm de optar por uma solução que torne o direito nacional conforme ao art.1º, nº2 e 5º, nº3, da Segunda Directiva.
E essa interpretação não pode deixar de ser a de o art.508º nº1 estar tacitamente revogado pelo art.6º do DL 522/85.
Tal interpretação obedece, além do mais, aos requisitos estabelecidos no nº1 do art.9º do Código Civil: reconstitui o pensamento legislativo, que seria a transposição correcta da Segunda Directiva; cumpre o objectivo de unidade do sistema jurídico, pois o direito comunitário é objecto de recepção automática e incondicional na nossa ordem jurídica e pondera as circunstâncias em que a lei foi elaborada, de integração de Portugal no espaço comunitário.
Tanto mais que, conforme refere Mota Campos “in” Direito Comunitário 4ª ed. vol.II p.128 “impõe-se aos Estados acatar a obrigação de resultado prescrita pela directiva comunitária - o que implica o cumprimento da obrigação de comportamento que para eles se traduz no dever de aplicar esse acto na ordem interna ou, como é corrente dizer-se em linguagem comunitária, o dever de proceder à sua transposição.
Nem sempre, porém, se impõe ao Estado adoptar disposições formais de transposição, constantes de diploma legislativo ou regulamentar. A liberdade de escolha da forma do instrumento jurídico abarca também a liberdade quanto ao conteúdo como acto interno, desde que isso não prejudique a finalidade visada, ou seja, a realização do objectivo prescrito pela Directiva”.
A este propósito refere o citado autor o acórdão do TJCE de 87.04.09, em que se diz que “resulta do terceiro parágrafo do art.189º do Tratado que a transposição de uma Directiva para o direito interno não exige necessariamente uma repetição formal e textual das suas disposições numa disposição legal expressa e especifica, podendo, em função do seu conteúdo, ser suficiente para tanto um contexto jurídico legal, desde que este assegure efectivamente plena aplicação da Directiva de modo suficientemente claro e preciso, afim de que, no caso de a Directiva se destinar a criar direitos aos particulares, os beneficiários tenham a possibilidade de conhecer plenamente os seus direitos e de os invocar, se for caso disso, perante os órgãos jurisdicionais nacionais”
Concluímos, pois, que o art.508º nº1 do Código Civil encontra-se tacitamente revogado pelo art.6º do DL 522/85.
Pelo que a indemnização a pagar pelo apelado FGA no caso em apreço apenas terá como limite máximo o do capital obrigatoriamente seguro, que na altura do acidente era de 120.000.000$00 - cfr. DL 3/96.
Sendo assim, estando o montante indemnizatório a que os apelados teriam direito fixado em 6.384.000$00, nenhuma redução há que ser feita.
Nesta medida merecendo censura a sentença recorrida.
A decisão
Nesta conformidade, acorda-se em julgar parcialmente procedente a presente apelação e assim, em alterar a sentença recorrida no sentido de que a quantia que o R. terá de pagar aos AA. será de 6.384.000$00, a que acrescerão juros de mora à taxa de 7% desde a citação, conforme o decidido na parte não recorrida da sentença.
Custas apenas pelos apelantes, na proporção de 40%, já que o apelado se encontra isento delas.
Porto, 8 de Novembro de 2001
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo
João Luís Marques Bernardo