Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0534769
Nº Convencional: JTRP00038561
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PREÇO
SIMULAÇÃO
Nº do Documento: RP200511240534769
Data do Acordão: 11/24/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - No direito de preferência em contrato de compra e venda em que o preço declarado é superior ao real, desconhecendo o preferente este último, deve o mesmo preferente intentar uma acção declarativa de simulação.
II - Não correspondendo o preço declarado no contrato de venda ao preço real, o direito de preferência só pode ser conferido se o preferente pagar o preço real, pois a correspondência entre o preço real e declarado é um pressuposto desse direito.
III - Constitui abuso de direito o exercício do direito de preferência, quando a enorme diferença entre o valor real e o valor declarado do prédio, conhecida do preferente, exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social e económico que lhe estão subjacentes.
IV - No exercício do direito de preferência pode discutir-se e provar-se, por qualquer meio, que o preço real da venda é diferente do que consta da escritura pública, pois o que importa é aquele primeiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

B.........., residente na Rua .........., nº ..., , .........., instaurou os presentes autos de acção declarativa com processo ordinário contra C.........., residente na Rua .., nº ..., em .........., e D.......... e marido, E.........., residentes na Rua .........., nº ., .........., em .........., pedindo que lhe seja reconhecido o direito de preferência na alienação à segunda Ré mulher do quinhão hereditário que o primeiro Réu detinha na herança aberta por óbito de F.........., e, em consequência disso, decretada a transmissão para si de tal quinhão.
Para tanto, e com interesse para a causa, alega, em síntese, que:
- F.........., falecida no dia 24 de Setembro de 2000, deixou como únicos e universais herdeiros os seus filhos (ela autora e o irmão, o réu C..........);
- Requereu oportunamente processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito da mãe, tomando conhecimento no decurso do mesmo, em 6 de Novembro de 2002, que o réu C.......... havia alienado o quinhão hereditário que possuía na herança ilíquida e indivisa da mãe, à segunda ré mulher;
- Tal alienação teve lugar por escritura pública celebrada em 25 de Setembro de 2001, tendo sido celebrada por 10.000.000$00;
- O réu C.......... não a informou que pretendia proceder à venda daquele quinhão hereditário, nem qualquer dos demais réus o fez.
- Tem direito de preferência na aquisição do dito quinhão hereditário, nos termos do artº 2130º, nº 1, do C.Civil.

Citados os réus, vieram os mesmos contestar e deduzir reconvenção, alegando, em síntese, os seguintes factos:
- Desde princípios de 2001 que a autora sabe que o réu C.......... pretendia vender o seu quinhão hereditário, tendo-a este contactado por diversas vezes, anunciando-lhe o preço e condições de pagamento;
- A autora sempre disse que não estava interessada;
- O réu acabou por lhe dizer que ia vender o seu quinhão à ré D......... por 50.000.000$00, respondendo a autora que não estava interessada porque não dispunha de dinheiro;
- Renunciou, pois, ao direito de preferência;
- A autora teve conhecimento da escritura, tendo já caducado o seu invocado direito;
- O preço real foi de 50.000.000$00 e não de 10.000.000$00, valor que apenas foi indicado na escritura por razões fiscais, que aliás foi rectificado;
- A autora sabe que o quinhão do réu C.......... valia pelo menos 50.000.000$00.
Concluem pela improcedência da acção.
Pedem a condenação da autora como litigante de má-fé, em multa e indemnização, nunca inferior a 3.000 Euros.
Em sede de reconvenção pedem a condenação da autora no pagamento da quantia de 217.724,79 Euros, relativos à diferença de preço e sisa.
Na Réplica, a A. alega que nunca renunciou ao quinhão, que o réu C.......... continuou a administrar os bens da herança após a celebração da escritura, que a simulação não pode ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa-fé, concluindo como na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador, onde não foi admitido o pedido reconvencional, e organizadas a matéria de facto assente e a base instrutória.

Procedeu-se à audiência de julgamento, vindo o Tribunal a decidir a matéria de facto nos termos do despacho de fls. 292 a 294, que não foi alvo de qualquer reparo.

Foi proferida sentença que decidiu nos termos seguintes:
“Nesta conformidade, tendo em conta todo o exposto, decide-se julgar improcedente, por não provada, a presente acção e, consequentemente, absolver os réus C.........., e D.......... e marido, E.......... dos pedidos formulados pela autora B.......... .

Inconformada com tal decisão, dela veio interpor recurso a A., oferecendo as suas alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

1 – Na presente acção de preferência, a apelante, ao depositar o preço declarado de € 49.879,79 como contrapartida da venda do quinhão hereditário que aqui está em causa, procedeu ao depósito do preço devido;
2 – O direito de preferência que se exercita através de uma acção de preferência tem por pressuposto um negócio concreto antes celebrado, com um preço também concreto e correspondente à contrapartida acordada;
3 – O preço concretamente acordado é o correspondente ao preço declarado na escritura pública que titula o negócio sobre o qual a preferência é exercida, salvo se tiver sido alegada e provada a sua simulação;
Ou seja
4 – Salvo se tiver sido alegado e provado que o preço efectivamente acordado e pago foi diferente do declarado na escritura;
5 – No caso dos presentes autos, os apelados não lograram provar essa simulação de preço, pelo que se mantém como único preço a considerar para efeitos de exercício da preferência o declarado na escritura de 25 de Setembro de 2001;
6 – É de todo irrelevante, por si só, o valor real do bem transaccionado, ainda que diferente do preço declarado, salvo se essa diferença decorrer da simulação deste último, o que se viu já não ter acontecido no caso presente;
7 – É que o direito de preferência é exercido em função de um negócio concreto, com preço determinado, e não em função do valor real do bem em causa, sendo certo que em muitas situações os dois valores podem não coincidir;
8 – É também irrelevante, por si só, a posterior escritura de rectificação do preço constante da escritura anterior, dado que outorgada em momento posterior ao momento em que o direito potestativo da apelante a instaurar a presente acção integrava já a sua esfera jurídica;
Aliás
9 – É a própria lei que expressamente refere que o direito de preferência e a respectiva acção não podem ser prejudicadas pela modificação da alienação;
10 – A relevância de tal rectificação só releva se assente na invocação e prova da simulação do preço, o que, como vimos, não ocorreu no caso dos presentes autos;
11 – A presente acção deverá, assim, ser julgada totalmente procedente;
12 – A sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, as disposições dos art. 416º nº 1, 2130º nº 1, 1409º nº 2,1410º nº 1 e 2, todos do C. Civil.

Os RR. ofereceram também as suas contra-alegações, pugnando pela manutenção do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Apontemos as questões objecto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (art. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Antes, porém, reunamos a matéria de facto que foi considerada provada:

1. No dia 24 de Setembro de 2000 faleceu na sua residência sita na Rua .., nº ..., em .........., F..........;
2. Deixou como únicos e universais herdeiros seus filhos: a autora e o réu C..........;
3. A autora requereu oportunamente processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito de sua mãe;
4. Tal processo foi distribuído ao .º Juízo deste Tribunal, tomando aí o nº .../2001, e nele foi nomeado o réu C.......... como cabeça-de-casal, por expressa indicação da autora nesse sentido;
5. Por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de .......... no dia 25.09.2001, o réu C.......... declarou vender à ré D.........., que declarou aceitar, pelo preço de dez mil contos, o quinhão hereditário que possui na herança ilíquida e indivisa por óbito de F..........;
6. Todavia, por escritura realizada no Cartório Notarial de .......... em 13 de Janeiro de 2003, os outorgantes da escritura de 25 de Setembro de 2001, declararam rectificar esta no sentido de que o preço foi de cento e setenta e quatro mil quinhentos e setenta e nove Euros e vinte e seis cêntimos;
7. A autora sabe que o quinhão hereditário não tem o valor de dez mil contos e não tinha esse valor à data da celebração da escritura em 25 de Setembro de 2001;
8. A herança integra cinco mil contos em dinheiro, uma moradia e oito apartamentos, situados no centro de ..........;
9. O quinhão hereditário do primeiro réu valia pelo menos cinquenta mil contos, hoje 249.398,95 Euros;
10. A autora sabia que o quinhão hereditário não valia o preço declarado pelos outorgantes na escritura;
11. A autora sabe que o Réu C.......... tinha pelo menos um credor;
12. Os oito apartamentos que integram a herança estão todos ocupados por arrendatários;
13. A moradia está ocupada, pelo menos do rés-do-chão, por uma empresa de uma rádio local.

Apreciando:

A grande questão que nos cumpre apreciar de decidir, face à matéria de facto que resultou apurada, é saber por que valor pode a A. exercer o seu direito de preferência, se pelo valor declarado na escritura de compra e venda, se pelo valor declarado na escritura de rectificação do preço naquela declarado, ou se pelo valor real.

Antes da abordagem do nosso caso, teçamos alguns considerandos genéricos, de ordem doutrinal e jurisprudencial:

O direito legal de preferência – a que também se chama de preempção, de prelação, tanteio ou opção – é hoje qualificado sem discrepância pela doutrina como um direito real de aquisição.
Os direitos legais de preferência conferem ao respectivo titular a faculdade de, em igualdade de condições (“tanto por tanto”), ele se substituir a qualquer adquirente da coisa sobre que incidam, em certas formas de alienação.
As suas raízes encontram-se no direito de avoenga e no direito de opção. O primeiro conferia aos parentes de vendedores de raiz, herdados em tronco comum, a possibilidade, a possibilidade de realizar a aquisição, pagando um “justo preço”. O segundo visava não a concentração da propriedade – e daí a animosidade contra o primeiro, por isso e pela condição do “justo preço” -, mas a consolidação da propriedade dividida, aspecto sempre importante quer na propriedade urbana quer principalmente na propriedade rústica.
Além disso, a atribuição de um direito real de preferência ou opção visa pôr cobro a situações de potencial conflito de natureza social e, mais modernamente, de realização de princípios de sede constitucional, como sejam o da igualdade de oportunidades e do direito a uma habitação condigna.
No reverso do instituto, salienta-se, com frequência, o entrave à livre circulação de bens, a diminuição do valor real destes por virtude do ónus incidente, a que poderíamos aditar a potencialidade conflitual que alimenta junto dos tribunais quer pela inobservância das formalidades a cumprir quer pelos expedientes usados no propósito de fugir aos ditames legais. Por isso alguns autores criticam a tendência expansionista deste direito [Parecer da PGR nº 40/95, de 26.10.95, in DR, II, 22.2.1996, pag. 2608].

Dispõe o art. 1410º do C. Civil:
1. O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contando que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes á propositura da acção.
2. O direito de preferência e a respectiva acção não são prejudicados pela modificação ou distrate da alienação, ainda que estes efeitos resultem de confissão ou transacção judicial.

O prazo para exercer o direito de preferência conta-se a partir da data em que o preferente teve conhecimento – não da venda, como se dizia na legislação anterior – mas dos elementos essenciais da alienação.
São elementos essenciais todos aqueles factores capazes de influir decisivamente na formação de vontade de preferir ou não, todos os elementos reais do contrato que possam ter importância no estabelecimento duma decisão num sentido ou noutro [Por todos o Ac. RP de 19.6.1970, JR 16º, 560; Ac RP de 25.6.1970, JR 16º, 562, Ac STJ de 12.11.1974, in BMJ 241º, 290, e RLJ 108º, 351], designadamente a identidade dos outorgantes, o objecto do contrato e o preço fixado [Por todos o Ac. STJ de 3.7.1984, in BMJ, 339, 383].

Ponderou Antunes Varela [RLJ, 100º, 352] nos termos seguintes: “Em face do novo preceito (art. 1410º nº1 supra transcrito), a única dúvida legítima que pode suscitar-se, no caso especial de simulação de preço, é a de saber se o prazo deve contar-se a partir do momento em que, informado da simulação, o preferente teve conhecimento do preço real ou antes da data em que a decisão proferida na acção de simulação fixou o preço real da operação.
E continuou - por nossa parte, inclinamo-nos francamente para a segunda solução.
Antes de julgada a acção, o titular da preferência não terá muitas vezes senão uma convicção ou uma suspeita, mais ou menos fundamentada, acerca da simulação; mesmo quando a convicção seja firma, bem documentada, há que contar sempre com os riscos e os imponderáveis próprios da acção judicial.
Por isso, de verdadeiro conhecimento dos elementos essencial que é o preço só poderá falar-se, com inteira propriedade, a partir do momento em que, instruída e julgada a causa, o tribunal o apurou e declarou.
Contra esta dilação do prazo não pode argumentar-se com qualquer interesse sério do alienante ou do adquirente, visto que ela só funciona quando a simulação se prove, e, nesse caso, o intuito com que as partes agiram de enganar ou prejudicar terceiros pode não merecer a protecção da lei.
Quanto ao titular da preferência, volta a dizer-se que não há nenhuma razão válida para que não se lhe concedida, após conhecimento firme, seguro do preço real, por que a venda foi efectuada, o mesmo prazo que lhe é facultado, quando a venda não seja simulada, para decidir sobre o exercício do seu direito e para obter os meios necessários”.

No mesmo sentido, parece pronunciar-se Vaz Serra [RLJ 111º, 260], quando diz que na hipótese de ter existido simulação de preço, sendo o preço real inferior ao declarado e o titular do direito de preferência querer exercer o respectivo direito por aquele, o prazo para a acção de preferência só começa a correr após o trânsito em julgado da decisão – proferida na acção de simulação – que fixe qual foi o preço real; sendo julgada improcedente a acção de simulação o direito do preferente, que não tenha proposto a acção de preferência dentro do prazo legal a contar do seu conhecimento do contrato e do preço nele declarado, ou não tenha efectuado o depósito desse preço no prazo do nº 1 do art. 1410º, só caduca quando ele preferente conhecesse que tal preço era o verdadeiro e hajam decorrido seis meses após esse conhecimento.

No direito de preferência em contrato de compra e venda em que o preço declarado é superior ao real, desconhecendo o preferente este último, deve o mesmo preferente intentar uma acção declarativa de simulação. Na verdade, sendo o preço elemento essencial na alienação, havendo simulação de preço há que fixá-lo previamente e só depois começa a correr o prazo de seis meses para o preferente exercer, querendo, o seu direito. Assim o prazo para a acção de preferência só se inicia com o trânsito em julgado da decisão que fixou o preço real. [Ac. RL de 1.7.1999, in BMJ 489, 394]

Não correspondendo o preço declarado no contrato de venda ao preço real, o direito de preferência só pode ser conferido se o preferente pagar o preço real, pois a correspondência entre o preço real e declarado é um pressuposto desse direito. Constitui abuso de direito o exercício do direito de preferência, quando a enorme diferença entre o valor real e o valor declarado do prédio, conhecida do preferente, exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social e económico que lhe estão subjacentes [Ac. STJ de 25.11.86, in BMJ 361, 534].

No exercício do direito de preferência pode discutir-se e provar-se, por qualquer meio, que o preço real da venda é diferente do que consta da escritura pública, pois o que importa é aquele primeiro [Ac. RL de 7.3.1989, in BMJ 385, 599].

Em caso de simulação do preço de venda, o respectivo preferente há-de pagar o preço real. A simulação é inoponível somente aos terceiros de boa fé prejudicados com a nulidade do negócio simulado e não também aos que apenas deixam de lucrar com essa nulidade. [Ac. RE de 8.3.1990, in BMJ 396, 206]

Face à divergência entre o preço real e o declarado na escritura, haja ou não simulação, o direito de preferência só pode ser reconhecido se o preferente pagar o preço real (preço “devido” – nº 1 do art. 1410º do CC) pago pelo adquirente [Ac. RE de 23.10.1997, in BMJ 469, 669].

Em caso de simulação de venda do prédio, o arrendatário titular do direito de preferência quanto a essa alienação pode pretender exercê-lo em relação ao preço simulado (sem abdicar de reagir contra ele), tendo para tanto de propor a respectiva acção e depositar tal preço no prazo de seis meses – pois se o não fizer, e a simulação se não provar, perderá o direito de preferência por caducidade. Se, ao invés, pretender exercer o seu direito em relação ao preço real, o preferente tem de aguardar a decisão da acção de declaração de nulidade, para, em caso de procedência desta, fazer valer tal direito dentro dos seis meses posteriores ao trânsito em julgado da acção que fixar o preço real da alienação – não relevando para o efeito o prazo de oito dias previsto no art. 416º nº 2 do CC, já que caducidade pressupõe a comunicação válida e eficaz, e essa não ocorreu, na simulação, em relação ao preço real. [Ac. STJ de 9.7.1998, in BMJ 479, 566]

O art. 1410º nº 2 do C. Civil (supra transcrito) visa proibir que vendedor e comprador obrigados à preferência a frustrem mediante o expediente de resolverem o contrato de alienação, ou, o que daria o mesmo resultado, virem a posteriori a alterar o preço, invocando lapso e indicando então um preço muito elevado para levarem o preferente a desistir da sua pretensão. Sendo este o objectivo da lei, é claro que, com o mesmo, se não pretendeu impedir que deva valer o novo preço, desde que os obrigados á preferência provem que o novo preço é efectivamente o real. Colocar o ónus da prova do novo preço a cargo do preferente seria tornear a razão de ser do citado normativo, apostado precisamente e, impedir as manobras fraudulentas dos obrigados à preferência [Ac STJ de 17.6.1998, in BMJ 478, 373].

Na acção de preferência em que os Autores alegam que o preço real do imóvel vendido não é o declarado na escritura e sim outro que também indicam, terão de depositar o preço que entendem ser o real. Não o tendo feito no prazo fixado no nº 1 do art. 1410º do C. Civil, caducou o direito de preferência que pretendem exercer. [Ac. RL de 1.7.1999, in CJ, 1999, 4º, 86]

Ensina Almeida Costa [Direito das Obrigações, 8ª edição, pag. 411, nota 1] que verificando-se simulação do preço, em que o preço declarado seja superior ao preço real, não se oferecem dúvidas de que a preferência se exerce por este último (art. 240º nº 2, 241º, e 286º). Todavia, já existem discrepâncias, se o preço declarado se mostra inferior ao valor real. Afigura-se mais razoável que também nesta hipótese a preferência se realize pelo preço real. O problema prende-se com a interpretação do art. 243º nº 1 do CC, quanto á inoponibilidade da simulação a terceiros de boa fé, quer dizer, se apenas se impede que seja arguida pelos simuladores contra terceiros de boa fé prejudicados com a invalidação, ou também contra os que tão-só deixam de lucrar. Propendemos, na verdade, para a solução da preferência pelo preço real, pois, apesar da simulação, não se justifica um locupletamento do preferente. [No mesmo sentido os Autores referidos na dita nota, nomeadamente Manuel de Andrade, Mota Pinto, in Teoria Geral, pag. 484, Mário de Brito, Cod. Civil Anotado, Vol. I, pag. 291 em anotação ao art. 243º, Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. I, pag. 500 e segs]

No mesmo sentido se pronuncia Aragão Seia [Arrendamento Urbano, 7ª edição, 2003, pag. 325-326] - se o autor pensar que o preço declarado é simulado por ser superior ao real deve, mesmo assim, depositá-lo sob pena de, não se provando que não é o real, poder ver a acção julgada improcedente. Se o autor está convencido de que o preço declarado é simulado, sendo inferior ao real, não pode pretender preferir pelo declarado pois, sendo-lhe oponível a nulidade do negócio simulado, é admitido a preferir pelo preço real. Neste caso só a partir do trânsito em julgado da sentença é que começa a correr o prazo de quinze dias para depositar a diferença entre o preço real e o declarado.

No caso de simulação de preço, com declaração de preço inferior para fugir ao Fisco, a preferência tem de ser exercida pelo preço real. Os próprios simuladores podem demonstrar essa simulação com recurso a prova testemunhal desde que exista um “começo de prova por escrito”, como seja uma escritura de rectificação de preço. [Ac. RC de 24.1.1995, in CJ, XX, I, 35]

Não podendo a nulidade da simulação ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé (art. 243º nº1 do CC), compete aos Réus na acção de preferência alegar e provar que o titular do direito de preferência conhecia a simulação relativa ao preço, ao tempo da celebração da compra e venda, para se poderem fazer valer de tal excepção e evitarem a preferência pelo preço simulado constante da escritura. [Ac. RL de 23.10.2001, in CJ, XXVI, 4, 123]

Aqui chegados, expostos os diversos pontos de vista jurisprudenciais e doutrinais de alguma forma tocantes com a situação vertida nos presentes autos, pontos de vista esses nem sempre coincidentes, nem perfeitamente idênticos à nossa questão fáctica, o certo é que poderemos concluir como aspecto uniforme patente em todas as leituras feitas, que a preferência tem de ser exercida pelo preço real da coisa.

Ora, no caso vertente, tendo em conta a factualidade que ficou apurada, a preferente, embora tendo perfeita consciência de que o valor do quinhão hereditário tinha valor superior ao preço de 10 mil contos declarado na escritura de 25 de Setembro de 2001, apenas depositou esse mesmo montante, não curando de depositar o preço que, em seu entender, correspondia ao valor real do dito quinhão hereditário.

Poder-se-á aceitar tal procedimento como correcto até ao momento em que os RR. deram notícia de terem procedido à rectificação daquele preço declarado, por escritura de 13 de Janeiro de 2003, para o valor de € 174.579,26, pois aí, mesmo que não se conformassem com tal preço, deveriam prevenir a possibilidade de os RR., que na primeira escritura simularam o preço, lograrem a prova da correspondência do valor ora declarado ao valor real do bem alienado.
A A. assim não procedeu, persistindo na sua pretensão de preferir tão só pelo valor inicialmente declarado, de 10 mil contos, que sabia não ser real.
De facto, assim que informada do valor constante da escritura de rectificação, a A. deveria ter procedido de imediato, e dentro do prazo consignado no nº 1 do art. 1410º do CC, ao depósito do remanescente do preço, assim ficando salvaguardada perante a caducidade do seu direito, resultante da sua inépcia, e quiçá do oportunismo de que não soube libertar-se.
Perante a pretensão de preferência invocada pela demandante, os RR., alienante e adquirente, logo vieram invocar a simulação do preço por motivos fiscais, simulação que lograram demonstrar, quer pela evidência do valor real do quinhão hereditário à data do negócio (50 mil contos), quer pela junção da escritura de rectificação do preço, documento autêntico cuja validade não foi posta em causa, que consignou como preço do bem alienado a quantia de € 174.579,26.
Embora se compreenda que os simuladores não se possam prevalecer da nulidade do negócio que falsamente celebraram em detrimento de terceiros que, por estarem de boa fé, confiaram na bondade do acto simulado, deixa essa razão de existir quando o terceiro não visa prevenir um dano, que a invocação da nulidade criaria, mas manter um benefício emergente do acto simulado e para o qual não se vê justificação [Carvalho Fernandes, Simulação de Tutela de Terceiros, 59].
O exemplo clássico, como aponta Carvalho Fernandes [Ob. e loc. cit.], é justamente o do preferente na simulação de valor, em que se declara um preço inferior ao preço real. A que título, juridicamente atendível, beneficiaria o preferente desse mesmo preço mais baixo, se é certo que a simulação não foi feita sequer com a intenção de o prejudicar?
Como afirma Mota Pinto [Teoria geral do Direito Civil, 2ª ed., 483], a solução da inoponibilidade, neste caso, é irrazoável pois a torpeza dos simuladores não legitima um locupletamento de terceiro (preferente) que não seria menos torpe.

Assim, não desejando a A. evitar um prejuízo resultante da simulação do preço, mas tão só beneficiar de uma vantagem sem cabimento e censurável, qual seja a de lucrar com a aquisição de um bem por preço que sabia muito inferior ao declarado na escritura, deixou a mesma de merecer a protecção ínsita no art. 243º nº 1 do CC, por não ser terceiro de boa fé, sendo-lhe, pois, oponível a simulação pelos RR. simuladores.

E sendo-lhe oponível tal simulação, das duas uma – ou a A. preferente persistia no seu desígnio de preferir, logo depositando o resto do preço, por ser este o valor real que lhe fora dado a conhecer com a notificação da contestação (peça processual em que os RR. noticiam a rectificação do preço operada), ou persistia, como persistiu, no seu desígnio de fazer o melhor negócio, aproveitando o preço inicialmente declarado e arrogando-se ao direito de preferir por este, desmerecendo a protecção dos normativos e princípios supra consignados.

No caso vertente, ainda se poderia admitir que a A., se tivesse procedido ao depósito da parte restante do preço, correspondente ao diferencial entre o preço inicialmente declarado e o preço rectificado, logo (dentro do prazo do art. 1410º nº1) que deste tivesse conhecimento, pudesse lograr a sua pretensão, mesmo que viesse (como veio) a demonstrar-se que o valor do quinhão hereditário em causa era de 50 mil contos, pois não seria chocante a diferença entre o valor depositado (€ 174.579,26 – cerca de 35 mil contos) e aquele valor, não se podendo em tal situação afirmar que a A. estaria a abusar do seu direito.

O que não temos a mínima sombra de dúvidas em afirmar como de todo inadmissível é que a A. pretenda exercer o seu direito de preferência por 10 mil contos, depois de saber que esse preço declarado fora rectificado para 35 mil contos, e que, afinal, o quinhão hereditário até valia 50 mil contos.
Para além de ter caducado o seu direito, porque não depositou o preço quando devia, sempre a sua actuação seria abusiva, e como tal proibida ante o disposto no art. 334º do CC, pois excederia manifestamente os limites impostos pelo fim social e económico que lhe estão subjacentes.

Não pode, como tal, deixar de improceder a pretensão da A., improcedendo a apelação.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.
Porto, 24 de Novembro de 2005
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão