Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0312396
Nº Convencional: JTRP00036380
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: FRAUDE FISCAL
DISPENSA DE PENA
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
Nº do Documento: RP200310010312396
Data do Acordão: 10/01/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 3 J CR V N GAIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - A iniciativa de arquivamento dos autos pertence ao Ministério Público.
II - Depois de o processo transitar para julgamento, o arquivamento já não pode ter lugar.
III - A dispensa da pena justifica-se se a situação fiscal tiver sido regularizada e se a ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

No -º Juízo Criminal de....., em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi proferida sentença que condenou o arguido FERNANDO....., como autor de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art. 103º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 15/01, de 5 de Junho, em pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária € 77,00 (setenta e sete euros), o que perfaz a multa global de € 10.780.00 (dez mil setecentos e oitenta euros).
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Desta sentença interpôs recurso o arguido Fernando..... suscitando as seguintes questões:
- impugna a matéria de facto na parte relativa aos montantes indevidamente apropriados;
- em consequência da alteração desses valores, os factos não são puníveis – art. 103 nº 2 do RGIT;
- o arquivamento do processo, ao abrigo do disposto no art. 26 nºs 1 e 2 do RJIFNA; e
- a dispensa de pena, ao abrigo do disposto no art. 22 nº 1 do RGIT.
Respondendo o magistrado do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.
Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da audiência com observância do formalismo legal.
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I – No sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1 - Os arguidos foram casados um com o outro nos anos de 1992 a 1995.
2 - O arguido declarou o início de actividade de analista de sistemas, em regime liberal, para efeitos de I.R.S.- categoria B, e I.V.A, em 1988.
3 - Como contribuinte é titular do N.I.F. ......, está domiciliado fiscalmente na Alameda....., ....., área da Repartição de Finanças deste concelho, estando sujeito a I.R.S pelo regime geral.
4 - Em 31 de Agosto de 1993 declarou cessação dessa actividade, embora já ião trabalhasse por conta própria desde Dezembro de 1992.
5 - Durante esse período de tempo, enquanto trabalhou por conta própria, apenas teve como cliente a firma denominada “M....., Lda”.
6 - No ano de 1992, a par desta actividade, o arguido trabalhou sob as ordens, direcção e fiscalização da Escola Profissional “P....”.
7 - No ano de 1993 e nos anos seguintes apenas trabalhou para essa Escola como trabalhador por conta de outrem – categoria A .
8 - A arguida desde o ano de 1992, inclusive, até ao momento presente, é enfermeira no Hospital “M.....”, no....., nunca tendo exercido qualquer outra profissão remunerada.
9 - Como contribuinte é titular do NIF......., esteve domiciliada fiscalmente nos anos de 1992 a 1995 na Alameda....., ......, área da -ª Repartição de Finanças deste concelho, estando sujeita a IRS pelo regime geral.
10 - O arguido, em data não concretamente apurada do ano de 1991, apercebeu-se da forma como funcionava o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (I.R.S.), sabendo, designadamente, que havia lugar a reembolsos no caso de serem retidas e entregues ao Estado quantias superiores às que eram devidas, de acordo com a taxa aplicável à matéria colectável do casal.
11 - Assim, o arguido sabia que se apresentasse nas declarações de I.R.S., modelo 2, rendimentos que não auferira, despesas e retenções na fonte que na realidade não suportou, podia induzir em erro a Administração Fiscal e, por essa forma, à custa do Estado e da comunidade contribuinte, aceder a benefícios fiscais indevidos, designadamente através de reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem a diminuição das receitas tributárias.
12 - Igualmente, tinha conhecimento que tais reembolsos seriam entregues no ano seguinte aquele a que respeitavam os rendimentos declaradamente auferidos, ano em que era preenchida e entregue a declaração de rendimentos de I.R.S., modelo 2.
13 - Conhecedor dessa situação e animado pelo propósito de integrar ao seu património quantias pecuniárias que não lhes pertenciam, assim se enriquecendo em igual medida à custa do Estado, procedeu da seguinte forma:
14 - No dia 18 de Abril de 1993, juntamente com a declaração de rendimentos – IRS, modelo 2, relativa ao ano de 1992, foi entregue pelo arguido, devidamente assinada pela Anabela..... na segunda Repartição de Finanças desta cidade, o Anexo B, relativo a trabalho independente, nele fazendo constar, como proventos por ela auferidos, enquanto prestadora de serviços, Esc. 3.676.125$00, como encargos dedutíveis Esc. 2.415.419$00 e como retido na fonte e entregue ao Estado, IRS no montante de Esc. 551.414$00.
15 - No dia 24 de Abril de 1994, juntamente com a declaração de IRS- modelo 2, relativa aos rendimentos do ano de 1993, foi entregue pelo arguido na -ª Repartição de Finanças desta cidade de....., dois anexos B, onde, ficticiamente, num deles assinado pela Anabela....., foi declarado a quantia de Esc. 3.745.325$00, como proveniente de serviços por ela prestados, o montante de Esc.2.402.325$00, relativo a encargos dedutíveis a esses rendimentos, e como retido na fonte e por esta entregue ao Estado a título de IRS a importância de Esc. 561.799$00 e, no outro, assinado pelo arguido, foi declarado como rendimento relativo a prestação de serviços, o valor de Esc. 5.592.300$00, como encargos dedutíveis a esse rendimento, a quantia de Esc. 3.930.566$00 e, a título de IRS retido na fonte e entregue ao Estado a quantia de Esc. 838.845$00.
16 - Bem sabia o arguido que tudo o que exarava nesses anexos-B das declarações de rendimentos de I.R.S. não correspondia à verdade, uma vez que em 1993 não tinha ele próprio e a esposa Anabela...... a exercido qualquer actividade como trabalhadores independentes (categoria B).
17 - Ainda nesse dia 24 de Abril, conjuntamente com a referida declaração de rendimentos, modelo 2, foram entregues pelo arguido nessa Repartição de Finanças dois anexos A, respeitantes a cada um deles e por eles assinadas, onde, contrariamente à verdade, foram declaradas retenções na fonte de IRS superiores às efectivamente efectuadas pelas respectivas entidades patronais.
18 - Foi declarado como retido na fonte ao arguido e entregue ao Estado a quantia de Esc. 353.780$00, quando, na realidade, lhe foram retidos e entregues ao Estado pela sua entidade patronal Esc. 53.780$00.
19 - Foi declarado como retidas à Anabela..... e entregues ao Estado, a título de IRS, o valor de Esc. 817.240$00, quando, na verdade, a retenção na fonte no ordenado por ela auferido apenas ascendeu a Esc. 317.240$00.
20 - Para esse efeito, foram exibidos pelo arguido ao funcionário as respectivas notas de rendimentos atinentes ao ano de 1993, emitidas pelas suas entidades patronais, nas quais, previamente, ele alterou, pelo seu próprio punho, em conformidade, os montantes que figuravam como retenções de IRS.
21 - No dia 3 de Maio de 1995, foram entregues pelo arguido na Repartição de Finanças a declaração de rendimentos de IRS, modelo 2, relativa aos rendimentos do ano de 1994, por si e por Anabela..... assinada, onde no anexo A., bem sabendo que o que aí exarava não correspondia à verdade, declarou:
22 - Como rendimentos auferidos pelo arguido a quantia de Esc. 1.150.000$00, quando na verdade, nesse ano, recebeu da sua entidade patronal Esc. 1.537.500$00; como retidas na fonte e entregues ao Estado a quantia de Esc. 460.000$00 de IRS, quando o montante desse imposto retido na fonte e entregue ao Estado pela sua entidade patronal ascendeu apenas a Esc. 139.800$00.
23 - Mais foi declarado, como retidas na fonte e entregues ao Estado pela entidade patronal da Anabela..... Esc. 870.370$00, de IRS, quando a quantia a esse título retida e entregue ao Estado foi de Esc. 370.370$00.
24 - Para esse efeito, foi exibido pelo arguido ao funcionário das Finanças as notas dos rendimentos auferidos e do IRS retido no ano de 1994, emitidas pelas respectivas entidades patronais, nas quais, previamente, o arguido alterou, pelo seu próprio punho, o montante do seu vencimento seu anual e as quantias que nelas constavam como retenções na fonte de IRS.
25 - Ainda nesse dia 3 de Maio de 1995, o arguido entregou à Administração Fiscal dois anexos B, um referente à Anabela..... e por ela assinado, outro a si respeitante e, por este assinado, referentes aos rendimentos provenientes de trabalho independente (categoria B) onde declarou rendimentos, despesas e retenções na fonte de IRS inexistentes, pois que nesse ano de 1994, nenhum dos arguidos exerceu qualquer actividade enquanto trabalhadores por conta própria.
26 - No Anexo B referente à Anabela....., o arguido fez constar como rendimento proveniente de prestação de serviços a quantia de Esc. 4.320.000$00; como encargos dedutíveis a esse rendimento Esc. 2.727.663$00; e como retidos na fonte e entregues ao Estado a título de IRS, a importância de Esc. 648.000$00.
27 - No anexo B relativo ao arguido por este foi declarado como rendimento auferido por serviços prestados o valor de Esc. 5.843.400$00; como encargos dedutíveis a tal rendimento Esc. 3.696.790$00; e como retidos na fonte e entregues ao Estado, a título de IRS, a importância de Esc. 876.510$00.
28 - No dia 30 de Abril de 1996, na declaração de rendimentos, modelo 2, por ambos assinada (arguido e Anabela.....), relativa ao ano de 1995, no Anexo-A, respeitante ao trabalho dependente, foi feito constar pelo arguido, bem sabendo que o que exarava não correspondia à verdade, como retidas na fonte e entregues ao Estado pela sua entidade patronal, a título de IRS, a quantia de Esc. 828.860$00, quando, na realidade, apenas foram retidas e entregues Esc. 228.860$00;
29 - Mais foi declarado pelo arguido como retidas e entregues ao Estado pela entidade patronal da Anabela....., a importância de IRS de Esc. 821.730$00, quando, efectivamente, a quantia a esse título retida no salário por ela auferido e entregue ao Estado foi de Esc. 321.730$00.
30 - Para esse efeito, pelo arguido foram exibidas ao funcionário público as respectivas notas de rendimentos auferidos e de imposto retido, relativos aos anos de 1995, emitidas pelas suas entidades patronais, nas quais, previamente, alterou os valores referentes às importâncias de IRS retidas na fonte e entregues ao Estado.
31 -- Ainda nesse dia 30 de Abril de 1996, o arguido deu entrada na Repartição de Finanças acima citada dois Anexos B, relativos aos rendimentos de trabalho independente, um atinente à arguida, por ela assinado, outro a si referente, e por este assinado, onde foi feito constar rendimentos, encargos dedutíveis e retenções de IRS inexistentes, uma vez que também no ano de 1995 nenhum deles exerceu qualquer actividade por conta própria.
32 - No Anexo B relativo à Anabela....., como proventos da prestação de serviços, foi declarada a importância de Esc. 4.780.935$00; como encargos dedutíveis a esse rendimento, Esc. 3.204.315$00; e como retida e entregue ao Estado, a título de IRS, Esc. 717.140$00.
33 - No Anexo B relativo ao arguido, foi exarado como provenientes da prestação de serviços, Esc. 6.115.056$00; como encargos dedutíveis a esse rendimento, Esc. 3.533.305$00; e como retida, a título de IRS, e entregue ao Estado, a importância de Esc. 917.258$00.
34 - O arguido ao entregar na Repartição de Finanças as declarações de rendimentos acima referidas, nas quais foi feito constar rendimentos não auferidos, encargos dedutíveis inexistentes e retenção de IRS na fonte, umas inexistentes (Anexo B), outras de valor superior ao real (Anexo A), fazendo-as acompanhar das notas dos salários pagos e IRS retido na fonte, emitidas pelas suas entidades patronais, previamente alteradas, conseguiu, induzir em erro a Administração Fiscal, a qual convicta da veracidade dos factos constantes das mesmas, nos anos de 1993, 1994 e 1995, entregou, respectivamente, aos arguidos reembolsos de IRS nos montantes de Esc. 1.165.383$00 (relativo ao ano de 1992), Esc. 1.722.635$00 (relativo ao ano de 1993) e Esc. 1.692.556$00 (relativo ao ano de 1994), quando os reembolsos, efectivamente, devidos nesses anos, seguindo a mesma ordem cronológica, eram de Esc. 787.761$00, 193.252$00 e 231.876$00, assim se locupletando os arguidos, à custa do Estado, com as quantias de Esc. 377.622$00, em 1993; 1.529.383$00, em 1994; e 1.460.680$00, em 1995, só não obtendo o reembolso indevido, de Esc. 1.556.419$00 de IRS no ano de 1996 (relativo ao ano de 1995) por, entretanto, terem sido fiscalizados pela D.D.F.P. e, por isso, em substituição da relação de rendimentos modelo 2 que foi entregue em 30 de Abril de 1996, ter sido apresentada, em 21 de Março de 1997, uma outra, na qual foram declarados os rendimentos realmente auferidos e as retenções de IRS que, efectivamente, incidiram sobre os seus ordenados.
35 - Com a descrita conduta, obteve o arguido, como queria, nos referidos anos, para seu enriquecimento indevido, o montante global de Esc. 3.367.685$00, prejudicando, pelo menos, em igual medida a Administração fiscal e a comunidade contribuinte.
36 - Na sequência da fiscalização de que foram alvos, os arguidos regularizaram a sua situação fiscal, pagando integralmente todas as liquidações adicionais que lhes foram feitas, conforme cópias dos recibos de fls. 112, 113 1 114, cujo teor aqui se reproduz para todos os efeitos legais.
37 - O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, não desconhecendo o carácter proibido e punido da sua conduta.
38 - O arguido é engenheiro..... sendo actualmente sócio gerente da sociedade W....., prestando ainda apoio informático a diversas empresas, actividade da qual retira um rendimento de esc. 800.000$00.
39 - É divorciado e vive em união de facto.
40 - Tem três filhos menores para o sustento dos quais contribui com esc. 250.000$00 por mês.
41 - Paga por mês uma prestação de esc. 230.000$00 relativa à amortização do empréstimo que contraiu para aquisição de habitação própria.
42 - Do seu certificado de registo criminal nada consta.
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Considerou-se não provado que:
A arguida em data não concretamente apurada de 1991 apercebeu-se da forma como funcionava o IRS, sabendo, designadamente, que havia lugar a reembolsos no caso de serem retidas e entregues ao Estado quantias superiores às que eram devidas, de acordo com a taxa aplicável à matéria colectável do casal.
A arguida sabia que se apresentasse nas declarações de IRS, modelo 2, rendimentos que não auferira, despesas e retenções na fonte que na realidade não suportara, podia induzir em erro a administração fiscal e, por essa forma, à custa do Estado e da comunidade contribuinte aceder a benefícios fiscais indevidos, designadamente, através de reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem a diminuição das receitas tributárias.
Tinha conhecimento que tais reembolsos seriam entregues no ano seguinte àquele a que respeitavam os rendimentos declaradamente auferidos, no ano em que era preenchida e entregue a declaração de rendimentos de IRS, modelo 2.
Conhecedora dessa situação e animada pelo propósito de integrar no seu patrimónios quantias pecuniárias que não lhe pertenciam, assim enriquecendo em igual medida à custa do Estado, de comum acordo com o arguido e em conjugação de esforços a arguida praticou os factos dados como provados.
A arguida sabia que todas as declarações apresentadas e modelos anexos não correspondiam à verdade.
Ao proceder da forma narrada, bem sabia a arguida que punha em causa o valor provatório das declarações de rendimentos e IRS, modelo 2, os rendimentos, encargos dedutíveis e retenções na fonte de IRS que as mesmas se destinam a certificar, afectando a sua credibilidade.
A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, não desconhecendo o carácter proibido e punível da sua conduta.
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FUNDAMENTAÇÃO
1 – A impugnação da matéria de facto
Começa o recorrente por impugnar a matéria de facto considerada provada, na parte relativa aos montantes com que se locupletou, isto é, 377.622$00 em 1993 (com referência ao ano de 1992), 1.529.383$00 em 1994 (com referência ao ano de 1993) e 1.460.680$00 em 1995 (com referência ao ano de 1995).
Defende que esses montantes deverão ser fixados em, respectivamente, 281.272$00; 690.905$00 e 1.460.680$00.
Decorre esta sua pretensão da análise que faz de diversos documentos juntos aos autos.
Mas, como o próprio recorrente reconhece, os valores indicados na sentença têm suporte em documentos juntos aos autos, nomeadamente no relatório da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos junto a fls. 10 e ss.
Acresce que no início do julgamento o recorrente não só declarou que, nos termos do art. 364 nº 1 do CPP, prescindia da documentação na acta das declarações prestadas oralmente (no que foi acompanhado pelo MP), mas também que pretendia confessar os factos imputados. Tendo-lhe sido perguntado pela sra. juiz se fazia a confissão de livre vontade e fora de qualquer coacção e se a mesma era integral e sem reservas, respondeu afirmativamente – acta de fls. 299 cujo conteúdo o arguido nunca impugnou.
Esta declaração teve como efeito a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados – art. 344 nº 2 al. a) do CPP.
Os montantes indicados na sentença, que o recorrente só agora impugna, são exactamente os mesmos que constam da acusação.
O recorrente ao fazer a declaração referida impediu o MP de demonstrar que os valores que indicara eram os correctos.
Dado o efeito cominatório da confissão que fez, não pode vir agora em sede de recurso impugnar o que anteriormente aceitou expressamente.
Está, assim, igualmente, excluída a possibilidade de considerar não punível o comportamento do recorrente, ao abrigo do disposto no art. 103 nº 2 do RGIT, por estar em causa a obtenção de vantagem patrimonial ilegítima igual ou superior a € 7.500.
2 – O arquivamento do processo
Dispunha o art. 26 nº 2 do RJFINA (em vigor na data dos factos) que se estivessem pagos o imposto ou impostos em dívida e os eventuais acréscimos legais ou tivessem sido restituídos ou revogados os benefícios injustificadamente obtidos "pode o Ministério Público, ouvido o assistente e com a concordância do juiz de instrução, decidir-se pelo arquivamento do processo até à sua remessa para julgamento, se considerar satisfeitas as exigências de prevenção que no caso se façam sentir e a conduta do agente não se revestir de forte gravidade”.
Entende o recorrente que tendo o arguido, aquando da acusação e da decisão instrutória, reposto a verdade fiscal e procedido ao pagamento de todas as quantias devidas, tinham o Ministério Público e o juiz de instrução o poder-dever de arquivar o processo. Não o tendo feito isso configura «nulidade processual», de que a sentença recorrida não conheceu, o que igualmente determina a sua nulidade.
Começando pelo fim: a decisão de arquivar o processo, com o fundamento indicado, não é «processual». Mas mesmo que fosse, não se vê, nem indica o recorrente, qual a norma que comina com «nulidade» a decisão de fazer seguir o processo para julgamento. É que “a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei” – art. 118 nº 1 do CPP.
Finalmente: como bem se escreveu na sentença recorrida e decorre claramente da letra da lei “competia ao Ministério Público, e só, assumir a iniciativa do arquivamento do processo até ao julgamento. Não o tendo feito, não pode o tribunal, depois de o processo ter transitado para a fase de julgamento, substituí-lo em tal iniciativa”. A iniciativa tem de caber ao MP, embora para o arquivamento seja necessária a concordância do juiz de instrução e do assistente.
Onde a letra da lei é clara são descabidos grandes esforços de exegese.
Por isso, sem necessidade de outras consideração, conclui-se pela improcedência do recurso nesta parte.
3 – A dispensa de pena
Dispõe o art. 22 do RGIT:
1 - Se o agente repuser a verdade sobre a sua situação tributária e o crime for punível com pena de prisão igual ou inferior a três anos, a pena pode ser dispensada se:
a) A ilicitude do facto e a culpa do agente não forem muito graves;
b) A prestação tributária e demais acréscimos legais tiverem sido pagos, ou tiverem sido restituídos os benefícios injustificadamente obtidos;
c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção.
Verificando-se o pressuposto do corpo da norma (o crime é punível com prisão até 3 anos), analisemos se o caso em apreço cabe na previsão de cada uma das três alíneas, cuja verificação é cumulativa.
Quanto à al. a):
A dispensa de pena só não poderá ter lugar se a ilicitude ou a culpa forem «muito graves», isto é, se forem claramente superiores à média.
A «culpa» é o juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso – cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316.
Lendo-se os factos provados, neles não se detectam quaisquer circunstâncias que a agravem de modo significativo, relativamente à generalidade das condutas similares. Pelo contrário, o recorrente na execução do seu desígnio criminoso usou o expediente mais usual neste tipo de crimes. Adulterou o conteúdo de documentos por forma a «certificar» declarações de IRS onde fez constar valores que não correspondiam à realidade.
Quanto ao grau da ilicitude, ela deve ser aferida, antes de mais, pelos montantes apropriados, tendo em conta os critérios que o próprio RGIT nos fornece.
O art. 103 nº 2 do RGIT só considera puníveis os factos quando a vantagem patrimonial ilegítima for igual ou superior a € 7.500. E o nº 3 do mesmo artigo determina que “para os efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que (...) devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.
Das três quantias acima referidas, só a de 1.529.383$00 ultrapassa aquele valor de € 7500, mas situa-se muito perto do valor mínimo previsto para a punição.
Não se pode, pois, falar em ilicitude ou culpa muito graves.
Quanto à al. b): resulta inequivocamente do facto provado sob o nº 36 que está verificado a condição prevista nesta alínea. Ficou provado que “os arguidos regularizaram a sua situação fiscal, pagando integralmente todas as liquidações adicionais que lhes foram feitas”.
Quanto à al. c):
As razões de prevenção referidas nesta alínea são essencialmente razões de prevenção especial.
Vejamos:
Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial - Prof. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, pag. 110.
No que respeita à prevenção geral, a pena tem o fim de servir para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. É o instrumento, por excelência, destinado a revelar perante a comunidade que a ordem jurídica é inquebrantável, apesar de todas as violações que tenham lugar – obra citada, pags. 74 e ss. É a chamada prevenção geral positiva ou de integração, que dentro dos limites da medida da culpa determina a pena. Esta, em caso algum, deverá pôr em causa o limite inferior constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. A pena não pode questionar a crença da comunidade na validade da norma violada e, por essa via, o sentimento de confiança e segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
Ora, é o próprio legislador que no art. 22 do RGIT nos indica que, para os crimes previstos neste diploma, tais fins de defesa do ordenamento jurídico não são postos em causa pela dispensa de pena, se o arguido pagar as quantias em dívida e a ilicitude e a culpa não forem muito graves. Verificados os pressupostos das als. a) e b), não há razões relacionadas com a afirmação da validade e vigência da norma violada que obstem à dispensa da pena. De outro modo, sob pena de quebra da harmonia do sistema, não se compreenderia o alcance das referidas als. a) e b) do nº 1 do art. 22 do RGIT.
Restaria a chamada prevenção geral negativa ou de intimidação, mas esta não constitui, por si só, uma finalidade legítima da pena, embora possa aparecer como um seu efeito lateral – Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 242.
Quanto às exigências de prevenção especial ou de socialização, elas não são significativas, dado o pagamento efectuado, a inexistência de antecedentes criminais e a ausência de notícia de o arguido ter tido outros comportamentos similares.
Só mais uma nota: mesmo quando verificados os pressupostos das três alíneas do nº 1 do art. 22 do RGIT, a dispensa de pena não é automática. O corpo da norma apenas diz que «a pena pode ser dispensada...». Mas, quando se verificarem tais pressupostos, só em casos excepcionais se justifica que o aplicador da lei não lance mão da faculdade de dispensa de pena.
Tem, pois, que ser concedido provimento ao recurso, nesta parte.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação do Porto, concedendo provimento parcial ao recurso dispensam de pena o arguido FERNANDO....., relativamente ao crime de fraude fiscal que cometeu p. e p. pelo art. 103º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 15/01, de 5 de Junho.
Por ter decaído parcialmente, o arguido pagará as custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.
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Porto, 01 de Outubro de 2003
Fernando Manuel Monterroso Gomes
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins