Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0722393
Nº Convencional: JTRP00040902
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
OPOSIÇÃO
GARANTIA BANCÁRIA À PRIMEIRA SOLICITAÇÃO
Nº do Documento: RP200712190722393
Data do Acordão: 12/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 260 - FLS 120.
Área Temática: .
Sumário: I - A oposição à providência decretada não tem de se confinar à alegação de factos ou meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que sirvam para afastar os fundamentos da providência ou a determinar a sua redução; ela pode integrar ainda um ataque aos próprios fundamentos da decisão inicial, como se tivesse optado por interpor recurso dessa decisão.
II - Na garantia bancária à primeira solicitação, o beneficiário está dispensado da prova do incumprimento contratual, bastando, para que o garante lhe pague, comunicar a ocorrência do respectivo evento, sem que este possa discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente o incumprimento do devedor.
III - Reconhece-se, porém, ao dador da ordem (devedor) a possibilidade de lançar mão de um procedimento cautelar que evite o pagamento da garantia pelo garante, independentemente de este também poder opor ao beneficiário a exceptio doli, quando disponha de prova líquida do abuso ou fraude de excussão por parte do mesmo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

B………., divorciado, empresário, com domicílio profissional na Rua ………., n.º ., Porto, requereu providência cautelar não especificada contra “C………., S.A.”, com sede na ………., n.º .., .º, Lisboa, e contra o “D………., S.A.”, com sede na ………., n.º …, Lisboa, com os seguintes fundamentos:
- Em 08.02.2006, o Requerente celebrou com a 1ª Requerida um contrato-promessa de compra e venda de acções das sociedades “E………., Lda.” e “F………., S.A.”, contrato esse que foi objecto de um aditamento em Maio de 2006;
- O preço acordado foi de € 9.800.000,00;
- O contrato definitivo teria de ser celebrado até 30 de Junho de 2006, ficando a promitente compradora incumbida de fixar a hora, o local e a data para celebração desse contrato, encarregando-se ainda de fazer a respectiva comunicação ao promitente vendedor;
- Nos termos estabelecidos na cláusula 4ª do contrato-promessa, a não assinatura do contrato prometido na data designada implicaria o seu automático incumprimento;
- De acordo com o plano de pagamentos estipulado, a Requerida emitiu e entregou ao requerente o cheque n.º ………., da G………., no valor de € 1.000.000,00, contra a entrega pelo Requerido da garantia n.º …..;
- Em 15 de Maio de 2006, a Requerida emitiu e entregou ao Requerente o cheque n.º ………., do H………., no valor de € 1.000.000,00, contra a entrega pelo Requerido da garantia bancária n.º ……;
- Porém, no dia 25 de Maio de 2006, a Requerida enviou ao Requerente um fax e uma carta registada (esta ainda não recebida), na qual comunica a vontade de rescindir o contrato-promessa, alegando não lhe ter sido entregue vária documentação solicitada ao Requerente;
- Essa documentação dizia respeito à sociedade “E………., Lda.”, sendo que o Requerente não era titular de quaisquer acções dessa sociedade, como bem sabia a promitente compradora, estando por isso impossibilitado de lha fornecer;
- O Requerente desde sempre informou a Requerida que era sua convicção que a situação financeira, contabilística e fiscal da “E………., Lda.” estaria em ordem, e que se obrigaria a resolver qualquer situação até à celebração do contrato definitivo;
- A Requerida, não obstante, prepara-se para executar de imediato as garantias bancárias prestadas, fazendo com que o Requerente tenha de reembolsar o banco dos montantes que lhe foram entregues, ou seja, € 2.000.000,00, no total, violando desse modo o disposto no art. 442º, n.º 2, do CC.
O Requerente conclui, pedindo que se profira decisão de:
A. Proibição aos representantes da Requerida de solicitação ou recebimento do valor das mencionadas garantias bancárias;
B. Proibição ao Requerido de proceder ao pagamento à Requerida daqueles valores.

Produzida a prova indicada pelo Requerente, a Mmª Juíza da .ª Vara Cível do Porto decretou a providência nos termos requeridos.

A Requerida “C………., S.A.”, notificada da decisão, deduziu oposição, alegando, em resumo, o seguinte:
- Não se encontram preenchidos os requisitos de que dependia o decretamento da providência, visto não existir qualquer referência à lesão grave e irreparável do direito do Requerente;
- Faltam os pressupostos de que dependeria a “suspensão” de uma garantia bancária, nomeadamente a demonstração do fumus bonus iuris quanto ao direito de não ver as garantias executadas;
- O Requerente, pelo seu incumprimento contratual, justificou a execução das garantias.

Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela Requerida, tendo sido, a final, julgada improcedente a oposição.

Não conformada com essa decisão, dela interpôs recurso a Requerida “C………., S.A.”.
O recurso foi admitido como de agravo, com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Na motivação do agravo, a recorrente pede que se revogue a decisão recorrida e que se ordene o imediato levantamento da providência cautelar decretada pelo Tribunal a quo, concluindo do seguinte modo:
A) O objecto da presente providência é a provável existência (ou não) do direito do recorrido exigir que as garantias bancárias não sejam executadas e de impedir que elas sejam pagas pelo banco garante aquando da solicitação do beneficiário/recorrente, e não, como defende o Tribunal a quo, o direito de exigir o cumprimento do contrato-promessa ou indemnização pela sua resolução infundada. Uma coisa será o eventual direito do recorrido a que o contrato não fosse incumprido, violado ou resolvido, e outra, completamente distinta, o “direito” do recorrido a que um outro contrato – o subjacente à garantia bancária – não fosse executado.
B) A garantia autónoma “on first demand” é, por um lado, automática, exequível mediante simples, imotivada, ou potestativa comunicação pelo beneficiário do incumprimento principal do mandante, e, por outro, independente do contrato base que lhe serve de causa, visto não poder ser afectada pelas vicissitudes deste último. Salvo o devido respeito, a decisão recorrida não fez tal distinção e, ao concluir pela existência de um fumus bonus iuris no que dizia respeito ao direito de não ver o contrato resolvido, extrapolou um fumus bonus iurus quanto ao direito de não ver as garantias executadas.
C) A doutrina e a jurisprudência têm defendido que a execução da garantia só poderá ser inibida quando se demonstre que o comportamento do credor se revela manifestamente abusivo ou fraudulento. Não alegou o requerente, e tão pouco foi considerado pelo Tribunal a quo como provado, qualquer referência a abuso manifesto de direito, fraude ou conluio por parte do beneficiário da garantia.
D) Mal – salvo o devido respeito – esteve ainda o Tribunal a quo na questão do prejuízo: o Tribunal conclui pela existência de um fundado receio de lesão grave e dificilmente reversível, não individualizando nem discriminando os factos concretos que lhe permitiram subtrair tal conclusão.
E) É o decretamento, e não levantamento, da providência cautelar que gera um prejuízo grave, desta feita para a recorrente, que deixa de reaver a quantia paga a título de sinal, sem nada receber em troca. Ou seja, ab initio, é a requerida que está desembolsada de € 2.000.000,00 e o requerente enriquecido de € 2.000.000,00. Nada é referido sobre esta questão, em especial não foram alegados ou provados quaisquer factos que demonstrassem de forma concludente a dificuldade de reparar o prejuízo do recorrido, caso ele viesse a se efectivar.
F) Embora se trate de questão que se julga apenas deverá ser discutida em sede de acção principal, dos factos considerados provados após a oposição, é forçoso concluir que o recorrido incumpriu injustificadamente o contrato-promessa sub judice, pelo que sempre seria legítima a reacção da recorrente.
G) O Tribunal deu por provado que o recorrido se comprometeu a prestar à recorrente todas as informações que lhe fossem solicitadas e que criou na recorrente a convicção legítima de que os documentos solicitados iriam ser disponibilizados. Deu igualmente por assente que as informações em causa eram relevantes e essenciais para a concretização do contrato prometido, sendo portanto manifestação dos deveres de boa fé que devem presidir à conduta das partes na execução dos contratos.
H) Salvo melhor opinião, ao decidir nos termos em que o fez, o Tribunal violou o disposto nos arts. 405º, 762º e 801º do CC e nos arts. 381º, n.º 1, e 387º, nºs 1 e 2 do CPC.

O recorrido contra-alegou, batendo-se pela confirmação da decisão da 1ª instância.

A Mmª Juíza elaborou despacho tabelar de sustentação.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – a única questão em debate é, em última análise, a de saber se estão, ou não, reunidos todos os requisitos legais para decretamento da providência requerida.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O Tribunal recorrido considerou indiciariamente provados os factos que seguem:

DO REQUERIMENTO INICIAL

I. Em 8 de Fevereiro de 2006, o Requerente celebrou com a Requerida um contrato-promessa de compra e venda de acções.
II. Em Maio de 2006, os mesmos contratantes celebraram um aditamento a esse contrato-promessa.
Constituiu o objecto do contrato e seu aditamento:
A) 50.000 acções, representativas da totalidade do capital social da sociedade “E………., Ltd”, pessoa colectiva n.º ……….., com sede em ………., ………., ………., Ilhas Virgens Britânicas, registada sob o n.º ……..
B) 2.000.000 de acções, representativas da totalidade do capital da sociedade “F………., S.A.”, pessoa colectiva n.º ……….., com sede no ………., freguesia de ………., concelho de Mesão Frio, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Mesão Frio sob o n.º 59.
O preço acordado foi de € 9.800.000,00, correspondente a:
€ 5.800.000,00, ao preço de compra e venda das acções da “E………., Ltd”;
€ 4.000.000,00, ao preço da compra e venda das acções da “F………., S.A.”.
Foi acordado que o pagamento do preço combinado seria feito da seguinte forma:
a) € 1.000.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento do preço, com a assinatura do contrato-promessa, e contra a entrega de garantia bancária “on first demand” do mesmo valor, a restituir na data da celebração do contrato definitivo.
b) € 1.000.000,00, a título de reforço de sinal e princípio de pagamento, na data da assinatura desse aditamento, conforme flui da sua cláusula 1ª, que alterou o primitivo texto, e contra a entrega de garantia bancária “on first demand” de igual montante, e a restituir, igualmente, na data da celebração do contrato definitivo.
c) € 7.800.000,00, no acto da assinatura do contrato prometido efectuar, ou posteriormente, nos termos da cláusula 8ª.
III. Foram ainda acordados pagamentos adicionais, nos termos da cláusula 3ª, e desde que verificados os requisitos nela previstos.
IV. Nos termos da cláusula 8ª, combinaram as partes contratantes que o contrato definitivo teria de ser celebrado até 15 de Junho de 2006, data esta posteriormente prorrogada para 30 de Junho de 2006 (aditamento ao primitivo acordo) sob iniciativa da promitente compradora, que deveria fixar hora, local e data, comunicadas ao promitente vendedor por escrito até ao dia 21 de Junho de 2006, conforme alteração ao texto definitivo resultante do aditamento acordado por escrito entre as partes, sob pena de, tal não sucedendo, ficar o promitente vendedor com o direito de marcação da formalização do negócio, a comunicar por escrito e via fax, com uma antecedência mínima de 3 dias, à promitente compradora.
V. Mais acordaram, Requerente e 1ª Requerida, no n.º 4 da cláusula 8ª, que a não assinatura na data designada, nos termos dos números anteriores, dos contratos de compra e venda de acções implica o automático incumprimento deste contrato promessa, com as consequências legais, e sem necessidade de qualquer interpelação.
VI. No dia 8 de Fevereiro de 2006, a Requerida emitiu e entregou ao Requerente o cheque n.º ………., da G………., agência de ………., Algarve, no valor de € 1.000.000,00.
VII. Este saque foi feito contra a entrega da garantia ….., emitida pelo Requerido em obediência ao clausulado descrito no art. 5º, al. a).
VIII. Em 15 de Maio de 2006, a Requerida sacou e entregou ao Requerente o cheque n.º ………., sobre a agência I………., de Lisboa, do H………., no valor de € 1.000.000,00, para cumprimento do acordado no art. 5º do acordo escrito.
IX. O requerente entregou à Requerida a garantia bancária n.º ……, emitida pelo D………., S.A. em 12 de Abril de 2006, em favor daquela, e igualmente no montante de € 1.000.000,00.
X. Ficou a constar do aditamento ao mesmo acordo escrito que “é condição prévia do contrato definitivo da compra e venda de acções, a exibição de documento que será enviado/fornecido pelo L………., confirmando a inexistência de incumprimento contratual” – cláusula 1ª, 2 b).
XI. O L………. considerou sanada a irregularidade, comunicando a aceitação de tal sanação através do ofício …/2006/DAIE, de 24.05.2006.
XII. No dia 18 de Maio de 2006, a Requerida enviou ao Requerente um fax e uma carta registada, pedindo-lhe que num prazo máximo de 8 dias, lhe fornecesse:
a) Balanço da “E………., Ltd.”.
b) Documentação que comprove que as obrigações fiscais em Portugal foram cumpridas.
c) Cópia da escritura de compra e venda dos imóveis em nome da “E………., Ltd”.
No dia 23 de Maio de 2006, a Requerida remeteu novo fax e carta registada ao Requerente com o seguinte teor:
“ … os documentos que solicitamos e que por si ainda não foram enviados, pretendem naturalmente provar junto dos nossos financiadores e auditores que a E………., LTD cumpriu todas as obrigações fiscais e parafiscais em Portugal, que constitui, aliás, uma das garantias por si prestadas no contrato oportunamente celebrado entre as partes.
Nos termos desse mesmo contrato, caso fosse violada uma de tais garantias, teria a promitente compradora o direito de resolver o contrato com obrigação por parte de V. Ex.ª de nos devolver todas as quantias por nós já entregues em execução do mesmo, que neste momento se cifram em € 2.000.000,00.
Nestes termos, e até prova em contrário, somos forçados a concluir que a garantia que oportunamente prestou sobre o cumprimento das obrigações fiscais e parafiscais da E………., Ltd. Não foi cumprida por não corresponder à realidade.
Assim sendo, vimos pela presente notificar V. Ex.ª que nos reservamos, a partir da presente comunicação, o direito de rescindir o contrato promessa de compra e venda de acções, oportunamente celebrado entre as partes, direito que se deve considerar automaticamente por nós exercido se até às 18,00 horas de amanhã, dia 24.05.2006, não recebermos, na morada contratualmente prevista para as notificações, os documentos que ainda se encontram em falta e vos solicitamos nas duas comunicações anteriores”.
XIII. Consta do acordo escrito que o promitente vendedor não era titular do capital social da “E………., Ltd.”, antes se comprometendo a reunir as condições necessárias para proceder à alienação do dito capital social, tendo ficado condicionada a celebração do contrato definitivo à “celebração de um contrato de compra e venda de acções” entre o Requerente e os actuais titulares das acções … e ainda que a não verificação desta condição obrigaria o promitente vendedor a restituir em singelo o sinal recebido, sem que houvesse lugar a qualquer indemnização, seja a que título for.
XIV. O Requerente informou a Requerida que era sua convicção que a situação financeira, contabilística e fiscal da “E………., Ltd.”, seria regular.
XV. No dia 25 de Maio de 2006, a Requerida enviou um fax ao Requerente declarando, designadamente que “ … não nos parece crível que V.ª Ex.ª sendo, conforme nos refere, já promitente comprador das acções da E………., Ltd., e efectivando-se a compra no final do corrente mês, não esteja neste momento naturalmente informado e ciente da situação financeira contabilística e fiscal da mesma sociedade tendo tido acesso à respectiva documentação.
Desta forma, vimos pelo presente comunicar a V.ª Ex.ª a nossa confirmação de rescisão do contrato, por não nos terem sido fornecidos os elementos oportuna e repetidamente solicitados.
Iremos, assim, executar de imediato as garantias bancárias prestadas, sem prejuízo de mantermos o nosso interesse na aquisição das acções desde que acauteladas as nossas legítimas preocupações e nas condições que vierem a ser esclarecidas e acordadas entre as partes”

DA OPOSIÇÃO

1. O objectivo da Requerida era a aquisição do estabelecimento hoteleiro “F………., S.A.”, ou seja, a aquisição de um imóvel (ou conjunto de imóveis) onde funcionava tal estabelecimento (com o seu equipamento, aviamento, etc.).
2. Foi com este propósito que se entabularam negociações entre as partes, tendo a dado momento sido explicado que o processo teria forçosamente de passar pela aquisição de duas sociedades, uma delas uma sociedade off-shore, com sede nas Ilhas Virgens Britânicas, que precisamente detinha a propriedade dos imóveis.
3. Face às declarações do Requerente no sentido de a situação da dita off-shore ser regular, ao envolvimento do mesmo com a referida sociedade, e à disponibilidade para prestar inúmeras garantias sobre a situação da mesma, a Requerida acabou por ultrapassar as reservas que tinha a tal negócio.
4. Foi assim num clima de confiança recíproca e colaboração que o contrato veio a ser assinado.
5. A Requerida necessitava de montar toda uma operação de financiamento bancário, questão que o Requerente não ignorava.
6. Relativamente a valores, o contrato envolvia a transmissão de bens a que as partes atribuíram o valor de € 9.800.000,00, bem como pagamento de um sinal de € 1.000.000,00, seguido de um reforço de igual valor.
7. Como previsto no contrato, foi feita uma auditoria à “F………., S.A.”; concluída esta, em 31.03.2006, a Requerida escreve ao Requerente remetendo as conclusões dessa análise, chamando a atenção para um conjunto de irregularidades detectadas e para um conjunto de elementos que ainda teriam de ser entregues para análise.
8. Na sequência desta carta houve diversos contactos entre as partes que levariam à assinatura em 15.05.2006 do Aditamento.
9. Durante este mais de mês e meio sempre o Requerente foi prestando ou comprometeu-se a prestar as informações que lhe eram solicitadas.
10. Do Aditamento passou a constar:
- A exigência de uma declaração do L………. confirmando a inexistência de incumprimento contratual (Cláusula 1ª, n.º 2, al. b) do Aditamento);
- A inexistência de contingência decorrente dos subsídios ao investimento no âmbito do “Programa Agro”, a avaliar face ao conteúdo do contrato celebrado (Cláusula 1ª, n.º 2, al. b) do Aditamento – Doc. 2 do RI).
11. Para além do que expressamente consta do Aditamento, antes da assinatura do Aditamento, em 10.05.2006, a Requerida solicitou por escrito aos representantes do Requerente a entrega no prazo de 8 dias do Balanço da “E………., Ltd”, de documentação comprovativa do cumprimento de obrigações fiscais em Portugal e de cópia da escritura através da qual a “E………., Lda”, adquiriu os imóveis.
12. Na altura foi também explicado que a razão pela qual estes elementos eram solicitados se prendia com exigências dos financiadores do projecto, bem como dos auditores da Requerida. De facto, aproximando-se a data de “fecho” do negócio, era necessário assegurar o financiamento da operação, para o que o banco exigia informação sobre os activos a adquirir.
13. Por seu turno, e do ponto de vista contabilístico, os auditores da Requerida também necessitavam de delinear a operação, por forma a conseguir uma boa eficiência fiscal da mesma.
14. Para além do referido pedido, houve contactos telefónicos vários, nomeadamente com o Dr. J………., sendo que o pedido dos elementos em causa foi renovado em 12.05.2006 por e-mail dirigido àquele.
15. Pedidos os elementos, nunca o Requerente ou os seus representantes puseram qualquer entrave à entrega dos mesmos, nem ao prazo estabelecido (8 dias a contar de dia 10), criando na Requerida a legítima expectativa de que tais elementos iriam de facto ser fornecidos.
16. No dia 18.05.2006, enviou a Requerida ao Requerente fax, expressamente referindo os contactos antes mantidos e referindo ter-se esgotado o prazo de 8 dias antes fixado, razão pela qual insistia no pedido antes feito.
17. Nada disse o Requerente em resposta a este pedido e, nomeadamente, nada recusou nem nada entregou, com excepção da escritura solicitada.
18. Para além de, sem a demais informação em causa, a Requerida não poder ver aprovada a operação de financiamento, começou esta a ter receio de que houvesse sido, na sua boa-fé, ardilosamente levada, com promessas de colaboração, a fazer reforço do sinal.
19. Na sequência da carta enviada àquele em 23.05.2006, a Requerida recebeu a resposta do Requerente de 24 de Maio, junta a fls. 74 e 75 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
20. O Requerente não remeteu à Requerida a carta do L………. .
21. Era o Requerente que, publica e pacificamente, geria o estabelecimento hoteleiro “K……….”.
22. O estabelecimento hoteleiro “K……….” funcionava em imóveis que eram propriedade da “E………, Lda.”, cedidos em exploração à “F………., S.A.”.
23. Perante a Requerida e os seus representantes o Requerente evidenciava que problema algum iria haver com a prévia aquisição do capital daquelas sociedades e que a aquisição pouco mais seria do que uma formalidade.
24. De acordo com o contrato, a aquisição da “E………., Lda”, tinha de ocorrer até 8 de Junho de 2006 – cfr. Cláusula 4ª, n.º 2 – sendo que a venda à Requerida (antes da celebração do Aditamento) era suposto ocorrer até 15 de Junho – cfr. Cláusula 8ª, n.º 3 do Contrato.

O DIREITO

O Requerente B………. propôs este procedimento cautelar não especificado com o fito de evitar a execução das garantias bancárias prestadas pelo Requerido D………., S.A. a favor da Requerida “C………., S.A., S.A.”, na sequência do contrato-promessa de compra e venda de acções celebrado entre esta última e o Requerente.
A providência foi decretada sem audição dos Requeridos e, deduzida oposição pela Requerida “C………., S.A.”, veio a mesma a ser julgada improcedente, mantendo-se a decisão inicial.
Daí a interposição do presente recurso de agravo.

O art. 381º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe “Âmbito das providências cautelares não especificadas”, reza do seguinte modo:
“Sempre que alguém mostrar fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.
O procedimento cautelar é dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado – art. 383º, n.º 1, do CPC.
A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão – art. 387º, n.º 1, do CPC.
Os dois requisitos fundamentais da providência cautelar são, portanto, a probabilidade séria da existência do direito ou interesse juridicamente tutelado (fumus boni juris), e o receio, suficientemente justificado, de lesão grave e dificilmente reparável desse direito ou interesse (periculum in mora).
Quanto ao primeiro, basta a aparência da existência do direito, requerendo-se apenas prova sumária.
O segundo requisito, tem, pelo contrário, de ser objecto de prova que leve à formação de um juízo de certeza sobre a natureza excessiva do periculum in mora. Ou seja, “a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer acção; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito” – v. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, págs. 6 e 35.
A gravidade da previsível lesão deve aferir-se à luz da sua repercussão na esfera jurídica do requerente, tendo em conta que, no concernente aos prejuízos materiais, eles são, em regra, passíveis de ressarcimento através de restituição natural ou de indemnização substitutiva.

Na oposição, a Requerida agravante, além de alegar vários factos relativos ao suposto incumprimento contratual do Requerente, justificativos – no seu entender – da pronta execução das garantias bancária e suficientes para determinar a revogação da decisão que decretou a providência, sustentou ainda a inexistência dos dois requisitos acabados de aludir.
Não obstante não ter recorrido da decisão inicial que decretou a providência, era-lhe lícito fazê-lo nesse articulado de oposição.
Na verdade, a oposição não tem que se confinar à alegação de factos ou meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que sirvam para afastar os fundamentos da providência ou a determinar a sua redução – art. 388º, n.º 1, al. b); ela pode integrar ainda um ataque aos próprios fundamentos da decisão inicial, como se tivesse optado por interpor recurso dessa decisão – art. 388º, n.º 1, al. a).
Foi neste sentido, aliás, que se decidiu no Ac. do STJ de 06.07.2000, BMJ 499, pág. 205:
“A proibição do uso simultâneo do recurso e da aludida oposição, diversamente do que sucedia no regime anterior, não implica, em caso de opção pela segunda, que seja proibido atacar, no recurso da respectiva decisão, os fundamentos da decisão originária.
A possibilidade desta discussão é ao fim e ao cabo decorrência natural da própria proibição do uso simultâneo desses dois meios impugnatórios, já que a oposição não visa diminuir, mas ampliar, o âmbito da defesa do requerido, sem pôr em causa os direitos do requerente”.
É também este o entendimento de Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil” pág. 284”, assim explicitado:
“O sistema instituído visa evitar que a parte tenha o ónus de lançar mão simultaneamente do recurso de agravo e da oposição subsequente, sempre que entenda que concorrem os pressupostos das alíneas a) e b) do n.º1 do art. 388º, com o inconveniente manifesto das questões, muitas vezes conexas, estarem simultaneamente a ser apreciadas na 1ª instância de na Relação. Daí que, verificando-se os fundamentos da oposição, traduzida na invocação de matéria nova, deva a parte começar por deduzi-la, aguardando a prolação da decisão que a aprecie, que se considera complemento e parte integrante da sentença inicialmente proferida e abrindo-se só neste momento, a via de recurso, relativamente a todas as questões suscitadas, quer pela decisão originária, quer pela que a completa ou altera”.
Sufragando essa mesma opinião, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.10.2003, processo n.º 2330/03, www.dgsi.pt., exprimiu-se do seguinte modo:
“A oposição é apenas uma fase do próprio procedimento cautelar, inscrita na mesma instância e a respectiva decisão faz parte integrante da primeira, até porque colimada ao pedido e fundamentos inicialmente formulados pelo requerente, agora contraditados por novos factos, ficando ambas as decisões aglutinadas numa só, ou seja, uma decisão unitária. Ora, decidindo o tribunal manter a providência cautelar anteriormente decretada, e, por consequência, também os seus fundamentos jurídicos, constituindo complemento e parte integrante da inicialmente proferida, o que significa uma “decisão unitária “, se o requerido já não os pudesse impugnar ficaria claramente cerceado o exercício do contraditório” – v., também, no sentido exposto, o Ac. da Relação de Évora de 14.10.1999, BMJ n.º 490, pág. 334, e o Ac. da Relação de Lisboa de 20.10.2005, no processo n.º 9170/2005-6, em www.dgsi.pt.

Arrumada esta questão, vejamos se, no quadro do actual procedimento cautelar, esses dois requisitos básicos estão preenchidos.

A cláusula 2ª do contrato-promessa de venda de acções incidiu sobre o preço do negócio, estipulado em 9.800.000,00, e respectivo pagamento.
No n.º 2 dessa cláusula ficou acordado que o dito preço seria pago da seguinte forma:
a) O montante de € 1.000.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento do preço, com a assinatura do presente contrato-promessa, e contra a entrega de garantia bancária “on first demand” do mesmo valor, a qual será restituída na data da celebração do contrato definitivo.
b) O montante de € 1.000.000,00, a título de reforço de sinal e princípio de pagamento, na data da assinatura do aditamento ao contrato-promessa, e contra a entrega de garantia bancária “on first demand” do mesmo valor, a qual será restituída na data da celebração do contrato definitivo …
c) O montante de € 7.800.000,00, será entregue no acto da assinatura do contrato definitivo ora prometido ou posteriormente nos termos explicitados na cláusula 8ª.
As garantias bancárias referentes ao pagamento pela Requerida do sinal e respectivo reforço foram negociadas entre o Requerente e os Bancos D………., S.A. e H………., tendo as mesmas sido emitidas e entregues à promitente compradora, ora Requerida, conforme resulta dos pontos VII e IX supra.
A Requerida, alegando incumprimento do Requerente, pretende executar as garantias bancárias, conforme comunicação dirigida ao Requerente, tendo-se este logo apressado a instaurar a presente providência.
Não vamos discutir, aqui e agora (pelas razões que exporemos infra), o eventual incumprimento do contrato-promessa de compra e venda de acções outorgado entre o Requerente, como promitente vendedor, e a Requerida “C………., S.A.”, como promitente compradora.
Do que apenas se cuidará de saber é se assiste ao Requerente o direito de não ver executadas as preditas garantias bancárias pela sociedade Requerida e se existe fundado receio de que ocorra lesão grave e dificilmente reparável daquele direito.

Para isso, teremos de nos deter um pouco sobre a figura da garantia bancária.
A garantia bancária corporiza o compromisso, assumido por um banco, de pagar uma determinada quantia ao beneficiário, num quadro exclusivamente configurado pelo próprio texto da garantia e sem possibilidade de recurso a quaisquer meios de defesa derivados do contrato base, com excepção do que possa ter a ver com uma situação abusiva ou fraudulenta.
Tal espécie ou tipo de contrato, inominado, cuja celebração e admissibilidade derivam do princípio da liberdade contratual plasmado no art. 405º do CC, é definido por José Maria Pires, “Direito Bancário”, 2º volume, pág. 284, como “o contrato pelo qual um banco, por mandato do seu cliente, se obriga a pagar certa importância à outra parte (beneficiário), ficando esta com o direito potestativo de exigir a execução dessa garantia, sem que lhe possam ser opostos quaisquer meios de defesa baseados nas relações entre o banco e o ordenador ou entre este e o beneficiário”.
Como explica Azevedo Ferreira, “A Relação Negocial Bancária”, pág. 111, a razão de ser da garantia bancária entronca “ … na necessidade de um dado sujeito jurídico, quando envolvido com um outro sujeito que porventura não conheça, numa relação contratual de execução demorada e que movimente montantes avultados, de assegurar uma compensação rápida e eficiente dos prejuízos decorrentes de um eventual incumprimento ou de um cumprimento defeituoso daquele contrato.
O reduzido conhecimento recíproco existente entre as partes e a sua deficiente confiança mútua são, normalmente, supridos pela intervenção de uma entidade bancária com reputação e solidez devidamente atestadas, que garantirá a adequada execução contratual e pagará sem objecções, se e quando tal lhe for exigido”.
Trata-se de uma figura triangular, que supõe três ordens de relações:
- entre o garantido, dador da ordem, e o beneficiário dessa ordem;
- entre o garantido e o garante (banco);
- entre o garante e o beneficiário.
Supõe, também, três negócios jurídicos:
- o contrato-base, em que são partes o dador da ordem e o beneficiário (no caso, contrato-promessa de compra e venda de acções);
- o contrato pelo qual o banco se obriga para com o dador da ordem a prestar-lhe, mediante certa retribuição, o serviço consistente em fornecer a garantia pretendida;
- o contrato de garantia.
Assim, “no processo genético de emissão de uma garantia bancária autónoma existe, em primeiro lugar, um contrato-base, entre o mandante da garantia e o beneficiário, a que se segue um contrato, qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário, e, por último, o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se venceu e não foi paga e solicite o pagamento, sem possibilidade de invocar a prévia excussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída” - v. Ac. STJ de 14.10.2004, acima citado.
A garantia só pode ser invocada em conformidade com os seus próprios termos; o banco só tem de pagar o que consta do título de garantia e em harmonia com o teor respectivo – v. Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral”, págs. 514/515. Ela visa, portanto, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da própria garantia, uma determinada quantia em dinheiro.
A garantia bancária é causal e autónoma.
A causalidade da garantia bancária assenta na mesma característica de instrumentalidade que é típica dos negócios de garantia, tal como a fiança. Ambas visam uma função de garantia, e essa função, que é a sua causa, acha-se objectivada nos respectivos contratos.
A diferença é que a garantia bancária é autónoma, porque não depende da validade e eficácia do contrato-base a que se reporta, do qual é completamente independente, ao passo que a fiança é acessória, porque subordinada a essa validade e eficácia – v. Galvão Telles, ob. cit., pág. 513. De facto, o garante, perante o credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma dívida alheia (do garantido); não se trata de garantir o cumprimento da obrigação do devedor, mas antes de assegurar o interesse do credor beneficiário de tal garantia – v. Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, “Garantias de Cumprimento”, 1994, pág. 50. Por isso, a sua função não é a de assegurar o cumprimento dum determinado contrato.
A autonomia da garantia bancária pode, todavia, compreender graus distintos.
Existe, em primeiro lugar, a garantia bancária simples, que tem por objecto a cobertura de certo risco (incumprimento contratual). Neste caso, o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor ou a verificação do circunstancialismo que constitui pressuposto do nascimento do seu crédito face ao garante.
Há, em segundo lugar, a garantia bancária automática ou à primeira solicitação (on first demand), nos termos da qual o beneficiário está dispensado da prova do incumprimento contratual, bastando, para que o garante lhe pague, comunicar a ocorrência do respectivo evento, sem que este possa discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, o incumprimento do devedor. Ou seja:“O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante, também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor” – v. Galvão Telles, “Garantia Bancária Autónoma” na revista“O Direito”, Ano 120º, III/IV, pág. 283.
Não obstante a natureza autónoma da garantia “on first demand”, e a sua actuação ou execução automática, a possibilidade da sua exigência pelo beneficiário não pode ter-se como ilimitada: há, com efeito, no direito português, que estabelecer alguns limites à exigência da garantia, sempre que o imponham as regras da boa fé (art. 762º, nº 2, do CC) ou o abuso do direito (art. 334º do mesmo diploma), como por exemplo nos casos extremos de manobras tendentes a enganar o garante ou de procedimento abusivo do beneficiário, designadamente exigindo a garantia em caso de cumprimento pontual da obrigação do devedor - cfr. Acs. STJ de 23.03.1995 (Miranda Gusmão), CJSTJ Ano III, Tomo I, pág. 137, e de 14.10.2004 (Araújo Barros), no processo n.º 04B2883, em www.dgsi.pt.
Como se referiu neste último aresto, citando-se Francisco Cortez, “A Garantia Bancária Autónoma”, ROA, Ano 52º, II, Julho, 1992, págs. 513 a 609, “… apesar da natureza automática da garantia on first demand, a sua automaticidade não é absoluta, assistindo-se, actualmente a um movimento da sua relatividade, através da admissibilidade do dever (sob pena de perder o direito de regresso contra o mandante) de oposição pelo garante ao beneficiário da excepção de fraude manifesta ou abuso evidente deste na execução da garantia, desde que o garante tenha em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso, ou sejam estes um facto notório, assim como da admissibilidade da instauração pelo mandante de providências cautelares, urgentes e provisórias, em sede judicial, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente prova líquida e inequívoca de fraude manifesta ou do abuso evidente do beneficiário”.
As modalidades da garantia bancária autónoma mais utilizadas na prática comercial, tendo por base a função ou fim da garantiam podem reconduzir-se a três tipos fundamentais: garantia de manutenção da oferta contratual; garantia de boa execução; e garantia de reembolso de pagamentos antecipados – v. Azevedo Ferreira, ob. cit., pág 111, anotação 159.
As garantias bancárias a que se referem os autos, são desta última modalidade, na medida em que se destinam a garantir o contraente que pagou adiantadamente parte do preço do contrato de que essa importância lhe será restituída caso a outra parte não cumpra o contrato – v. Almeida Costa e Pinto Monteiro, “Garantias Bancárias – O Contrato de Garantia à Primeira Solicitação”, CJ Ano XI, Tomo 5, págs. 16 e seguintes.

Quer a doutrina, quer a jurisprudência, reconhecem ao dador da ordem (devedor) a possibilidade de lançar mão de um procedimento cautelar que evite o pagamento da garantia pelo garante, independentemente de este também poder opor ao beneficiário a exceptio doli, quando disponha de prova líquida do abuso ou fraude de excussão por parte do mesmo. A propósito do que deve entender-se por fraude, há quem fale de um comportamento doloso, mas há também quem defenda ser suficiente o uso objectivamente anormal do direito do beneficiário ou a sua manifesta ausência.
Como elucida Galvão Telles, “Estudos de Direito Comercial”, Livraria Almedina, pág. 345, “… a tutela cautelar inibitória só procederá no mesmo caso e dentro dos mesmos limites da oponibilidade da exceptio doli – prova líquida de excussão abusiva ou fraudulenta” – cfr., igualmente, Almeida Costa e Pinto Monteiro, ob. cit., pág. 21.
Exige-se, portanto, ao dador da ordem uma prova líquida, uma prova qualificada, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva do credor, que a doutrina maioritária requer documental – v. Ac. STJ de 28.09.2006, processo n.º 06A2412, www.dgsi.pt

É este o ponto em que retomaremos a análise concreta do caso.
Na hipótese dos autos, as duas garantias bancárias foram prestadas com a finalidade de caucionar a devolução das quantias entregues pela Requerida ao Requerente a título de sinal e princípio de pagamento – cfr. cláusula 2ª das duas garantias, a fls. 65 e 69.
Ambas as garantias são automáticas, isto é, à primeira solicitação do beneficiário (Requerida), tendo-se estipulado na cláusula 3ª das mesmas que:
“O Banco assume a presente garantia como obrigação própria, obrigando-se, assim, a pagar à Beneficiária, à primeira solicitação escrita desta, quaisquer quantias até ao limite de € 1.000.000,00 (Um milhão de euros), e sem necessidade de apresentação de qualquer prova do incumprimento do Ordenador das obrigações para com ela assumidas”.
O conteúdo desta cláusula converge com o que acima se disse sobre a autonomia das garantias bancárias: o beneficiário está dispensado da prova do incumprimento contratual da contraparte, bastando, para que o garante lhe pague, a comunicação escrita de que ocorreu incumprimento por parte daquela, gerador da devolução dos valores entregues a título de sinal.
Caberia, assim, ao Requerente, no âmbito da presente providência:
- Alegar e fazer prova, ainda que sumária, de que lhe assiste o direito de exigir que as duas garantias bancárias não sejam executadas, impedindo desse modo o seu pagamento pelos Bancos garantes aquando da solicitação pelo beneficiário;
- Alegar e provar o justificado receio de lesão grave e dificilmente reparável desse direito.
Quanto ao primeiro requisito, ele só podia fundar-se – como se disse – num comportamento fraudulento e claramente abusivo por parte do beneficiário das garantias, o que manifestamente se não inculca da factualidade alegada nos 61 artigos do requerimento inicial e muito menos, como se afigura insofismável, do acervo dos factos provados. Pelo contrário, os factos provados sob os itens 5., 7., 10. a 18. e 20. indiciam que a Requerida sempre actuou de acordo com o princípio da boa fé contratual.
Também no que tange ao segundo requisito, é patente a insuficiência, diríamos mesmo absoluta “falta”, da sua concretização. O Requerente limitou-se a referir esparsamente, nos arts. 58º e 59ºdo requerimento inicial, que a entrega do valor das garantias prestadas “ … causará transtornos e prejuízos ao requerente”.
Salvo o devido respeito, dizer isto ou nada dizer, é o mesmo.
A decisão da 1ª instância foi insensível a esta total falta de material fáctico, debruçando-se apenas – e indevidamente – sobre a falta de causa justificativa de resolução do contrato-base, causal das garantias. E concluiu que “ … só verificado condicionalismo contratual susceptível de provocar a restituição do sinal, que o mesmo é dizer resolução legítima por banda da requerida ou revogação do contrato é que poderá a mesma requerida legitimamente accionar a mesma garantia” – v. fls. 101.
Como vimos, esta discussão não tinha que fazer-se no âmbito do procedimento cautelar, dada a natureza autónoma dos contratos de garantia bancária on first demand e a sua total impermeabilidade às vicissitudes contratuais decorrentes do contrato-base.
Por outro lado, não obstante nada ter sido alegado sobre o dito requisito do “periculum in mora”, consignou-se, surpreendentemente, na mesma decisão que “é manifesto que a execução em tais circunstâncias das referidas garantias é por si susceptível de trazer prejuízo grave e dificilmente reparável ao requerente justificando-se por isso mesmo o acolhimento da providência” – v. fls. 102.

Por todas as apontadas razões, falhando os dois requisitos fundamentais para o decretamento da providência, a decisão recorrida não pode manter-se.
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, no provimento do agravo, revoga-se a decisão recorrida, indeferindo-se a providência cautelar requerida.
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Custas nas duas instâncias pelo agravado.
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PORTO, 19 de Dezembro de 2007
Henrique Luís de Brito Araújo
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo