Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0424757
Nº Convencional: JTRP00037420
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: INJUNÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RP200411230424757
Data do Acordão: 11/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - As normas do Dec.-Lei n. 32/2003, a partir de 19 de Março de 2003, passaram a aplicar-se às situações em que se verifica atraso de pagamento em transacções comerciais.
II - O contrato de compra e venda com deferimento de pagamento de preço é de execução instantânea dado que o comportamento exigível do devedor se esgota num só momento: o do pagamento do preço.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

“B.....", instaurou, no Tribunal Judicial de...., processo de injunção contra C..... para obter o pagamento da quantia de € 48.618,44.

O requerido apresentou oposição na qual, arguiu a nulidade da citação pessoal.

Notificada da oposição, a requerente respondeu, pronunciando-se no sentido da sua extemporaneidade.

A fls. 27 e ss., o Mmº Juiz, absolveu o requerido da instância por considerar existir erro na forma do processo.

A requerente não concordou com tal decisão e interpôs o competente recurso, que foi admitido como sendo de agravo, com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo - v. fls. 36.

Nas alegações de recurso, a agravante formula as seguintes conclusões:
1. O douto despacho-sentença pressupõe que, quando um contrato tenha uma data anterior à da entrada em vigor de um diploma legal, não é possível a sua aplicação àquele. Não existe, no entanto, qualquer suporte legal para este entendimento.
2. O DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, visa facilitar ao credor a obtenção de um título executivo, com o recurso ao procedimento de injunção, independentemente do valor da dívida.
3. A autora forneceu artigos desportivos ao réu e este não pagou, pelo que estamos perante um único contrato de compra e venda em que não existe execução continuada ou reiterada, não sendo de aplicar a norma constante do art. 9° do supra citado diploma legal, mas sim a prevista no art. 10°.
4. A autora apresentou o requerimento de injunção em 13 de Outubro de 2003, data em que já estava em vigor o DL 32/2003, não havendo qualquer impedimento legal para o fazer.
5. A aplicação do DL 32/2003 é idêntica a outros diplomas legais, designadamente na reforma processual de 1995, em que foi conferida força executiva a mais títulos, e a outras normas processuais que passaram a ser usadas, independentemente da data constante do título, na data da constituição ou reconhecimento da obrigação.
6. Quando a Lei Nova se refira a dada relação jurídica, importa distinguir se a nova regulamentação se prende com qualquer facto que haja produzido determinados efeitos ou se essa nova regulamentação se refere imediatamente ao direito sem qualquer conexão directa com o facto que lhe deu origem. No primeiro caso, a lei só visa os factos novos, ao passo que, no segundo caso, a lei nova abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor.
7. É esta, geometricamente, a situação dos autos.
8. O disposto no art. 7° do DL 32/2003 aplica-se às relações jurídicas já constituídas
aquando do seu surgimento, não havendo por isso, qualquer erro na forma do processo.
9. Estamos no âmbito do direito processual, pelo que a forma do processo se determina pela lei vigente à data em que a acção é proposta.
10. O que releva aqui é a data da entrada da petição ou requerimento em juízo, se se compagina ou não com a lei processual em vigor, sendo manifesto que, no caso dos autos, já vigorava e tinha plena aplicação o normativo em que a autora se apoiou para avançar com o procedimento de injunção.
11. A norma invocada (art. 9° do DL 32/2003, de 17 de Fevereiro) permite ajudar na interpretação das questões enunciadas, no sentido de que o legislador teve necessidade de, relativamente a um determinado tipo de contratos, excepcioná-los do regime geral, daí a sua contemplação e expressa menção nesse artigo.
12. Essa é a excepção que confirma a regra para todos os outros, entre os quais se inclui o destes autos, pelo que o procedimento seguido pela requerente. é estritamente obediente à lei aplicável.
13. A douta decisão sob recurso violou as seguintes normas legais:
- Código Civil, art.12°, n.º 2, parte final;
- DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, arts. 7°, 9° e 10°;
- CPC, art. 142°.

O agravado não respondeu.

O Mmº Juiz a quo sustentou a decisão recorrida (fls. 48).
Foram colhidos os vistos legais.
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Balizando-se o objecto do recurso pelas conclusões do recorrente - arts. 684°, nº 3 e 690° do CPC - a única questão a decidir é, no fundo, a de saber se ao procedimento injuntivo instaurado pela agravante se aplicam as regras do DL 32/2003.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS
Além dos factos constantes do antecedente relatório, convém ainda atender a que o requerimento injuntivo deu entrada em juízo no dia 13.10.2003.

O DIREITO
O processo de injunção foi criado pelo DL 404/93, de 10 de Dezembro, sendo aí definido como a providência que visava conferir força executiva ao requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instância.
Na ocasião da entrada em vigor desse diploma, o valor da alçada do tribunal da 1ª instância estava fixado em Esc. 500.000$00 - art. 20° da Lei 38/87, de 23.12.
O DL 404/93 foi revogado pelo art. 5° do DL 269/98, de 1 de Setembro, que aprovou o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias (RPCOP). Segundo o art. 7° deste último diploma, considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1°, ou seja, das obrigações que emirjam de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância.
Assim, à data da entrada em vigor do DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, que abaixo analisaremos, o processo de injunção aplicava-se às situações em que se exigia o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 3.740,98 - v. art. 24° da LOFTJ, na redacção do DL 323/2001, de 17 de Dezembro.
Este DL 32/2003 transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho, a qual estabelece medidas de luta contra o atraso de pagamento nas transacções comerciais.
Segundo o nº 1 do art. 7°, o atraso de pagamento em transacções comerciais ... confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.
Por sua vez, o art. 8° do DL 32/2003 introduziu alterações aos arts. 7°, 10°, 11°, 12°, 12°-A e 19° do anexo ao DL 269/98, de 1 de Setembro.
O art. 7° deste último diploma passou a ter a seguinte redacção:
“Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1° do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro”.
O procedimento injuntivo passou, assim, a poder ser também usado para exigência do cumprimento das obrigações emergentes de transacções comerciais, independentemente do valor das mesmas. Ponto é que a transacção se enquadre no conceito plasmado no art. 3°, segundo o qual se entende por “transacção comercial” qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação” que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração.
Ora, segundo o que consta do requerimento inicial, o direito de crédito do requerente radica num contrato de fornecimento ao requerido de artigos desportivos, datado de 10.01.2003. Na sua oposição, o requerido referiu que as máquinas fornecidas pelo requerente destinaram-se a um ginásio que aquele explora num hotel de..... v. arts. 1° e 21° da oposição. Não há, pois, a menor dúvida sobre a natureza comercial da transacção.
Simplesmente, a Mmº Juiz a quo, seguindo de perto a argumentação explanada pelo requerido na oposição, considerou que “o diploma que veio ampliar o recurso à injunção prevê somente a sua aplicação às prestações que se vençam a partir da sua entrada em vigor, no caso dos contratos de execução continuada ou reiterada” e que não está prevista a sua “...aplicação às prestações dos contratos de execução continuada ou reiterada vencidas antes da sua entrada em vigor, ou aos outros contratos ‘instantâneos’ celebrados antes da sua entrada em vigor”.

Vejamos:
O DL 32/2003 entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, com excepção das normas dos arts. 7° e 8°, cuja entrada em vigor foi diferida para o 30° dia posterior à sua publicação. Na exposição de motivos (preâmbulo), esta vacatio legis surge ligada à possibilidade de o credor poder agora recorrer ao procedimento injuntivo para obtenção de título executivo, independentemente do valor da dívida.
A única limitação imposta no diploma é a de que a obrigação resulte de transacção comercial, excluindo-se do seu âmbito os contratos celebrados com consumidores, os juros não decorrentes de transacções comerciais e os pagamentos efectuados a título de indemnização por responsabilidade civil- cfr. arts. 1° e 2°.
As regras que permitem e regulam o procedimento injuntivo são de natureza estritamente adjectiva. Como tal, a sua aplicação é imediata, atenta a natureza publicística e instrumental do processo e o princípio, implícito no comum das leis, de que estas só regem para o futuro - v. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, edição de 1963, pág. 43. Isto só não será assim se o legislador expressamente o disser no texto da lei nova.
Temos, portanto, como certo que as normas do DL 32/2003, a partir de 19 de Março de 2003, passaram a aplicar-se às situações em que se verificava atraso de pagamento em transacções comerciais, nos termos do art. 7°.
O contrato em causa é, seguramente, um contrato compra e venda, cuja execução se consuma imediatamente com a entrega da coisa e o pagamento do preço. É, por isso, um contrato de execução instantânea, mesmo que se tenha convencionado o pagamento da respectiva factura no prazo de 10 dias, como afirma o requerido no art. 13º da oposição - v. Galvão Telles, “Manua1 dos Contratos em Geral”, 4ª edição, pág. 492 e Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 4ª edição, pág. 79.
O Mmº Juiz recorrido considerou verificar-se a nulidade do erro na forma do processo, escudando-se no disposto no art. 9° do DL 32/2003. Estabelece-se nesse preceito que “o presente diploma aplica-se às prestações de contratos de execução continuada ou reiterada que se vençam a partir da data da sua entrada em vigor”.
Este artigo tem carácter interpretativo, visando colmatar dúvidas na aplicação do novo quadro normativo a situações de direito substantivo pré-existentes, de execução duradoura (continuada ou reiterada). Aliás, a respectiva epígrafe “aplicação no tempo” disso mesmo dá nota.
Assim, as prestações derivadas desse tipo de contratos que se vençam a partir da entrada em vigor do DL 32/2003 podem ser exigidas através do expediente processual ai previsto.
Como se viu, porém, o contrato em causa é de execução instantânea, na medida em que o comportamento exigível do devedor (requerido) se esgota num só momento: o do pagamento do preço.
Tal contrato foi celebrado em 10.01.2003 (cfr. requerimento injuntivo e art. 13º da oposição) e à data da instauração do processo injuntivo - 13.10.2003 - o preço da compra ainda estava por liquidar, como o próprio requerido admite (cfr. art. 26° da oposição).
Portanto, verificando-se o incumprimento do requerido (atraso no pagamento da transacção comercial) à data do requerimento da injunção, nenhuma objecção pode ser oposta ao meio processual usado.
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III. DECISÃO
Nestes termos, no provimento do agravo, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos.
Custas pela parte vencida a final.
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Porto, 23 de Novembro de 2004
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge