Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0820307
Nº Convencional: JTRP00041175
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RP200803110820307
Data do Acordão: 03/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: LIVRO 267 - FLS 195.
Área Temática: .
Sumário: I - No art. 274º nº 2 do CPC estabelecem-se factores de conexão entre o objecto da acção e o da reconvenção que tornam esta admissível.
II - Se na acção se pretende o cancelamento do registo da aquisição de um veículo a favor da ré, com fundamento na resolução do contrato de compra e venda, a reconvenção – assente em alegado incumprimento pelo autor de um contrato de depósito bancário – não se funda em facto jurídico que sirva de fundamento à acção ou à defesa, não sendo, por isso, admissível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 307/08 – 2
Apelação
Decisão recorrida: proc. nº …/06.3 TVPRT da .ª Vara Cível do Porto/.ª secção
Recorrente: B……….
Recorrido: “C………., SA”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Canelas Brás e Antas de Barros

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
O autor “C………., SA” intentou a presente acção de condenação, sob forma ordinária, contra a ré B………., pedindo que seja ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor da ré, incidente sobre o veículo automóvel, matrícula ..-..-MS.
Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:
- vendeu à ré o veículo automóvel de matrícula ..-..-MS, a prestações, com cláusula de reserva de propriedade a seu favor até integral pagamento do preço;
- o veículo foi entregue à ré, que renunciou ao período de reflexão aplicável ao contrato de compra e venda, e foi registado a favor desta com a menção da referida cláusula de reserva de propriedade;
- porém, a ré não pagou a primeira prestação do preço e, em consequência, o autor comunicou-lhe a resolução do contrato com esse fundamento;
- posteriormente, pelo período de mais de um ano, a ré foi por diversas vezes contactada, sem sucesso, pelo banco autor com vista à emissão de declaração de venda da viatura em causa, de modo a que este ficasse habilitado a dispor da mesma, podendo assim proceder à sua venda a terceiros;
- com efeito, o autor, apesar de já deter fisicamente a viatura automóvel, está impedido de dispor dela, uma vez que a sua propriedade continua registada em nome da aqui ré.
A ré apresentou contestação, na qual veio arguir a ineptidão da petição inicial, por esta não vir acompanhada dos documentos aí referidos, que se encontram juntos ao procedimento cautelar identificado nessa peça processual.
Alegou ainda que entregou ao autor uma declaração de rescisão do contrato e restituiu o veículo objecto do mesmo dentro do prazo de sete dias úteis previsto nesse contrato. Entende, assim, que o contrato se extinguiu por sua iniciativa e que, por isso, é alheia à responsabilidade subjacente ao pedido formulado pelo autor, a cuja procedência, porém, não se opõe.
Formulou também reconvenção, pedindo a condenação do banco autor na restituição da importância de €5.050,00, apropriados ilegitimamente do património da ré, na libertação das contas e meios de pagamento titulados pela ré e no pagamento de indemnização por responsabilidade civil relativa a danos patrimoniais e extra-patrimoniais, a fixar em equidade, a liquidar em execução de sentença.
Para tanto, alegou, em síntese, o seguinte:
- o banco autor, servindo-se da sua qualidade de instituição financeira e com o intuito de reter o pagamento integral do preço da viatura que é objecto da acção, reteve a quantia depositada pela ré nessa conta, impedindo a sua movimentação por parte da mesma;
- para tal não teve autorização judicial ou qualquer outra autorização, o que torna a sua conduta ilícita;
- a ré é proprietária de toda a quantia de que fez depósito, ficando lesada com o facto de dela não poder dispor;
- mais fez o autor, retirando o crédito que a ré detinha na instituição, que ficou impedida de utilizar os meios de pagamento por aquele disponibilizados: cartões de crédito, de débito e cheques;
- ficou, assim, prejudicada na sua esfera patrimonial e marcada por um sentimento de vergonha face aos seus familiares, amigos, comerciantes, etc.;
- foi ainda cobrada à ré e retirada da sua conta pessoal, também sem qualquer autorização, a quantia de €500,00, justificada pelo autor como despesas de cancelamento, tendo este feito a compensação com aquilo que chama indemnização contratual e a que não tem direito.
O autor apresentou réplica, na qual sustentou que a petição inicial não é inepta, uma vez que os documentos cuja falta foi arguida são do conhecimento da ré, fazendo parte dos autos por se encontrarem incorporados no procedimento cautelar já apensado ao presente processo.
Entende igualmente que a rescisão do contrato que a ré quis fazer não produziu nem podia produzir qualquer efeito, visto que a ré, tendo havido entrega imediata do bem declarado vender, renunciou ao período de reflexão prévia nele previsto.
Quanto à reconvenção, considera o autor ser a mesma inadmissível, atendendo a que o pedido reconvencional não emerge de facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa. Com efeito, a ré reporta-se a um contrato de depósito celebrado entre as partes, em tudo estranho ao contrato de compra e venda e ao registo automóvel a que respeita o pedido formulado na acção.
A ré treplicou, reiterando a admissibilidade do pedido reconvencional ao abrigo da al. a) do nº 2 do art. 274 do Cód. do Proc. Civil, por emergir do mesmo facto que serve de fundamento à acção – a rescisão do contrato de compra e venda do veículo automóvel. Ou seja, foi em consequência desta rescisão que o banco autor praticou os factos alegados para fundamentar a reconvenção.
Por se tencionar conhecer imediatamente do mérito da causa, foi efectuada audiência preliminar nos termos do art. 508 – A do Cód. do Proc. Civil, tendo sido dada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a solução a dar ao litígio.
Depois foi proferida sentença que: i) julgou improcedente a arguição de ineptidão da petição inicial; ii) não admitiu a reconvenção deduzida pela ré; iii) julgou procedente a acção, ordenando o cancelamento do registo de propriedade a favor da ré, respeitante ao veículo automóvel ..-..-MS.
Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 – Foi proposta contra a recorrente acção de cancelamento de registo de propriedade.
2 – A recorrente contestou e deduziu reconvenção.
3 – Onde alegava que o recorrido, aproveitando-se da sua qualidade de instituição financeira, havia retido e impedido a movimentação da quantia de €4.550,00 depositada nessa instituição pela recorrente.
4 – E que o recorrido havia, sem autorização prévia, retirado da referida conta a quantia de €500,00 para despesas de cancelamento.
5 – Terminando com o pedido de condenação do recorrido na devolução dessa quantia e pagamento de indemnização por responsabilidade civil a liquidar em execução de sentença.
6 – O pedido reconvencional não foi admitido por não emergir do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à acção (art. 274 nº 2 al. a)).
7 – No entanto, a admissibilidade do pedido reconvencional feita nos termos da al. a) do nº 2 do art. 274 do CPC é uma exigência do princípio da economia processual e da justiça.
8 - Com vista a evitar a morosidade na justiça que resultaria da necessidade de interposição de uma acção em separado.
9 – E a garantir uma maior realização da justiça dada a proximidade do juiz da causa inicial com os motivos determinantes do confronto das partes, oferecendo uma maior garantia de uma decisão mais conscienciosa.
10 – Sendo a reconvenção uma verdadeira acção enxertada noutra, nada obsta a que seja diversa a causa de pedir numa e noutra acção.
11 - Bastando-se a lei com a existência de um mínimo de conexão.
12 – Nos presentes autos existe esse mínimo de conexão.
13 – A acção e a reconvenção emergem do mesmo facto jurídico: a rescisão de um contrato de compra e venda.
14 – A decisão proferida viola as normas constantes destas alegações e respectivas conclusões, especialmente a do art. 274 nº 2 al. a) do CPC.
Pretende, assim, que se anule o despacho saneador-sentença recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do presente recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684 nº 3 e 690 nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se a reconvenção deduzida pela ré é – ou não – admissível face ao disposto no art. 274 nº 2 al. a) do Cód. do Proc. Civil.
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Os factos a ter em atenção para o conhecimento do presente recurso são os que resultam do relatório acima elaborado, para o qual se remete.
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Passemos então à apreciação jurídica.
O art. 274 do Cód. do Proc. Civil estatui o seguinte nos seus nºs 1 e 2:
«1. O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.
2. A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.»
A reconvenção, consistindo num pedido deduzido em sentido inverso ao formulado pelo autor, constitui uma contra-acção que se cruza com a proposta pelo autor (que, no seu âmbito, é réu, enquanto o réu nela toma a posição de autor – respectivamente, reconvindo e reconvinte). Não sendo razoável admiti-la independentemente de qualquer conexão com a acção inicial, o nº 2 do art. 274 estabelece os factores de conexão entre o objecto da acção e o da reconvenção que tornam esta admissível.[1]
Tais factores de conexão, de acordo com este preceito legal, reconduzem-se, taxativamente, a três tipos de situações:
I – Ligação através de facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa (al.a));
II – Compensação de dívidas ou indemnização por benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega é pedida (al. b));
III – Reversão, a favor do réu, do efeito jurídico pretendido pelo autor (al. c)).
A única situação que aqui nos interessa, para apurar da admissibilidade do pedido reconvencional formulado pela ré, é a referida em primeiro lugar – al. a) do nº 2 do art. 274 do Cód. do Proc. Civil.
Haverá então que indagar se a reconvenção decorre – ou não - do facto jurídico (real, concreto) que serve de fundamento, seja à acção, seja à defesa.
Ora, da leitura da contestação apresentada pela ré constata-se que esta fundamenta a reconvenção num contrato de depósito bancário, que nem sequer identifica nem caracteriza devidamente no seu articulado, acrescentando que o banco autor, de forma ilícita, a terá impedido de movimentar a conta respectiva e terá, inclusive, retirado desta parte dos seus fundos - €500,00.
Por conseguinte, haveria da parte do autor incumprimento das obrigações decorrentes daquele contrato de depósito.
Acontece, porém, que o facto jurídico que serve de fundamento à acção intentada pelo banco autor com vista ao cancelamento do registo de propriedade em nome da ré do veículo automóvel ..-..-MS é o contrato de compra e venda referente a esta mesma viatura, não tendo assim nenhuma relação jurídica com o contrato de depósito bancário a que se alude em sede reconvencional.
Aliás, não será demais assinalar, como o fez o Mmº Juiz “a quo”, que a ré, no seu art. 32 da contestação/reconvenção, alegou até que “esta preexistente relação jurídica entre o autor e a ré[2] nada tem a ver com o contrato referente à aquisição da viatura”.
Na tréplica, a ré, compreendendo a fragilidade da sua posição, procurou conexionar a reconvenção com a acção, alegando ter sido por causa da rescisão do contrato de compra e venda em que se funda a acção que o banco autor praticou os factos que lhe são atribuídos em sede reconvencional (reteve quantias depositadas; retirou o crédito à ré e impediu-a de utilizar os meios de pagamento que lhe facultara).
Como se afirma na decisão recorrida, a ré tentou estabelecer um nexo psicológico entre duas realidades jurídicas diferentes, referindo que uma – a rescisão do contrato de compra e venda do veículo automóvel – foi a causa da outra – a actuação do banco autor, lesiva da ré, no âmbito do contrato de depósito bancário existente entre ambos.
Sucede que este alegado nexo psicológico não é facto jurídico, de tal modo que a ré não pode fundar nele a dedução do seu pedido reconvencional.
Nas suas alegações de recurso, a ré procurou ainda avançar com uma outra ordem de argumentos, centrando-se agora no princípio da economia processual e na necessidade de evitar a propositura de uma outra acção. Considerou também bastar um “mínimo de conexão” entra a acção e a reconvenção.
Não pode, contudo, afastar-se a letra da alínea a) do nº 2 do art. 274 do Cód. do Proc. Civil que é muito clara quanto ao nexo – jurídico (e não outro) – que tem de existir entre acção e reconvenção, nem o princípio da economia processual é fundamento que permita todo e qualquer atropelo às regras processuais.
Aliás, não será despiciendo sublinhar que se o legislador tivesse querido permitir a dedução, praticamente sem entraves, de pedidos reconvencionais, não teria estabelecido os apertados requisitos substantivos da sua admissiblidade que vêm previstos no nº 2 do art. 274 do Cód. do Proc. Civil.
Concluindo:
- o facto jurídico que serve de fundamento à acção intentada pelo autor é a resolução de um contrato de compra e venda de uma viatura automóvel;
- o pedido reconvencional formulado pela ré fundamenta-se num contrato de depósito bancário existente entre ela e o banco autor e no incumprimento das suas obrigações por parte deste último;
- a reconvenção deduzida pela ré não se funda, assim, em facto jurídico que sirva de fundamento à acção ou à defesa, razão pela qual não é admissível de acordo com o disposto no art. 274 nº 2 al. a) do Cód. do Proc. Civil.
Consequentemente, improcede o recurso de apelação interposto pela ré, devendo ser mantida a decisão recorrida.
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DECISÃO
Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré B………., confirmando-se a douta decisão recorrida.
Custas a cargo da ré/apelante.

Porto, 11.3.2008
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Mário João Canelas Brás
António Luís Caldas Antas de Barros

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[1] Cfr. Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 488.
[2] A fundada no referido contrato de depósito bancário.