Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0716298
Nº Convencional: JTRP00041003
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RP200801300716298
Data do Acordão: 01/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 511 - FLS 179.
Área Temática: .
Sumário: O assistente não pode requerer a abertura de instrução em relação a pessoa contra a qual o Ministério Público não deduziu acusação, se o inquérito não foi dirigido contra essa pessoa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Autos de Instrução n.º …/04.7 JAPRT, do .º Juízo do Tribunal Judicial de Marco de Canavezes

Encerrado o inquérito a que se procedeu nos autos supra referenciados, o Ex.mo Procurador da República acusou os arguidos B………. e C………., imputando-lhes:
- Ao primeiro, em autoria material e concurso efectivo, a prática dos seguintes crimes:
a) um crime de corrupção, p. e p. pelos artigos 372.° do Código Penal e 16.°, n.° 1 da Lei n.° 34/87, de 16 de Julho,
b) um crime de peculato, p. e p. pelos artigos 375.°, n.° 1 do Código Penal e 20.°, n.º 1 da referida Lei n.° 34/87;
c) um crime de peculato de uso, p. e p. pelos artigos 376.°, n.° 1 do Código Penal e 21.°, n.º 1 da Lei 34/87;
d) um crime de abuso de poder p. e p. pelos artigos 382.° do Código Penal e 26.°, n.º 1 da Lei n.° 34/87;
e) um crime de abuso de poder, p. e p. pelos artigos 382.° do Código Penal e 26.°, n.° 1 da Lei n.° 34/87;
f) um crime de extorsão, p. e p. pelo artigo 223.°, n.° 1 e 3, al. a) do Código Penal, com referência aos artigos 2.° e 5.° da Lei n.° 34/87;
g) um crime de abuso de poder p. e p. pelos artigos 382.° do Código Penal e 26.° da Lei n.° 34/87.
- À segunda:
a) em co-autoria material e na forma consumada, um crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375.°, n.° 1 do Código Penal.

A arguida requereu a abertura da instrução a fim de obter o arquivamento dos autos na parte que a si diz respeito.
Simultaneamente requereu a sua constituição como assistente do M.º P.º e deduziu acusação contra D………., identificado a fls. 89, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelos art.ºs. 382° do Código Penal e 26°, n.º 1 da Lei n.° 34/87.
A final pede:
1. A abertura da fase da instrução;
2. A declaração da “qualidade de arguido ao requerido D………., id. a fls. 89, nos termos do art. 57.°-1 do CPP”;
3. A pronúncia deste como co-autor material, em conjunto com o arguido B………., de um crime de abuso de poder, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 28.°, n.º 1 e 382.° do Código Penal e ainda pelo art.º 26.°, n.º 1 da Lei n.° 34/87, conjugado com o art.º 28.°, n.º 1 do Código Penal.

O M.º P.º promoveu:
a) Se indeferisse a requerida constituição de assistente porque a requerente não é titular de um interesse directa e imediatamente protegido;
b) Se indeferisse a requerida abertura de instrução por falta de legitimidade da requerente; e ainda porque a pessoa contra quem foi requerida nunca teve a qualidade de arguido nos autos.

O Sr. Juiz admitiu a Requerente como assistente do M.º P.º.
E indeferiu o pedido de abertura de instrução formulado por C………. contra D………., com os seguintes fundamentos:
“Antes de mais, mesmo que a título de síntese, debrucemo-nos sobre a finalidade da instrução.
Em conformidade com o que dispõe o n.° 1 do artigo 286° do Código do Processo Penal, a Instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o Inquérito em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento. É uma fase processual facultativa (n.° 2 daquele normativo), destinada a questionar o despacho de arquivamento ou a acusação deduzida.
Para tal, é necessário apreciar, de modo crítico, a prova produzida no Inquérito e na Instrução e terminar com uma decisão sobre esta, no sentido da suficiência de indícios conducentes ou não à pretensão do requerente de abertura de instrução (n.° 1 do artigo 308° do Código do Processo Penal, vd. «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia»).
Por sua vez, nos termos do art.° 283°, n.° 2, aplicável por via do art.° 308°, n.° 2, ambos do Código de Processo Penal, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar «uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Daqui decorre que na instrução não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, porque «para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido».
Em suma, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286°, 1, do Código de Processo Penal - CPP).
Feito o intróito quanto à finalidade da abertura da instrução, debrucemo-nos agora apenas sobre a instrução, na vertente do assistente, na medida em que é esta que importa para os autos.
Como se sabe, o Digno Procurador da República proferiu despacho acusatório nos autos contra B………. e C………., onde imputa, respectivamente, (…).
Como supra se referiu, o assistente pode requerer a instrução, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Não é também relativamente a todos os factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação que o assistente pode requerer a abertura da fase da instrução, embora a interpretação em contrário caiba na letra do artigo 287°, n.º 1, al. b).
O artigo 287°, n.° 1, al. b) deve, porém, ser conjugado com o artigo 284°, n.° 1.
Se a discordância do assistente respeitar a factos que não impliquem alteração substancial da acusação do Ministério Público poderá acusar por eles e esses factos poderão ser tidos sempre em conta pelo tribunal, independentemente de constarem da acusação ou da pronúncia (artigo 358°).
Se, porém, a divergência do assistente relativamente à acusação do Ministério Público for substancial, por o assistente entender que a acusação deveria ter conteúdo substancialmente diverso, donde resultasse a imputação ao arguido ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, ou, tendo-se o Ministério Público abstido de acusar, arquivando o processo, o assistente entender que deveria ter sido deduzida acusação, em conformidade com o artigo 283°, pode acusar, requerendo para tanto a abertura da fase da instrução.
Ao assistente caberá indicar, no requerimento de abertura de instrução, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, (artigo 287°, n.° 3) bem como a indicação dos actos de instrução que se pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e de outros, se espera provar, sendo aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283°, 3, b) e c), do CPP.
Na instrução a requerimento do assistente, o Juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (artigo 308° e 309°). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo. Sendo essencial que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objecto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287°, n.°3).
Face ao supra exposto, reportemo-nos às causas de rejeição do requerimento de abertura da instrução.
O requerimento instrutório, nos termos do n.° 3 do artigo 287° do CPP, só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
No que concerne aos dois primeiros requisitos, ou seja, a tempestividade da apresentação do requerimento e a competência do juiz a quem o requerimento foi dirigido, nada há a assinalar, na medida em que o requerimento foi apresentado tempestivamente, dentro do prazo de 20 dias, e dirigido ao juiz de instrução material e territorialmente competente para o efeito, artigos 287°, n.º 1, n.º 6 e 113°, n.° 10 e artigo 17°, todos do CPP.
Quanto à admissibilidade da instrução, como infra se demonstrará, somos levados a concluir pela negativa, ou seja, pela inadmissibilidade legal.
Como se sabe, no conceito de inadmissibilidade legal da instrução cabem realidades diversas. Desde logo, só pode ter lugar a instrução nas formas de processo comum e abreviado (art.° 286°, n.° 3). Só a podem requerer os arguidos que tenham sido acusados (artigo 287°, n.° 1, al. a)) e os assistentes, relativamente a crimes públicos e semi-públicos (art. 287.°, n.° 1, al. b).
O requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta ou inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto, de arguido. Faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente.
No entendimento da assistente, a abertura da instrução tem como finalidade a pronúncia de D………., como co-autor material, em conjunto com o arguido B………., de um crime de abuso de poder, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 28°, n.º 1 e 382° do Código Penal, e, ainda, pelo artigo 26°, n.° 1 da Lei n.° 34/87, conjugado com o artigo 28°, n.° 1 do Código Penal.
Instrução que é requerida, como se alcança do processado, não contra um arguido constituído nos autos, sobre o qual tenha incidido qualquer despacho de arquivamento ou de acusação por parte do Ministério Público, mas sim sobre uma pessoa que tem, e sempre teve nos autos, a qualidade de testemunha.
Posto que, embora a assistente alegue que os factos pelo qual pretende que sejam imputados a D………. sejam no essencial os mesmos que deram origem à acusação pública deduzida contra B………., na parte referente ao crime de abuso de poder, a verdade é que este nunca foi constituído arguido nos autos, nem tão pouco, e mais importante, contra si foi proferido qualquer despacho de acusação ou de arquivamento.
Embora com o requerimento de abertura da instrução, em caso de arquivamento dos autos ou acusação, se possa investir determinada pessoa na qualidade de arguido, quando ainda não o haja sido, nos termos do artigo 57° do CPP, no presente caso, a admitir-se a instrução, jamais se ultrapassariam, pelo menos, duas nulidades insanáveis.
Senão vejamos!
É ao Ministério Público que cabe a promoção do processo, embora nos crimes semi-públicos e nos particulares a sua legitimidade para o promover esteja dependente de queixa (artigo 49°) e de queixa e acusação particular (art.° 50°) respectivamente.
O artigo 53°, n.° 2, dispõe que compete em especial ao Ministério Público: a) receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes; c) deduzir acusação e sustentá-la efectivamente na instrução e no julgamento; d) promover a execução das penas e das medidas de segurança.
O processo inicia-se com a fase de inquérito e a notícia de um crime dá lugar à sua abertura, ressalvadas as excepções da lei. Adquirida a notícia de um crime e legitimado pela queixa nos crimes semi-públicos e particulares, o MP promoverá o processo, abrindo o inquérito. Este acto é da competência exclusiva do MP.
A falta de promoção do processo a que se refere a alínea b) do artigo 119° não respeita só à abertura do inquérito. Ela respeita também, indubitavelmente, à promoção do julgamento em processo sumário (artigo 382°, n.º 2), ao requerimento para aplicação da pena em processo sumaríssimo (art.ºs 392° e 394°), à acusação nos crimes públicos e semi-públicos e bem assim à promoção da execução, nos termos do artigo 53°, n.° 1, als. c) e e).
Ou seja, a alegar-se e a concluir-se, como a assistente o faz, que em relação a D………., deveria ter sido deduzida acusação pública, estaríamos perante a constatação da falta de acusação, por um crime público, por parte do Ministério Público, o que consubstanciaria uma nulidade insanável, nos termos da alínea b) do artigo 119° do CPP.
Por sua vez, não é de excluir que, não tendo o Ministério Público, e por consequência os órgãos de Policia criminal, encetado diligências em concreto por suspeita de algo de ilícito praticado por D………., e terminado as investigações quanto aos suspeitos B………., C………. e E………. (este último acusado em processo autónomo), com acusações proferidas nos autos, haja também falta de inquérito obrigatório, em relação ao não acusado, o que consubstanciaria outra nulidade insanável, nos termos da alínea d) do artigo 119° do CPP.
Isto porque, para além de D………. não ter sido, em momento algum, constituído arguido, não resulta também dos autos, mormente no despacho final de encerramento das investigações por parte do Ministério Público, qualquer apreciação sobre a existência ou não de indícios contra D………., quer arquivando ou o acusando os autos nessa parte.
Sempre foi tratado como uma testemunha nos autos, embora, do que ressalta, com largos conhecimentos de alguns factos ilícitos imputados ao arguido B………., mormente agindo a pedido daquele.
Diga-se, em abono da verdade, que o reconhecimento das referidas nulidades insanáveis tornam inválidos os actos em que se verificaram, ou seja, os actos praticados na fase de inquérito e consequentemente a própria instrução em si - artigo 122° do CPP.
Mas mais, na mera hipótese académica de se admitir o requerimento de abertura da instrução, caso existisse pronúncia de D………., estaríamos inevitavelmente a coarctar-lhe determinadas garantias de defesa, nomeadamente a abertura da instrução, caso tivesse sido efectivamente acusado pelo Ministério Público.
Isto porque, uma coisa é ser pronunciado, com base numa instrução requerida pelo assistente, quando o Ministério Público anteriormente se pronunciou pelo arquivamento dos autos e, outra coisa, deveras bastante diferente, e atentatório das garantias de defesa do arguido, é ser pronunciado quando nem sequer sabia que existia qualquer inquérito contra si (cfr. art.ºs 58.°, 59.°, 60.°, 61.°, n.° 1, 32.° da CRP).
Por outro lado, cotejados os autos, constata-se que o requerimento de abertura instrução não vem sustentado em qualquer outra diligência de prova para além da recolhida na acusação. Pelo que, se atentarmos que uma parte relevante da prova recolhida nos autos, nomeadamente quanto aos factos que a requerente pretende sejam imputados a D………., foram obtidos por meio de testemunho pessoal do próprio D………., ou em resultado do seu depoimento, inevitavelmente cairíamos na ilegalidade da prova obtida, nos termos das disposições conjugadas dos nos 3 e 4 do artigos 58°, n.° 2 e 3 do artigo 59, artigo 60° e 125°, todos do CPP.
Face ao supra exposto, conclui-se pela inadmissibilidade legal do requerimento de abertura da instrução - cfr. fls. 2564 a 2579 - requerida por C………. contra D………., nos termos do n.° 3 do artigo 287° do CPP”.

Inconformada, a Assistente interpõe recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto o douto despacho proferido pelo Tribunal a quo em 03-09-2007, em que se decidiu pela inadmissibilidade legal do requerimento de abertura da instrução apresentado pela ora recorrente (fls. 2564 a 2579), na qualidade de assistente, contra D………. .
2. A inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução foi justificada com o facto de o requerido D………. não ter sido constituído como arguido durante o inquérito, tendo participado nesta fase processual somente na qualidade de testemunha, e de não ter sido objecto de qualquer despacho de acusação ou arquivamento.
3. Considerou-se na decisão recorrida que, caso fosse aberta a instrução, jamais se ultrapassariam, pelo menos, duas nulidades insanáveis, as previstas nas alíneas b) e d) do n.° 1 do art. 119° do CPP.
4. Salvo o devido respeito, a decisão recorrida enferma de vício de raciocínio e é incompatível com o disposto nos art.ºs 286°-1, 287°-1, b), e 308°-1 do CPP.
5. Na realidade, a ser procedente e levado às suas últimas consequências o raciocínio que subjaz à decisão recorrida, em instruções abertas a requerimento do assistente nunca seria possível a prolação de um despacho de pronúncia em caso de não acusação do Ministério Público, o que violaria o previsto na primeira parte do art.º 308°-1 do CPP.
6. Sucede que as razões apresentadas como justificação para a decisão de rejeitar a instrução não se integram em nenhuma das circunstâncias que determinam a inadmissibilidade legal da instrução.
7. Além disso, o despacho recorrido põe mesmo em causa a finalidade de controlo judicial da decisão do Ministério Público que põe termo ao inquérito que é cometida à instrução, assim violando o disposto art.ºs 286°-1 e 287°-1, b), do CPP.
8. Com efeito, uma interpretação como a que foi dada pela decisão recorrida ao art. 287°-3 do CPP compromete irremediavelmente a possibilidade de controlo judicial da decisão do Ministério Público de encerramento do inquérito, imposta pelo princípio do acusatório e representa, assim, uma violação do disposto no art.º 32°-5 da Constituição, sendo portanto inconstitucional.
9. E se se desse como boa a decisão recorrida estaria aberta a porta a que o Ministério Público se eximisse à possibilidade de controlo judicial das suas decisões de não acusação em relação a determinada pessoa, para tal bastando não a constituir como arguida e não a acusar.
10. Mais, a decisão recorrida frustra o propósito que dá corpo ao art. 68º -1, e), do CPP, que consagra a acção popular penal, pela qual o legislador procurou contribuir para uma maior transparência na administração da justiça penal.
11. Por último, importa ainda sublinhar a incompatibilidade da decisão recorrida com o disposto no art.º 57°-1 do CPP, pois se o legislador aí diz que passa a assumir a qualidade de arguido todo aquele contra for requerida a instrução, não pode senão entender-se que a lei permite que seja requerida a instrução contra alguém que não é arguido no processo.

Respondeu o M.º P.º com as seguintes conclusões:
1. Não é legalmente admissível a abertura de instrução contra pessoa sobre a qual não foi promovido inquérito, realizada qualquer diligência de prova, nem proferido despacho de arquivamento por parte do Ministério Público, por violação do disposto no artigo 119° al. b) do CPP, o que constituiria nulidade insanável oficiosamente conhecida e declarada a todo o momento.
2. Não é legalmente admissível a abertura de instrução contra pessoa que teve a qualidade de testemunha no inquérito, sem que a mesma tivesse sido constituída como arguida, e como tal ouvida no processo, por violação do artigo 119° n.° 1, al. d) do CPP, o que constituiria uma nulidade insanável conhecida oficiosamente e a qualquer momento.
3. Visando a instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286° n.° 1 do CPP) a mesma terá que incidir sobre os factos e as pessoas que o despacho do Ministério Público expressamente apreciou, acusando ou arquivando, e tendo por base o inquérito que sustenta a acusação ou o arquivamento.
4. A não ser assim, seria admissível a abertura de instrução contra toda e qualquer pessoa, soubesse a mesma da existência ou não do inquérito, fosse ela referida nesse inquérito ou fosse a ele alheia totalmente, caindo-se no total arbítrio do requerente, independentemente de se justificar ou não tal requerimento.
5. É o inquérito concreto, a acusação ou o arquivamento nele proferidos que vão balizar a intervenção do Juiz de Instrução, tal como é a acusação ou a pronúncia que vão balizar o conhecimento do Juiz Julgador na fase do Julgamento.
6. Nos crimes referidos no artigo 68° n.º 1, al. e) do CPP, é sempre possível a denúncia ou participação de qualquer pessoa, e referente a qualquer situação, o que originaria a instauração de inquérito.
7. Para além de que o Juiz de Instrução sempre poderia mandar extrair certidão por qualquer facto que entendesse que constituía crime e remetê-la ao Ministério Público para que exercesse a acção penal.
8. O artigo 57° do CPP, não põe em causa o despacho do Senhor Juiz de Instrução que indeferiu a abertura de instrução requerida pela arguida/recorrente, já que tal normativo legal visa uma maior defesa daqueles contra quem corre inquérito e, findo este, sem que tenham sido ouvidos e como tal constituídos arguidos, deduzida acusação assumem essa qualidade ou, sendo o processo arquivado, assumem essa qualidade de arguido com o requerimento de abertura de instrução, pois a partir desse momento, assistem-lhe direitos que mais ninguém pode invocar.
9. Se alguém fosse acusado, designadamente requerendo-se contra essa pessoa abertura de instrução sem que, contra ela, tivesse corrido inquérito e, nele se tivesse podido defender, estar-se-ia a violar o disposto no artigo 32° n.ºs 1 e 7 da Constituição.
10. Não tendo a testemunha D………. sido constituída arguido, todas e quaisquer provas em que ele participou naquela qualidade não são meios de prova válidos, nos termos do artigos 58° n.° 5 e 125° ambos do CPP.
11. Não tendo o requerimento de abertura de instrução indicado ou requerido a produção de qualquer meio de prova diferente da indicada na acusação, e não sendo aquela admissível, nada nos autos existiria contra ele.
12. Daí que se pense que com tal requerimento e com a pretendida qualidade de arguido que a testemunha D………. assumiria, se pretenderia tão-somente «manietar» essa testemunha ou retirar valor às suas declarações.
13. Na acusação exarada nos autos, e nomeadamente no que ao crime de abuso de poder imputado ao arguido B………. respeita, o Ministério Público não escolheu quem acusou, antes teve em conta os elementos típicos desse crime previsto no artigo 382° do C. Penal, e 26° da Lei n.° 34/87, e os elementos constantes dos autos, nunca podendo imputar tal crime à testemunha D………., já que na sua participação nos factos descritos nos números 26° a 48° da acusação, nunca agiu nas «vestes» de funcionário nem tinha conhecimento das futuras alterações do PDM do ………., que o arguido B………., na sua qualidade de Presidente da Câmara Municipal tinha.
14. O despacho recorrido, não violou qualquer preceito legal, ou constitucional, nomeadamente os invocados pela recorrente.

O Sr. Juiz sustentou o seu despacho “por se estar convicto que a decisão proferida nos autos de fls. 2984 a 2995 é a correcta, justa, legal, e constitucionalmente adequada à questão em concreto suscitada, pelos motivos aí plasmados, decide-se mantê-la”.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA opina no sentido de que o recurso não merece provimento.

Colhidos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.

A única questão do presente recurso é a de apurar se pode ser requerida instrução quando não foi instaurado inquérito contra a pessoa visada e, por isso, não foi constituída arguido, podendo sê-lo.

A resposta é, sem qualquer reserva ou dúvida, negativa.
Se assim não fosse – e é -, violar-se-iam os mais elementares direitos de defesa que estão atribuídos a qualquer cidadão, consignados no art.º 32º da Constituição.
E poderia até violar-se o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Vejamos:
“O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determina subordinados ao princípio do contraditório” – n.º 5 do art.º 32º da CRP.
Decorre do princípio que, no plano material, tem de haver uma distinção entre as fases da acusação, instrução e julgamento; e que, no plano subjectivo, tem de haver diferenciação entre os órgãos, vulgo “pessoas”, que acusam, que presidem à instrução e aqueles que julgam.
No desenvolvimento do princípio referido, a lei ordinária conferiu a um órgão de Estado - o Ministério Público – a competência para a promoção do processo penal – art.º 48º. Mas não sem que, em determinadas situações, e por razões de política criminal (que aqui não interessa analisar atenta a natureza pública do crime dos autos), tenha condicionado esse exercício da acção penal à verificação de determinadas condições (de procedibilidade).
Sendo o M.º P.º o competente para o exercício da acção penal, a lei conferiu, como tinha de o fazer, a órgãos diferentes a competência para a Instrução – JIC – e para o Julgamento – Juiz do Julgamento.
Em determinados casos, devidamente tipificados e limitados, o sujeito processual “assistente” exerce, entre outros, o direito de deduzir acusação (compreende-se a limitação atendendo a que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de interesse eminentemente público[1], e, por isso, há que ter muita cautela quando exercidos por particulares).
Esta separação de competências e de poderes, conjugada com as limitações decorrentes do princípio e com aquelas que resultam da lei, satisfaz em pleno a estrutura acusatória do processo[2].

O Ministério Público só pode exercer a acção penal relativamente aos factos puníveis de que tenha conhecimento.
O que significa que o M.º P.º tem de adquirir a notícia do crime “por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia, nos termos dos artigos seguintes” – art.º 241º do CPP.
In casu, porque está em causa, na tese da Assistente, a prática pelo recorrido (D……….) de um crime de natureza pública – art.º 382º do C. P. e 26°, n.º 1 da Lei n.° 34/87 – o M.º P.º pode, oficiosamente, exercer a acção penal.
Como qualquer pessoa pode denunciar os factos puníveis ao M.º P.º - art.º 244º do CPP.
Direito esse (e também ónus, segundo nosso entendimento) que, obviamente, também assistia e assiste à Recorrente (se não houver qualquer causa impeditiva do exercício da acção penal). E que não exerceu!

A notícia de um crime (ainda punível), e ressalvadas as excepções previstas no processo penal (processos especiais, por ex.,) “dá sempre lugar à abertura de inquérito” – n.º 2 do art.º 262º do CPP.
Consagra-se no preceito o princípio da legalidade.
Impõe este, designadamente, que sobre a denúncia recaia, sempre, um despacho.
Tal despacho está subordinado a critérios de legalidade estrita por parte do Magistrado do M.º P.º competente (não fica sujeito a um qualquer poder discricionário e/ou - muito menos – arbitrário). Trata-se, pois, de poder vinculado, de poder/dever. O que sucede mesmo nos casos de diversão previstos nos art.ºs 280º e 281º do CPP.
A obrigatoriedade de fundamentação dos despachos resulta da CRP e também da Lei – art.º 205º, n.º 1 da CRP e 97º, n.º 4 do CPP.
Os despachos proferidos pelos Magistrados do M.º P.º podem ser hierarquicamente sindicados - lei Processual Penal e do Estatuto do M.º P.º.
Nos casos previstos na lei estão sujeitos a controlo judicial.
Para além de que os Magistrados do M.º P.º (como todos os agentes do Estado) estão sujeitos a poder disciplinar.
E não gozam de impunidade criminal.
Do que vem de ser dito se conclui, com meridiana clareza, que é de todo em todo infundada a conclusão 8ª, só entendível no pressuposto de que partiu a Recorrente: mesmo sem inquérito … pode ser requerida a abertura de instrução (contra uma qualquer pessoa não investigada).
Aqui sim, haveria violação de preceitos e princípios constitucionais.
Importa afirmar, contrariando o alegado pela Recorrente, que não se viola a estrutura acusatória do processo, tal como foi definida, quando não se permite que a assistente requeira abertura de instrução contra pessoa não investigada.
Na prática estar-se-ia a prescindir do inquérito.
E, em última análise, estaria uma entidade diferente do M.º P.º a exercer a acção penal, que só ele pode exercer.
A Recorrente podia e devia ter apresentado a competente denúncia, que levaria à abertura dessa fase processual, “provocando” despacho por parte do M.º P.º, sindicável.
Como o M.º P.º, se fosse caso disso, deveria ter aberto inquérito contra o Recorrido.
Como o não fez, a Assistente deveria ter usado dos poderes que a lei lhe confere, designadamente dos de acção popular que se arroga (e bem), que não podem ser exercidos contra as normas ou princípios constitucionais.
Ou seja, deveria, em primeira linha, “provocar” um despacho de abertura do inquérito. Não obtendo êxito, deveria “atacar” tal despacho pela forma legal.
O que nunca pode é ultrapassar uma fase processual obrigatória: o inquérito. Sob pena de violar o princípio do acusatório e todos os preceitos legais que cometem ao M.º P.º o exercício da acção penal.
Não o fez, por razões que só a ela dizem respeito.
Mas pretende agora deduzir acusação sem que os factos tenham sido investigados e sem se conceder ao acusado os direitos que a lei concede ao arguido – art.º 61º do CPP.
O que também importa violação do princípio constitucional da igualdade – art.º 13º da CRP.

Já adiantámos razões que, em nosso entender, são impeditivas da abertura da Instrução.
Avancemos, porém.
Ao tomar conhecimento de factos puníveis, como se referiu, o M.º P.º, obrigatoriamente, ordena a abertura de inquérito – citado n.º 2 do art.º 262º do CPP.
Este “compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação” – n.º 1 do art.º 262º do CPP.
O inquérito é da competência do Ministério Público a quem cabe exclusivamente a sua direcção, embora assistido por órgãos de polícia criminal – n.º 1 do art.º 263º do CPP.
A lei consigna quais as diligências que nele podem ser realizadas pelo Ministério Público, ou por órgãos de polícia criminal.
Como prevê as que só podem ser realizadas pelo juiz de instrução ou por ele delegadas.
São obrigatoriamente realizados pelo JIC, no decurso do inquérito, os actos que se prendem com direitos fundamentais do arguido – art.ºs 267.º e 270.º do CPP.
Apesar dos poderes que lhe são conferidos, e porque compete a direcção do inquérito ao Ministério Público, “não é curial que o juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se se tratar de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais. A direcção do inquérito pertence ao Ministério Público e só a ele compete decidir quais os actos que entende dever levar a cabo para realizar as finalidades do inquérito” - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, 2.ª edição, págs. 80 .
Muito menos pode o Juiz substituir o M.º P.º na direcção do inquérito.
As diligências de inquérito são da exclusiva competência do M.º P.º, que solicita a intervenção do JIC nos casos em que a sua intervenção é obrigatória.
O conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação, têm de ser feitas em inquérito, como se referiu.
A instrução “não é actividade materialmente policial ou de averiguações”[3] e, também por isso, não se destina a suprir a falta de inquérito, que nunca poderia suprir pela razões antes explanadas.
Sem dificuldade se conclui que não se pode prescindir do inquérito sob pena de violação do princípio do acusatório.

A falta de inquérito, nos casos de processo comum, como é o dos autos, constitui nulidade insanável – alínea d) do art.º 119º do CPP.
Argumentar-se-á que os presentes autos contêm um inquérito.
Trata-se de falácia que importa refutar.
“Correr Inquérito contra determinada pessoa, tem um preciso significado: a existência de fortes indícios da prática do crime pelo imputado, dos quais resulta, consequentemente, a realização do conjunto das diligências probatórias a que se refere o art. 262° n.º 1 do C.P.P., dirigidas contra essa pessoa concreta, determinada, enquanto tenham por finalidade comprovar a imputação do crime a essa pessoa”[4].
Porque assim também se verifica a nulidade quando há um inquérito, mas não dirigido à pessoa acusada. Como acertamente se refere no acórdão desta Relação de 17/01/2001, in www.dgsi.pt. “Não tendo corrido qualquer inquérito contra determinados arguidos, a acusação contra eles deduzida pelo assistente está ferida de nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119 alíneas b) e d) do Código de Processo Penal”.
O que também é impeditivo da abertura da instrução.

ACRESCE:
Nos termos do n.º 1 do art.º 272º do CPP, “Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la”.
De resto, tal obrigatoriedade resulta já da alínea a) do n.º 1 do art.º 58º do CPP.
E só cessa a obrigatoriedade quando não for possível convocar a pessoa para interrogatório[5]. Caso em que o investigado assume a qualidade de arguido logo que contra ele seja deduzida acusação ou requerida instrução – n.º 1 do art.º 57º do CPP.
Mandam as regras da boa hermenêutica que apenas se convoque a regra do art.º 57º do CPP quando se verifique uma situação de impossibilidade de notificação do denunciado/investigado para interrogatório.
Com efeito, o preceito tem de ser interpretado de acordo com a teleologia e a funcionalidade que presidiram à sua redacção como, de resto, acontece com todo o direito penal e processual penal.
A interpretação literal feita pela Recorrente apenas pode servir de base à interpretação, e por ela se quedando, certamente o intérprete chegará a conclusões erradas, como, com o devido respeito, é aquela a que chegou a Recorrente.
Para além de que daria aso a inúmeras nulidades, designadamente em matéria de prova – cfr. art.º 61º, n.º 1, alínea f) e 125º do CPP.
E - ainda - violaria a finalidade da constituição de arguido.
Escreve o Prof. Figueiredo Dias[6], com a autoridade que lhe é reconhecida: “…o legislador é obrigado a exprimir-se através de palavras; as quais todavia nem sempre possuem um único sentido, mas pelo contrário se apresentam quase sempre polissémicas. Por isso o texto legal se torna carente de interpretação … oferecendo as palavras que o compõem, segundo o sentido comum e literal, um quadro (e portanto uma pluralidade) de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. …
Decisivo será assim, por um lado, que a interpretação seja teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema”.
Quando o legislador manda que o denunciado seja constituído arguido visou (finalidade última) conferir-lhe um conjunto de direitos – art.º 61º do CPP – que, em última ratio, lhe asseguram todas as garantias de defesa – n.º 1 do art.º 32º da CRP.
Mas também, no que diz respeito às provas, quer que o arguido acompanhe a sua produção, indicando os meios de prova que entender e exercendo a fiscalização que entenda.
O que, funcionalmente, evitará a repetição de provas.
Porque assim, sempre é obrigatória a constituição de arguido, obrigatoriedade essa que apenas cessa nos casos de impossibilidade de convocação do denunciado.
Só neste caso é que a acusação faz com que este assuma a qualidade de arguido – art.º 57º do CPP.
Frustrando-se a constituição de arguido - e o subsequente interrogatório - por mera conveniência, desejo, capricho ou outra razão que não seja a da impossibilidade de notificação, é claro que se impedia o denunciado de exercer direitos que estão na génese do instituto.

Podendo o acusado ter sido constituído arguido, e nessa qualidade interrogado, e não o tendo sido, a admitir-se a acusação deduzida pela Assistente, cometer-se-ia a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, alínea d) do CPP.
O STJ[7], em acórdão uniformizador, do qual se respigam as seguintes passagens, doutrinou:
“Tomando posição sobre a questão, começar-se-á por observar que a imposição constante do artigo 272.°, n.° 1, segundo a qual, no inquérito, quando o mesmo se processe contra pessoa determinada e seja possível a sua notificação é obrigatório interrogá-la como arguida mais não é que o corolário lógico, por um lado, dos fins e do âmbito do inquérito e das finalidades do processo criminal e, por outro lado, das garantias de defesa (todas as garantias de defesa) que a Constituição da República proclama o processo criminal dever assegurar — artigo 32.°, n.º 1.
Como efeito, tendo o inquérito por fim a decisão sobre a acusação (artigo 262.°, n.° 1) para a qual se torna indispensável a averiguação sobre a ocorrência de um crime, a determinação dos seus agentes e respectiva responsabilidade, e tendo o processo criminal por fim último a descoberta da verdade e a realização da justiça (ou mesmo só esta última, já que também perante ela surge a descoberta da verdade como mero pressuposto), dúvidas não restam da necessidade de audição daquele ou daqueles contra quem o inquérito corre, necessidade que resulta, também, das garantias de defesa que a Constituição da República consagra.
Como diz Germano Marques da Silva, o processo penal tem custos morais muito graves para o arguido, mais não seja o decorrente da publicidade que lhe é inerente, importando, por isso, acautelar que só seja submetido a julgamento aquele sobre quem recaia forte suspeita de responsabilidade criminal.
Por outro lado, certo é que o objecto do processo, nas suas fases iniciais, é definido pela acusação que delimita substancialmente os factos pelos quais o arguido virá a ser condenado e constituem, por isso, o tema essencial ou necessário da actividade probatória.
Daqui que a lei adjectiva imponha, como obrigatório, no decurso do inquérito, o interrogatório daquele ou daqueles contra quem o mesmo corre termos, só o dispensando no caso de ser inviável a notificação do ou dos participados ou denunciados, acto processual que, servindo fins diversos, constitui, prevalentemente, uma garantia de defesa, decorrente do próprio Estado de direito democrático, traduzida na observância do princípio ou direito de audiência, que implica que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do tribunal (concepção «carismática» do processo), mas tenha de ser tarefa de todos, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assuma. (…)
Segundo o artigo 118°, n.ºs 1 e 2, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal implicam sempre a irregularidade do acto em que se verifiquem, a menos que a lei expressamente determine a nulidade daquele.
Trata-se da adopção do princípio da legalidade ou da taxatividade relativamente às nulidades processuais, posto que só são nulos os actos que a lei considere como tais, sendo irregulares todos os demais actos ilegais para os quais a lei nada comine, princípio que tem na base a preocupação da prevalência da verdade material sobre a verdade formal, favorecendo o aproveitamento dos actos eivados de vício menos grave, por via da consideração de que as irregularidades do processo só determinam a invalidade do acto a que se referem quando erguidas pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes àquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado — artigo 123°. (…).
Das considerações feitas decorre com clareza que a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, da pessoa (determinada) contra quem aquele corre, sendo possível a sua notificação, não constitui a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c) -ausência do arguido no caso em que a lei exigir a respectiva comparência -, visto que o que está em causa ao impor-se aquele interrogatório não é o direito de presença, antes o direito de audiência, direitos de defesa que, como vimos, são distintos.
Por outro lado, a lei, ao estatuir que é obrigatório interrogar como arguido a pessoa contra quem corre o inquérito, está a pressupor que aquela pessoa ainda não foi constituída como arguido, ou seja, que ainda não há arguido. Deste modo, sendo certo que a nulidade insanável a que vimos de aludir tem em vista, apenas, os casos de ausência do arguido a actos em que a lei exige a respectiva comparência, é evidente ser inaplicável à omissão do interrogatório previsto no artigo 272º, n.º 1.
A omissão em causa, posto que o acto omitido é de realização obrigatória, configura, indubitavelmente, atenta a fase processual em que é imposta a sua realização, uma insuficiência de inquérito.
Nesta conformidade, temos por certo que a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, da pessoa (determinada) contra quem o mesmo corre, suposta a não inviabilidade da sua notificação para o respectivo acto, constitui a nulidade relativa prevista no artigo 120° n.° 2, alínea d), arguível nos termos da alínea c) do n.° 3 daquele artigo”.

Porque assim, desde já extraímos duas conclusões:
- A falta de inquérito contra o acusado consubstancia nulidade insanável;
- A falta de interrogatório do acusado como arguido, quando está perfeitamente contactável (foi ouvido como testemunha), constitui a nulidade relativa prevista no artigo 120° n.° 2, alínea d), arguível nos termos da alínea c) do n.° 3 daquele artigo.

Importa agora tratar o instituto da instrução para também apurar se é possível declarar aberta a instrução quando o processo enferma de nulidade insanável e de nulidade sanável.
Ou, por outras palavras, se com a realização da instrução as mesmas se podem considerar sanadas.

Realizadas as diligências de inquérito, o M.º P.º arquiva-o ou deduz acusação – n.º 1 do art.º 276º.
Quando o inquérito tenha sido arquivado em ordem a não submeter a causa a julgamento, o assistente, nos crimes públicos e semi-públicos, requer a abertura da instrução relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação – art.º 287º, n.º 1, alínea b) do CPP.
Descodificando o preceito, logo se vê que o assistente apenas pode requerer a abertura da instrução desde que, cumulativamente, estejam verificados dois pressupostos:
- O inquérito tenha sido arquivado em ordem a não submeter a causa a julgamento;
- Se trate de crimes públicos ou semi-públicos.
Como se vê dos autos, dele não consta qualquer despacho de arquivamento relativamente ao acusado.
Faltando, como falta, um dos pressupostos legais, verifica-se situação de inadmissibilidade legal da instrução.

AINDA:
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – n.º 1 do art.º 286º do CPP.
Objecto da instrução seria, pois, in casu, a decisão de arquivar o inquérito em ordem a não submeter a causa a julgamento.
Ora, não tendo havido inquérito, logicamente, não houve decisão de o arquivar.
Consequentemente, a instrução requerida não tem objecto. Não se pode comprovar o que não existe.
Também por esta razão se considera que, no caso em análise, há uma situação de inadmissibilidade legal da instrução – n.º 3 do art.º 287º do CPP[8].

No sentido do texto cfr. o Ac da RE de 1/03/2005[9]: “É essencial que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objecto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287.º, n.º 3), em razão da nulidade prevista no artigo 119.º, alínea d), do Código de Processo Penal”.
Ainda no mesmo sentido o Ac. desta Relação de 9/5/2007[10], que assim fundamentou: “Conforme se afirmou no Ac. da R.P. de 23 de Janeiro de 2001 publicado na C.J. 2002, Tomo I, pág. 229 e 230 «A decisão de abstenção do Ministério Público de deduzir acusação, findo o inquérito dirigido contra pessoa(s) certa(s), é assim, um pressuposto do requerimento do assistente para a abertura de instrução. Caso contrário, como é obvio, ficaria frustrada a razão de ser desta fase processual, ou seja, a de comprovar judicialmente a decisão do Mº Pº de não acusar arguido(s) previamente determinado(s) por factos que, no decurso do inquérito foram objecto de investigação». (…) A «falta de inquérito», refere-se à falta do conjunto de diligências ou actos compreendidos no art. 262º n.º 1 do C.P.P.
Tal vício ocorre quando se verifique ausência absoluta ou total de inquérito ou falta absoluta de actos de inquérito - cfr. também Souto de Moura in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 118 e Maia Gonçalves in C.P.P. Anotado, 1996, pág. 250”.

Do exposto se conclui que o douto despacho recorrido deve ser confirmado.

Mas não sem se diga que jamais a instrução poderia sanar nulidade que é insanável, o que só ocorreria com o trânsito em julgado da decisão.
Como não pode devolver os autos ao M.º P.º para que este diligencie no sentido de sanar a nulidade (neste sentido o Ac. do STJ de 27/06/2006 in www.dgsi.pt).

Porque assim, constatada uma nulidade insuprível – falta de inquérito – não podendo o JIC devolver os autos ao M.º P.º para eventual sanação, a instrução não podia, nessas circunstâncias, conduzir a despacho de pronúncia.
O que, aceitando o requerimento de abertura de instrução, implicaria que se iriam cometer actos inúteis, que a lei proíbe.
O que também é causa de inadmissibilidade legal da instrução.

DECISÃO:
Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém e confirma o douto despacho recorrido.
Fixa-se em 8 Ucs a tributação.

Porto, 30.01.08
Francisco Marcolino de Jesus
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins

_______________________________
[1] Cfr. Ac. do STJ de 12/07/2005 in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. DIAS, Figueiredo in “Jornadas de Processo Penal”, ed. do CEJ, pg. 32 e segs.
[3] Idem, pg. 16
[4] Ac da RP de 9/5/2007, in www.dgsi.pt
[5] Neste sentido, Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, I vol., pg. 90 e 91
[6] Direito Penal, Parte Geral, tomo I, pg. 176 e segs.
[7] Ac. do STJ, Uniformizador de jurisprudência, com o n.º 1/2006, de 23/11/2005, in DR, I-A, de 2/1/2006
[8] Em caso análogo, com idêntica decisão, cfr. o Ac. da RL de 21/03/2001 in CJ, XXVI, tomo II, pg. 133
[9] In www.dgsi.pt
[10] In www.dgsi.pt