Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0721514
Nº Convencional: JTRP00040279
Relator: ALZIRO CARDOSO
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
EXECUÇÃO
PENHORA
CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RP200704240721514
Data do Acordão: 04/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 246 - FLS 216.
Área Temática: .
Sumário: I – O artº 861º-A do CPC, na redacção introduzida pelo DL 38/03 de 08.03, permite que se proceda à penhora do saldo de todas as contas dos executados existentes na entidades bancárias em que seja previsível a possibilidade de existirem contas do executado, sem exigir a sua identificação.
II – Sendo assim, também o sigilo bancário deve ceder, a fim de previamente serem indicadas, através do Banco de Portugal, as contas de que os executados sejam titulares, para posterior notificação das respectivas entidades bancárias da penhora dos saldos das contas bancárias que se apure existirem em nome do executado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1. Relatório
Na execução para pagamento de quantia certa instaurada pelo B………., S.A. contra a sociedade C………., Lda, D………. e E………., o Solicitador de Execução, indicado pela exequente, informando não ter localizado bens dos executados e alegando que as entidades, com elementos registados em base de dados, em geral se vêm recusando a prestar qualquer informação, alegando estarem sujeitos a sigilo, solicitou, através de requerimento apresentado em 12-04-2006, que fosse autorizado o levantamento do sigilo e consequentemente a consulta da base de dados das seguintes entidades: Direcção Geral dos Impostos, Instituto Seguros de Portugal, Instituto de Gestão do Crédito Público, Entidades abrangidas pela Direcção-Geral dos Registos e Notariado e Banco de Portugal.
Solicitando quanto ao Banco de Portugal o levantamento do sigilo para que “informe se os executados figuram na base de dados e quais as entidades detentoras de tais dados”, esclarecendo não se tratar de “autorização para averiguação de contas, nem para penhora”.
Na sequência do referido requerimento foi proferido em 26-04-2006, despacho com o seguinte teor:
“Defere-se a requerida consulta das bases de dados no que respeita ao(s) executado(s).
Defere-se o requerido levantamento de sigilo fiscal.
Defere-se o requerido levantamento do sigilo bancário no que respeita ao pretendido quanto ao Banco de Portugal”
Juntando cópia do referido despacho e do pedido de autorização de consulta das bases de dados, o Solicitador de Execução requereu ao Banco de Portugal para, nos termos e para efeitos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 833º do CPC, informar em, 10 dias, em relação aos executados:
“C………., Lda –NIF ………
D………. – B.I. …….; NIF ………
E………. – B.I. …….; NIF ………
- se figuram em alguma base de dados e quais as entidades detentoras de tais dados (não se trata de penhora de saldos)”
Recebido o referido requerimento do Solicitador de Execução, o Banco de Portugal interpôs recurso, o qual foi admitido como agravo, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Na sua alegação, oportunamente apresentada, formulou as seguintes conclusões:
I- O despacho recorrido não contém uma indicação clara e certa do(s) executado(s) sobre quem são solicitadas informações cobertas pelo segredo de supervisão;
II- Além disso, tal despacho omite qualquer fundamentação que justifique o porquê do “(…) levantamento do sigilo bancário no que respeita ao pretendido quanto ao Banco de Portugal”;
III- A violação do dever de fundamentação previsto no artigo 158º do CPC conduz a uma nulidade, nos termos do disposto no art. 201º do CPC;
IV- Por outro lado, o Banco não foi ouvido antes de proferido o despacho recorrido;
V- Por isso, esta Autoridade de supervisão não teve oportunidade processual para deduzir escusa na prestação das informações requeridas;
VI- Assiste-se, pois, a uma violação do principio do contraditório (art. 3º, n.º 3 do CPC) por parte do Tribunal a quo;
VII- O despacho recorrido (na medida em que parece aderir ao teor do requerimento do Solicitador de Execução) terá acolhido a invocação dos artigos 519º-A e 833º, n.ºs 1 e 2, do CPC;
VIII- O artigo 833º n.º 3, remete para o artigo 519º-A;
IX- Ora, o artigo 519º-A do CPC tem de ser interpretado em conjugação com o artigo 519º do mesmo diploma;
X- O artigo 519º regula expressamente a recusa na prestação de informações por motivo de sigilo profissional;
XI- E remete para a lei penal, no tocante à quebra do dever de segredo;
XII- A lei processual penal – aplicável por via, quer do art. 519º do CPC, quer por via do art. 80º do RGICSF – determina que o incidente de quebra do dever de segredo tenha de ser suscitado perante o Tribunal imediatamente superior (art. 135º n.º 3);
XIII- O Tribunal a quo ordenou ao banco a prestação de determinadas informações cobertas pelo dever de segredo de supervisão, sem que tivesse sido observado o formalismo;
XIV- Por isso, o Tribunal a quo violou, inequivocamente, o disposto nos artigos 519º n.º 4, do CPC, 135º n.º 3, do CPC e 80º do RGICSF.
Termos em que deve o recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido.

Não houve contra-alegações.

O Mº Juiz a quo sustentou a decisão recorrida.

Corridos os vistos cumpre decidir

1.2. Questões a decidir:

Em face das conclusões do Agravante as questões a decidir são, no essencial, as seguintes:
- Saber se ocorre a invocada nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação;
- Se foi violado o princípio do contraditório, por não ter sido ouvido o Agravante antes de ser proferido o despacho recorrido;
- Se foram violadas as regras da competência em razão da hierarquia, dado que cabe ao tribunal da Relação a competência para decidir da quebra do segredo profissional.

2. Fundamentos
Os factos a ter em conta na apreciação do recurso são os indicados no antecedente relatório e que aqui se dão por reproduzidos.
Invoca o recorrente a nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.
O vício da nulidade do despacho, da sentença ou do acórdão a que se reportam os artigos 668º, n.º 1, alínea b) e 716º, n.º 1, do Código de Processo Civil deriva da sua falta de fundamentação de facto ou de direito.
É motivado pelo facto de o tribunal dever subsumir o caso concreto submetido à sua apreciação às pertinentes normas jurídicas e justificar que a solução decorrente é harmónica com os factos provados e a lei aplicáveis, além do mais para que as partes possam controlar o raciocínio seguido por quem decide e equacionar a viabilidade de recurso.
Mas como vem sendo entendido de forma uniforme pela doutrina e pela Jurisprudência, o referido vício não decorre de mera fundamentação de facto ou de direito medíocre, errada ou insuficiente, mas da sua falta absoluta, em termos de não permitir minimamente a compreensão do respectivo itinerário cognoscitivo.
No caso dos autos, o despacho recorrido, embora não tenha enunciado expressamente os fundamentos de facto e de direito, aderiu aos fundamentos enunciados no requerimento apresentado pelo Solicitador de Execução, que deferiu e do qual constam os fundamentos de facto e de direito do pedido dirigido ao Tribunal.
Ainda que a decisão pudesse ser mais elucidativa quanto aos seus fundamentos, não ocorre a invocada nulidade, por falta de fundamentação. Aderindo aos fundamentos do requerimento apresentado pelo Solicitador de Execução, não oferece dúvidas que a decisão se baseou nos fundamentos ali invocados que considerou suficientes para o deferimento do requerido.
Em qualquer caso, a proceder a invocada nulidade, sempre caberia a este Tribunal, conhecer da questão submetida à apreciação do Tribunal que proferiu a decisão recorrida (artigo 715º, n.º 1, do CPC).

Ao contrário do que sustenta o recorrente, também não ocorre a alegada violação do princípio do contraditório.
Não sendo o Banco de Portugal, parte na execução, não tinha que ser previamente ouvido sobre a pretendida dispensa do segredo profissional.
A entender que o pedido acarretava a violação do segredo bancário, podia deduzir escusa, o que, aliás, fez através do requerimento em que se recusou a prestar as informações solicitadas.
Cabendo a este Tribunal apreciar se esta é legitima.
Confunde também o Agravante a competência para deferir o pedido de prestação de informações que considere essenciais ao regular andamento do processo, que como resulta expressamente do artigo 519º-A, n.º 1, cabe ao juiz da causa, com a competência para a apreciar a legitimidade da escusa que seja deduzida com fundamento na alínea c) do n.º 3, do artigo 519, da competência do tribunal superior.
O despacho recorrido limitou-se a determinar a prestação das informações consideradas necessárias, em face do alegado no requerimento do Solicitador de Execução, ao regular andamento do processo.
Não se pronunciou sobre a legitimidade da escusa, deduzida pelo Agravante apenas no requerimento de interposição de recurso.
Questão que não tendo sido objecto de apreciação e decisão pelo despacho recorrido, não cabe apreciar no âmbito do presente recurso, no qual está em causa apenas o despacho que determinou a prestação de informações cobertas pelo sigilo profissional.
Todavia dado que tal sigilo foi dispensado, não pode deixar de ser apreciada a dita dispensa.Vejamos:
O segredo bancário está previsto e tem o respectivo conteúdo definido nos artigos 78º, 79º e 80º, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Dec. Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.
O primeiro dos preceitos estabelece que as pessoas que prestem serviços nas instituições de crédito "não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias". Por sua vez, o artigo 79.º prevê as excepções ao dever de segredo, fora do caso de autorização do cliente, sendo que a alínea e) do n.º 2 refere "Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo".
Deste modo, o sigilo bancário apresenta-se, por um lado, com a faceta de protecção dos interesses dos clientes (sigilo das relações banco/cliente) e, por outro, com a de protecção das próprias instituições de crédito (sigilo dos factos respeitantes à instituição) e em qualquer dos casos está em causa o dever do Estado em garantir a realização dos direitos - mormente substantivos - dos cidadãos, conforme o alcance lógico dos artigos 20.º da CRP e 2.º do CPC.
Todavia, o sigilo bancário não é um direito absoluto, podendo ceder perante outros direitos assegurados pelo Estado, designadamente o de acesso, administração e realização da justiça. De facto, como foi decidido pelo Ac. RC, 06.07.1994, CJ, IV, p. 46 - "O interesse da "boa administração da justiça" prevalece sobre o interesse da "protecção da posição do consumidor de serviços financeiros" ou mesmo da manutenção do clima de confiança na banca". No mesmo sentido, o Ac. RL, 22.10.1996, BMJ, 460, p. 799 - "Quando a informação solicitada ao banco é necessária e adequada para que o interesse público da realização da justiça se sobreponha claramente ao interesse privado, verificam-se os requisitos legais para a quebra do sigilo bancário" e o Ac. STJ, 14.01.1997, CJSTJ, I, p. 44 - "O direito ao sigilo bancário, em si próprio inquestionável, à luz do moderno âmbito do direito de personalidade, não pode considerar-se absoluto de tal forma que fizesse esquecer outros direitos fundamentais, como o direito do acesso à Justiça (a menos que, contra o "civilizado" art. 1.º do CPC se privilegiasse a "justiça privada"!) ou, por exemplo, o dever de cooperação, tradicional no processo civil português”.
Sendo deduzida a escusa, segundo o art. 519.º, n.º 4 do CPC, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. Assim, "o Juiz ao apreciar a legitimidade da escusa, não poderá, porém, deixar de ponderar a natureza civil dos interesses em causa e a concreta proporcionalidade entre a restrição do direito à reserva na intimidade da vida privada (art. 26.º da CRP) que a dispensa do sigilo irá acarretar, por um lado, e, por outro lado, os concretos interesses da contraparte (Vasco Soares da Veiga, Direito Bancário, p. 236).
Em conformidade, o Juiz deverá dispensar a confidencialidade e decidir pela inexistência de sigilo bancário no caso em concreto se forem superiores, in casu, os valores da justiça, com a necessária ponderação de interesses, limitando a quebra do sigilo apenas e tão só ao estritamente necessário.
Sãs visíveis na jurisprudência as divergências que esta matéria tem suscitado, como dá conta, entre outros, o Ac. do STJ de 4.5.2000, in BMJ 497-323.
Porém, como se escreveu neste acórdão, "A evolução legislativa demonstra que o legislador foi sensível às dificuldades do credor em identificar, para além do que lhe é possível, os créditos de saldos de depósitos bancários. E, assim, não só afastou as restrições ancoradas em sigilo bancário, mediante decisão do juiz da causa, nos termos do artigo 519º-A, como veio a criar um modelo expedito de identificação através do Banco de Portugal, consagrando uma prática que estava já em curso...".
São aplicáveis à penhora de depósitos bancários as regras da penhora de créditos com as especialidades consagradas no citado artigo 861-A (n.º 1, desta disposição legal.
O n.º 6, do citado artigo 861º-A, aditado pelo DL n.º 375-A/99, de 20 de Setembro, veio estabelecer que tendo sido nomeados à penhora saldos em contas bancárias que o exequente não consiga identificar adequadamente, o tribunal solicitará previamente ao Banco de Portugal informação sobre quais as instituições em que o executado é detentor de contas bancárias.
A citada disposição legal foi, entretanto, alterada pelo Dec.Lei n.º 38/2003, de 08-03 que, pretendendo, conforme consta do respectivo preâmbulo, simplificar a penhora de saldos bancários, veio estabelecer que quando não seja possível identificar a conta ou contas bancárias dos executados, é permitida a penhora dos saldos de todos os depósitos existentes na instituição ou instituições notificadas, até ao limite necessário ao pagamento da divida exequenda e das despesas previsíveis das execução. Devendo as entidades notificadas, no prazo de 15 dias, comunicar ao agente de execução o montante dos saldos existentes, ou a inexistência de conta ou saldo e, seguidamente comunicar ao executado a penhora efectuada (n.º 3 e 6, do artigo 861º-A, na redacção introduzida pelo citado Dec. Lei 38/2003, de 8-03).
Perante a nova redacção do artigo 861º-A, do CPC, em vez do pedido prévio sobre a existência de contas bancárias dos executados, teria sido mais eficaz, proceder desde logo à penhora do saldo de todas as contas dos executados existentes nas entidades bancárias em que fosse previsível a possibilidade de existirem contas dos executados.
Mas se a lei permite a penhora das contas dos executados, sem exigir a sua identificação, quando tal não seja possível ao exequente, também o sigilo bancário deve ceder, perante o interesse em remover os obstáculos à realização coactiva da prestação de que o exequente é credor, a fim de previamente serem indicadas através do Banco de Portugal as contas de que os executados sejam titulares, para posterior notificação das respectivas entidades bancárias da penhora dos saldos das contas bancárias que se apure existirem em nome do executado.
Por todo o exposto conclui-se que o sigilo bancário deve ceder, em face da impossibilidade do exequente de identificar bens do executado ou de identificar as contas bancárias de que os executados possam ser titulares, a fim de assegurar através da penhora dos respectivos saldos a realização coactiva da prestação de que é credor. Ou seja, o segredo bancário deverá ceder perante o interesse da realização da justiça, no caso concreto, que sobre aquele deverá prevalecer.
Ao contrário do que se refere na alegação do recorrente, não se suscitam dúvidas quanto á identificação das pessoas a que se refere a pedida informação, sendo claro que o pedido respeita aos três executados, relativamente aos quais foram fornecidos os elementos de identificação constantes dos autos, nomeadamente o número de identificação fiscal e do bilhete de identidade dos executados pessoas singulares.

Termos em que improcedem as conclusões do agravante, não se mostrando terem sido violadas as invocadas disposições legais.

3. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao agravo, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas pelo agravante.
*
Porto, 24 de Abril de 2007
Alziro Antunes Cardoso
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
José Gabriel Correia Pereira da Silva