Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0524564
Nº Convencional: JTRP00038438
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: SIMULAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
Nº do Documento: RP200510250524564
Data do Acordão: 10/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA EM PARTE.
Área Temática: .
Sumário: I- A prova testemunhal não será admissível como único elemento probatório para comprovação do acordo simulatório.
II- Mas já poderá ser utilizada se existir qualquer documento que, só por si, torna verosível a existência da simulação e com ela se tiver em vista interpretar e/ou completa a prova documental.
III- A impossibilidade da nulidade da simulação contra o terceiro de boa fé tanto vale para os terceiros adquirentes a título oneroso, como os adquirentes a título gratuíto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

B........., residente na Rua ...., nº ..., ..º ...º, ...., Matosinhos, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário,

contra

C.........., residente na Praça ....., nº ...., ...º ....º ..., Matosinhos,

pedindo que:
a- seja declarada, por simulação, a nulidade da separação de pessoas e bens judicialmente decretada entre autor e ré e, consequentemente, declarados nulos todos os negócios ou actos jurídicos posteriores a essa separação;

subsidiariamente
b- seja declarada, por negócio em fraude à lei, a nulidade do contrato de compra e venda de determinadas fracções e, consequentemente, declarados nulos todos os negócios ou actos jurídicos posteriores relativos a essas fracções e a ré condenada a reconhecê-lo;

cumulativamente com este pedido subsidiário
c- seja a ré condenada a reconhecer o autor como dono e legítimo proprietário dos bens móveis e imóveis que identifica e condenada a entregar-lhos livres de quaisquer ónus e em bom estado de conservação ou, na sua falta, os respectivos valores, a serem liquidados em execução de sentença.
Em fundamento desta sua pretensão alega, sinteticamente, que nunca foi sua intenção e da ré separarem-se judicialmente de pessoas e bens e que apenas visavam, com esta medida, acautelar o seu património próprio e o comum do casal que ambos constituíam de eventuais credores. Tendo-se a ré posteriormente aproveitado desta situação para se arvorar em dona dos bens que também ficticiamente partilharam.

Contestou a ré para, no essencial, alegar que nunca teve vontade diferente daquela que manifestou ao longo de todo o percurso que culminou na separação judicial de pessoas e bens e em todos os actos posteriores. Além de que esta separação não pode ser atacada com base em simulação.
Termina pedindo a improcedência da acção e a condenação do autor como litigante de má fé.

Replicou o autor para tomar posição sobre os documentos juntos pela ré e pugnar, por sua vez, pela condenação da ré como litigante de má fé.

Saneado o processo e fixados os factos que se consideraram assentes e os controvertidos, teve lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
No decurso da audiência de julgamento, manifestou a ré a sua oposição à produção de prova testemunhal sobre os pontos controvertidos da base instrutória que versavam matéria atinente à simulação, por legalmente inadmissível.
Tendo visto esta sua pretensão indeferida, dela agravou a ré, recurso admitido com subida diferida, mas julgado deserto, já neste Tribunal da Relação, por falta de alegações.

Na sentença, subsequentemente proferida, foi a acção julgada parcialmente procedente e declarada a nulidade por simulação, das partilhas notarial e particular efectuadas, com as consequências legais ressalvando-se, no entanto, a ineficácia da nulidade em relação à transmissão a terceiros.

Inconformado com o assim decidido, recorreram ré e autor, defendendo aquela que não devem ser consideradas as respostas aos pontos controvertidos nºs 28 e 41 e, consequentemente, considerar-se não ter havido simulação; e defendendo este a procedência da acção.

Contra-alegaram os apelados em defesa da sentença na parte posta em crise pelos apelantes.

***

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo dos recorrentes radica no seguinte:

Apelação da ré

1- O presente recurso refere-se apenas quanto à matéria dos nºs 28 e 41 aos factos considerados pelo Mmº Juiz a quo e à audição de testemunhas;

2- E quanto ao primeiro, sempre com toda a vénia, lembrar-se-á que, conforme ao artigo 369º do Código Civil, os documentos autênticos (trata-se de uma escritura) fazem prova plena dos factos que neles são atestados;

3- Perante o Notário, Apelante e Apelado disseram como queriam que fossem as coisas no futuro, estando desde logo, assim, afastada a ideia de simulação ou falsidade;

4- E salvaguardado sempre o devido respeito que é todo nenhuma prova se fez em tal sentido;

5- O que já faz algum é que, tendo-se Apelante e Apelado separado judicialmente de pessoas e bens em 19 de Outubro de 1995 e transformado em divórcio tal separação nos idos de 7 de Setembro de 1997, a presente acção tenha surgido em Juízo em 31 de Outubro de 2002;

6- Quando a Apelante, à custa de muito trabalho e força de vontade, estava a sair do atoleiro onde a fizeram cair as atitudes de Apelado;

7- Presentemente em más condições de ordem financeira, como ele próprio declara nos autos;

8- O documento da partilha dos bens móveis identificado no nº 41 dos factos provados refere-se a comuns do casal;

9- Fez parte da relação de bens que acompanhou o requerimento de Apelante e Apelado pedindo a decretação da separação judicial de pessoas e bens;

10- Tendo sido tudo controlado e decidido pelo Mmº Juiz a quo;

11- Foram tais bens que Apelante e Apelado partilharam, tendo por tal, como no documento se refere aquela pago a este 13.285.000$00;

12- Através de compensação pois, titulares conjuntamente de contas bancárias, o Apelado havia feito movimentos através dos quais se tornara devedor;

13- Não fora assim e a Apelante teria um prejuízo total, não obstante e, como é óbvio, com todo este tempo decorrido, muitos dos bens referidos se terem partido ou danificado;

14- O nº 2 do artigo 3:94º do Código Civil proíbe aos simuladores, quando sejam eles a invocar a simulação, a prova por testemunhas;

15- Ao contrário do que sucede com o “common law” que espera o litígio, resolve-o e espera o próximo litígio, o nosso sistema, codificado, prossegue como objectivo principal a certeza e a segurança do direito;

16- Tudo aponta, portanto, para que seja respeitado o texto do artigo 394º do Código Civil, já que, ladeando-o e não atendendo ao nele disposto, estar-se-á, em suma, a adulterar o seu comando jurídico;

17- Tal disposição legal com a mesma redacção constava da versão inicial do diploma, publicada no Decreto-Lei nº 47344, em 25 de Novembro de 1966;

18- Ao longo dos 38 anos que decorreram desde então até à presente data o referido artigo 394º tem-se mantido inalterável;

19- Por isso que deva ser aplicado já que no caso subjudice, o ora Apelado e Autor da acção se assume como simulador;

20- A não sê-lo, poderá dar-se azo à existência de um abuso de direito, consequente a um venire contra factum proprium;

21- A nota típica do abuso do direito reside na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse ilegítimo;

22- Sendo “Velha” a questão de determinar se podem ou não ser arroladas testemunhas pêlos próprios simuladores, a maioria da Jurisprudência através dos seus doutos arestos afina pela negativa;

23- Que o objectivo da lei (artigo 394º do C.C.) é o de evitar que prevaleça a prova testemunhal ou por presunção judicial (artigo 351º do C.C.), meios probatórios de reconhecida falibilidade, sobre a prova documental;

24- Os documentos autênticos dos e nos autos provam exactamente que não houve simulação, sendo a declaração (Doc. nº 53 junto com a petição, assinada pelo filho de Apelante e Apelado), como ele próprio referiu, obtida sob coacção moral;

25- Devem, pois, cora todo o respeito, não serem consideradas as respostas dadas aos quesitos, à excepção das que resultaram de confissão.

Apelação do autor

1- Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou parcialmente improcedente o pedido principal e o pedido subsidiário referido em B-1 da petição inicial e prejudicado os pedidos subsidiários B2 e o pedido cumulativo C;

2- Ficou assente e é expressamente referido pelo M.º Juiz “a quo” que é por evidente que a separação de pessoas e bens, e posterior conversão em divórcio, partilha judicial e extrajudicial, bem como outros negócios celebrados no decurso temporal até à separação efectiva das partes, mais não foi que uma fórmula expedita de frustrar credores e, assim, salvaguardarem o património das partes;

3- A separação de pessoas e bens e posterior divórcio realizados pelos recorrente e recorrida são, respectivamente, causa modificativa e causa extintiva do contrato casamento e são, ambos, actos jurídicos, “quase-negócios jurídicos”;

4- O facto de tais actos jurídicos, modificativo e extintivo do contrato casamento terem sido decretados por sentença não altera o direito de qualquer interessado, inclusive os próprios simuladores, requererem a respectiva nulidade;

5- Não se trata de um problema de má-fé processual, podendo havê-la, mas de uso anormal do processo (artº 665º do CPC), de tal sorte que o que emerge é uma aparência de decisão;
6- Não se está, igualmente, em presença da revisão de sentença ou da oposição de terceiros: com efeito, não é requerida a nulidade por terceiro, nem se pretende rever uma sentença válida;

7- Nem está em causa, no caso em apreço, o caso julgado, tendo a força obrigatória da decisão dentro e fora do processo os limites fixados pelos artigos 497º e seguintes do CPC;

8- O que se pretende com a presente acção é que o tribunal declare a nulidade da separação de pessoas e bens judicialmente decretada entre autor e ré e posterior conversão em divórcio, como nulos todos os actos posteriores a um daqueles, sem prejuízo do estabelecido no artigo 343º do CC, conforme se refere na petição, em virtude da causa sofrer, toda ela, de uma invalidade absoluta, pelo motivo exposto, de tal forma que poderá ser atacada pela nulidade e ter os efeitos que a esta se prevê;

9- Se o M. Juiz “a quo” tivesse razão quanto à impossibilidade de se requer a nulidade de um acto decretado por sentença, por esta ser inatacável pelo instituto da nulidade, então razão teria o M.º Juiz “a quo” em declarar inatacável a partilha judicial;

10- Declarada a nulidade da partilha extrajudicial referida em 28) dos factos descritos na sentença como provados e declarado quanto aos seu efeitos o cumprimento do previsto nos artigos 243º e 291º do CPC (pese embora haja registo da acção, o problema no caso não se altera), então o registo comercial deverá reflectir essa realidade, não só pela obrigatoriedade deste como pelos efeitos que do registo emanam;

11- Se é certo que a nulidade declarada não poderá afectar a quota cedida por doação ao terceiro, filho dos requerente e requerida (questão que tampouco foi colocada pelo recorrente), nem poderá colocar em crise o “acto da divisão” que necessariamente a precedeu, não é menos certo que aquelas outras quotas que ficaram para a requerida por força da partilha agora nula têm que ficar a pertencer a ambos: uma na titularidade do recorrente de 3.000.000$00 (14.963,94 €), casado com a recorrida no regime da comunhão de adquiridos; outra, na titularidade da recorrida de 2.400.000$00 (11.971,15€), casada com o recorrente no regime de comunhão de adquiridos;

12- Deverá a sentença declarar não só a nulidade da partilha extrajudicial em questão, mas, igualmente, declarar o cancelamento não só do registo da transmissão a favor da recorrida, como separada de pessoas e bens, das duas quotas por força da partilha extrajudicial e de todos os actos subsequentes, com excepção da doação da quota de 600.000$00 e da necessária divisão que a precedeu, pelo que devem voltar à titularidade anterior as referidas quotas com a referida excepção: uma quota de 3.000.000$00 pertencente ao sócio recorrente, no estado de casado no regime de comunhão de adquiridos com a requerida, e uma quota de 2.400.000$00 pertencente à sócia recorrida, no estado de casada no regime de comunhão de adquiridos com o recorrente;

13- A declaração de nulidade do contrato de partilha extrajudicial não notarial, mencionado em 41 dos factos provados, não invalida, pelo contrário, que o pedido cumulativo (e não subsidiário do pedido principal) seja procedente quanto aos bens referidos no artigo 82º da petição e, nessa medida, seja a recorrida condenada a reconhecer o recorrente como seu legítimo proprietário e condenada a entregar os bens livre de quaisquer ónus e em bom estado de conservação ou, na sua falta, os respectivos valores a serem liquidados em execução de sentença;

14- Em face do exposto, entende o recorrente que a sentença recorrida interpretou e aplicou incorrectamente, quanto à parte da sentença em que aquele decaiu, os artigos 286º, 289º, 295º do Código Civil, 456º, 771º e 778º, todos do Código do Processo Civil e 3º, n.º 1, alínea c), 12º, n.º 1, 14º 15º, n.º1 e 17º n.ºs 1, 2 e 3, todos do Código de Registo Comercial, pelo que deveriam ter sido os pedidos do recorrente acima identificados procedentes.

B- Face à posição dos recorrentes vertida nas conclusões das alegações, delimitativas do âmbito do recurso, as questões a dilucidar reconduzem-se no essencial:
apelação da ré
- não admissibilidade de prova testemunhal para prova da simulação
apelação do autor
- nulidade, por simulação, da separação de pessoas e bens e sua posterior conversão em divórcio
- cancelamento do registo de transmissão das quotas sociais da sociedade D............, Ldª
- procedência do pedido cumulativo subsidiário de reivindicação de bens móveis

III. Fundamentação

A- Os factos

Foram dados como provados na 1a instância os seguintes factos:

1) O autor e a ré contraíram casamento católico em 17 de Janeiro de 1976.

2) O referido casamento foi contraído sem precedência de convenção antenupcial.

3) Autor e Ré têm um filho, E........., nascido em 22 de Março de 1978.

4) Em 1982 o Autor constitui, com outro indivíduo de nome F........ sociedade comercial por quotas com a firma "G....... - Lda", pessoa colectiva nº 501.342.338, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o nº 37.324, cujo objecto social era o comércio e fabricação de material eléctrico de média baixa tensão.

5) Em 1987 Autor e Ré constituem uma sociedade comercial por quotas com a firma "D........, Ldª, cujo objecto social era o de estabelecimentos de ensino básico (ensino pré-primário e primário).

6) Em 26 de Janeiro de 1986 Autor e Ré compraram uma fracção autónoma designada pela letra "E", correspondente a uma habitação no primeiro andar esquerdo - apartamento tipo T 1, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar de .... – lote nº ... – freguesia e concelho de Albufeira, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 8437, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº 1522/020 quatro oitenta.

7) Por escritura de compra e venda de 19 de Setembro de 1988 o Autor e o sócio deste, F......, compraram ao Banco de Fomento Exterior um armazém com a área de 685,3 metros sito na Rua ......., Lugar ....., freguesia de Leça do Balio, Matosinhos, que, depois de o reconstruírem, em dois pisos de cerca de 700m2 cada, deram de arrendamento àquela sociedade ("G.......... - Lda") de que estes eram sócios.

8) A partir de meados de Janeiro de 1989 o Autor inicia negociações com a sociedade “J.........” com vista a este e sua mulher, aqui Ré, adquirirem àquela um andar, formado por duas fracções autónomas para habitação de tipo T 1 cada, designadas pelas letras “U” e “V”, ambas no primeiro andar do prédio constituído por propriedade horizontal, sito no gaveto da Praça ......, números .., .., .., .., .., .., .. e .., Rua ......, números ...., .... e ... e Rua ....., números ..., .... e ...., da freguesia e concelho de Matosinhos, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 6.958, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o numero 816/030890, pelo preço, respectivamente para cada fracção, de 10.800.000$00 e 10.850.000$00, contratos promessas que foram outorgados entre a Ré, esta no seu estado civil de casada com o Autor, aí expresso, e o procurador da sociedade promitente vendedora em 22 de Março de 1989.

9) Logo após a outorga daqueles contratos promessa de compra e venda o autor informou a promitente vendedora, entregando documento subscrito pela Ré para o efeito, que pretendiam juntar numa única fracção aquelas duas – as quais deram origem, mais tarde, à fracção habitacional "FG".

10) O Autor procedeu, relativamente às duas fracções, aos respectivos pagamentos à "J......", nos termos constantes do artigo 10º da petição inicial.

11) O Autor para aqueles efeitos dirigiu-se pessoalmente, sempre, à sociedade H.........., S. A., aí preenchendo e assinando os respectivos cheques, nas respectivas quantias, entregando-os ao Sr. I......... .
12) O Autor negociou, entretanto, a aquisição de um lugar de garagem com a "J......” no citado prédio urbano, tendo esta e a Ré outorgado o respectivo contrato promessa de compra e venda em 14 de Janeiro de 1991, tendo sido entregue, em 23 desse mesmo mês e ano, a quantia de esc. 1.500.000$00.

13) Posteriormente o Autor negociou com a “J........” a aquisição de mais três lugares de aparcamento automóvel, tendo sido celebrado entre aquela e a Ré, em 11 de Novembro de 1991 e 15 de Abril de 1992 os respectivos contratos promessa, para a aquisição das fracções "BZ", "CA" e “CB” correspondentes a três lugares de aparcamento com os números, respectivamente, .., .. e .., pelo preço global de 6.000.000$00.

14) Através daquele mesmo acordo de 11 de Setembro de 1992 a Ré e a “J........” rescindiram o supracitado contrato promessa de compra e venda do lugar de aparcamento mencionado em 12).

15) Ainda pelo mesmo documento a "J........" declara que a quantia total de 6.000.000$00 foi integralmente paga, através dos pagamentos efectuados em 14.01.1991, 11.03.1992 e 07.05.1992.

16) Em meados de 1991 a promitente vendedora, "J........." entregou ao Autor e Ré as citadas fracções prometidas, tendo estes, nessa mesma altura, ido viver para essa casa que passou a ser a casa de morada de família.

17) Para a casa de morada de família dos Autor e Ré igualmente foi viver o pai daquele, em finais de 1992 até 24 de Março de 1995, data do seu falecimento.

18) Acontece que a partir do ano de 1992 a sociedade comercial de que o Réu marido era sócio "G......., Lda", começou a passar por um período de dificuldades financeiras, decorrentes da falência de uma sociedade devedora em cerca 35.000 contos, L......., S. A. .

19) Em finais de 1993, a sociedade M......, Ldª também fica na situação de falência, perdendo, em consequência, a sociedade “G......." cerca de 30.000 contos.

20) Em ambas as situações a sociedade em que o autor é sócio, "G.........", teve que recorrer a empréstimos bancários, avalizados pessoalmente pelo Autor e Ré, sócio daquele e mulher deste.

21) Nessa altura o Autor desabafa com a mulher, irmãs desta e cunhados, passando a Ré a pedir ao Autor que passasse tudo para nome dela, pois havia necessidade de salvaguardar o património, o que estes (Autor Ré) acordaram.

22) Autor e Ré, em 1995, combinaram que iriam realizar a escritura de compra e venda das fracções supra mencionadas em 8) e 13), sendo transmitida a nua propriedade para o filho de ambos e o usufruto para aqueles, tendo, assim, sido minutada a respectiva guia para pagamento de sisa.

23) Autor e Ré em Fevereiro de 1995 acordaram que iriam requerer a separação de pessoas e bens, pelo que a guia foi preparada e enviada ao Autor pela promitente vendedora em nome da Ré.

24) O pagamento do imposto sisa - conhecimento nº 261 - foi liquidado e pago em 16 de Março de 1995 em nome da Ré no seu estado civil de casada.

25) Vieram os Autor e Ré a requererem em 20 de Abril de 1995 a separação judicial de pessoa e bens no Tribunal de Família e, em consequência, por sentença de 19 de Outubro de 1995, nos autos de processo de separação de pessoas e bens por mútuo consentimento nº 318/95, do 2º Juízo da 3ª Secção do Tribunal de Família do Porto, foi decretada a separação judicial de pessoas e bens dos Autor e Ré, sentença que transitou em 01 de Novembro de 1995.

26) Naquela sentença foram, igualmente, homologados os acordos quanto à prescindibilidade de alimentos entre os cônjuges, regulação do poder paternal do menor filho de ambos e atribuição da casa de morada de família.

27) No dia 29 de Novembro de 1995, Autor e Ré deslocaram-se, em conjunto, para a celebração de uma escritura pública de compra e venda da casa de morada de família, constituída por quatro fracções autónomas, uma a habitação e três lugares para recolha de automóvel, tendo a Ré outorgado a mesma na qualidade de compradora de quatro fracções autónomas em que foi vendedora a sociedade comercial anónima "J.........., S.A.".

28) Nesse mesmo dia (29.11.95) foi outorgada pelos Autor e Ré uma escritura pública de partilha de bens do casal.

29) A referida sociedade “G.........” foi em 1997 sujeita a acção especial de recuperação de empresas, tendo sido efectuado o seu registo na competente Conservatória do Registo Comercial em 20.10.1997 e apresentada à falência mais tarde, sendo que o respectivo registo da falência foi feito naquela mesma Conservatória data de 12.01.1998 e o registo do trânsito em julgado da sentença que a decretou data de 16 de Março de 1998.

30) Em 9 de Outubro de 1996 Autor e Ré passaram a conta nº 410/89462/000.5, constituída com nome daquele ou desta, dando instruções para a partir dessa data a referida conta passar para conta individual apenas em nome da Ré.

31) Em 14 de Maio de 1997, o Autor requereu ao Tribunal de Família do Porto, por apenso aos autos de separação de pessoas e bens o inventário.

32) Veio alegar o Autor que aquando da partilha dos bens realizada por escritura pública – só refere esta partilha – terá por lapso deixado de relacionar 1/2 indivisa de um armazém com a área de 685,3 m2, com a matriz urbana sob o artigo 3.294 da freguesia de Leça da Palmeira.

33) Apenas a 6 de Novembro de 1998, em virtude do processo ter ido à conta é que Autor e Ré realizaram, no Tribunal, um termo de transacção, através do qual o referido bem foi adjudicado à Ré pelo preço de 5.000.000$00, tendo o Autor declarado que já havia recebido as tornas a que tinha direito.

34) Ambos, Autor e Ré, naquele mesmo dia de 14 de Maio de 1997, foram àqueles autos de processo de separação de pessoas e bens requererem conjuntamente, a conversão desta separação em divórcio, tendo sido decretado o mesmo por sentença de 24 de Outubro de 1997, que transitou em julgado em 27 do mesmo mês e ano.

35) Autor e Ré abriram um conta conjunta de depósito de particulares em Paris, no Société Bancaire de Paris - Group Espírito Santo et Group Casse Venete.

36) Já em 30 de Junho de 1998 Autor e Ré recebem daquela instituição bancária uma carta que, para além de anexar a convenção assinada por aqueles na data referida no artigo anterior, confirma a referida abertura de conta no nome do Autor e da Ré, com o nº 017868.

37) Autor e Ré possuíam à data de casados no regime de comunhão de adquiridos, pelo menos, duas contas bancárias conjuntas no Banco Espírito Santo, uma em que o autor era primeiro titular - a já referida conta - e uma outra em que era primeiro titular a Ré.

38) Autor e Ré, embora separados judicialmente de pessoas e bens e convertida essa separação em divórcio, sempre viveram juntos na casa de morada de família à Praça ....., ..., ...º Apartamento .., Matosinhos, até 11 de Junho de 2000.

39) O autor aí continuou a receber correspondência de diversas entidades.

40) O filho do Autor e Ré emitiu em 15 de Novembro de 1997 a declaração constante do documento nº 53.

41) Autor e Ré assinaram o contrato de partilha, constante do documento nº 54 junto com a petição inicial (fls. 195).

42) A aquisição dos Autor e Ré da fracção autónoma designada pela letra “E” correspondente a uma habitação no primeiro andar esquerdo – apartamento tipo T 1 -, do prédio urbano sito no Lugar de ...., concelho de Albufeira, supra identificado foi inscrita a favor daqueles pela inscrição G 1, apresentação de 27. 01.1987.

43) Tendo sido pela inscrição G-2 registada a favor da ré pela apresentação de 12.12.1995, por força da partilha subsequente a pessoas e bens, supracitada.

44) Verifica-se, agora, a existência de três novas apresentações, todas de 09.05.02, inscrições G-3, C-1 e C-2, correspondendo, respectivamente, a uma aquisição provisória por natureza, a favor de N........; uma hipoteca voluntária, provisória por natureza, a favor do BANIF- Banco Internacional do funchal, S. A.; e uma hipoteca voluntária, igualmente provisória por natureza e mesmo fundamento a favor, também, daquele mesmo banco.

45) Por sua vez, relativamente à escritura pública de compra e venda da casa de morada de família, foram, pois, formalmente adquiridas as fracções supra descritas, "FG", "BZ", “CA” e “CB”, as quais foram registadas a favor da Ré pelas inscrições, respectivamente, G-1 (apresentação 10/15.12.1995), G-1 (apresentação 10/15.12.1995), G-1 (apresentação 10/15.12.1995) e G-1 (apresentação 10/15.12.1995).

46) A fracção BZ (um lugar de garagem) terá sido vendida pela Ré a O........., conforme se alcança pela inscrição G-2, com a apresentação 165/23.11.2000.

47) Este por sua vez terá vendido a P......, conforme se alcança pela inscrição G-3, cuja apresentação é a 62 de 4.3.2002.

48) A fracção "FG", através da inscrição C-1, com a apresentação 74 de 26.07.2002 tem uma inscrição provisória por natureza e por dúvidas, de uma hipoteca voluntária a favor do Banco de Investimento Imobiliário, S. A. para garantia de um empréstimo de €39.903,83, com o montante máximo de €53.195,80.

49) Aquisições e declaradas vendas aquelas que se encontram igualmente mencionadas nas inscrições matriciais respectivas correspondendo às fracções “FG”, “BZ”, “CA” e “CB”, os artigos matriciais e respectivos teores 6958-FG, 6958-BZ, 6958-CA e 6958-CB.

50) Autor e Ré acordaram em requerer a separação de pessoas e bens e posterior divórcio com o objectivo de salvaguardar o seu património de eventuais credores.

51) Ao combinar a realização da escritura de compra e venda das fracções em que instalaram a sua morada de família, transmitindo a nua propriedade para o filho (vide ponto 23 dos factos assentes), agiram com esse mesmo objectivo.

52) Ao intervir apenas a ré na outorga dessa escritura, agiram com esse propósito de prejudicar os eventuais credores.

53) Sendo sua intenção que as ditas fracções se destinassem também ao Autor.

54) Ao outorgarem a escritura de partilha dos bens do casal (ponto 28), Autor e Ré não pretenderam concretizar qualquer partilha.

55) Mas apenas salvaguardar os respectivos bens de eventuais credores.

56) A quota aí atribuída ao Autor não tinha o valor constante da escritura de partilha.

57) O Autor não pagou à Ré a quantia aí mencionada a título de tornas.

58) A Ré outorgou em 28 de Outubro de 1996 uma procuração ao Autor, constituindo-o seu procurador, conferindo-lhe poderes para movimentar conta nº 410/89462/000.5, referida em 30).

59) Ao celebrarem a transacção referida em 33), Autor e Ré não pretenderam efectuar qualquer partilha, mas apenas precaverem-se contra eventuais credores.

60) O Autor, contrariamente ao que aí afirmou, não recebeu quaisquer tornas.

61) Na conta existente no BES, em que o Autor era o 1º titular (alínea 37) existia, antes da separação de pessoas e bens, um saldo de cerca de 70.000.000$00.

62) E ainda, em diversos títulos depositados, no valor de esc. 30.000.000$00.

63) Os referidos 70.000.000$00 estiveram, temporariamente, depositados na instituição bancária em Paris.

64) Essa quantia regressou depois àquela conta no BES, sendo a Ré titular e o Autor seu procurador.

65) Autor e Ré dormiram algumas vezes juntos, agindo, aparentemente, como se casados ainda fossem até 11 de Junho de 2000.

66) Na casa de morada de família, faziam a sua residência, recebendo visitas, correspondência, tomando as suas refeições e aí tendo os seus bens próprios e comuns.

67) Realizando férias juntos em Portugal e no estrangeiro.
68) A declaração do filho do Autor e Ré, referida em 40), foi prestada para salvaguardar o património comum do casal e o património próprio do Autor.

69) Ao assinarem o contrato de partilha referido na alínea 41), Autor e Ré não pretenderam realizar efectivamente essa partilha.

70) O Autor e Ré apenas pretenderam realizar o objectivo de salvaguardar o património do casal perante eventuais credores, nomeadamente por causa das dívidas à sociedade "G.......".

71) Na sequência de desentendimentos entre A. e Ré esta mudou a fechadura da porta da casa morada de família, durante uma curta ausência do Autor.

72) O Autor ficou sem qualquer aceso aos seus bens próprios e pertenças e documentação.

73) A Ré mantém a posse dos bens descritos no artigo 82º da petição inicial, que se encontravam na casa de morada de família à data de 11 de Junho de 2000.

74) Esses bens advieram à titularidade do Autor na sequência do falecimento dos avós deste.

B- O direito

Apelação do autor

1. inadmissibilidade de prova testemunhal para comprovação da simulação

1.1- Diga-se previamente que, não obstante o autor ter deixado deserto o agravo em que se opôs à inquirição de testemunhas sobre os factos integrantes do acordo simulatório, nem por isso ficou prejudicada a apreciação desta questão porquanto a produção indevida de prova testemunhal sobre pontos controvertidos da matéria de facto integra um erro na apreciação das provas e na fixação dos factos, podendo tal situação ser censurada oficiosamente por este Tribunal, em conformidade com o disposto no art. 712º, nº 1 als. a) e b) C.Pr.Civil.

O negócio simulado é nulo – nº 2 do art. 240º C.Civil, podendo esta nulidade ser arguida pelos próprios simuladores entre si, mesmo que seja fraudulenta – nº 1 do art. 242º C.Civil.
Mas neste caso, é inadmissível a prova por testemunhas do acordo simulatório e do negócio dissimulado, caso exista – n.º 2 do artigo 394º do mesmo diploma.
Com esta disposição legal tem-se em vista salvaguardar a força probatória do conteúdo dos documentos contra a falibilidade da prova testemunhal. Ou, nas palavras avalizadas de Pires de Lima e Antunes Varela [in Código Civil Anotado, em comentário ao art. 394º], o objectivo desta proibição é afastar os perigos que a admissibilidade da prova testemunhal seria capaz de originar: quando uma das partes (ou ambas) quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negócio, poderia socorrer-se de testemunhas para demonstrar que o negócio foi simulado, destruindo, assim, mediante uma prova extremamente insegura, a eficácia do documento.
Porque muito difícil a prova da simulação entre os simuladores, ela baseia-se a mais das vezes em indícios e ilações que à luz da experiência comum revelam a existência dos seus requisitos. Os simuladores rodeiam-se das maiores cautelas, procurando não deixar qualquer rasto dos seus reais intentos.
Precisamente devido a esta dificuldade, a doutrina e a jurisprudência vem defendendo a admissibilidade da prova testemunhal se os factos probandos aparecerem com alguma verosimilhança em provas escritas, isto é, se existir um princípio de prova por escrito. Se tal acontecer, então é admissível complementarmente a produção de prova testemunhal.
É esta a posição de Vaz Serra [in R.L.J.,107º-311] ao afirmar que Quando há um começo de prova por escrito, que torne verosímil o facto alegado, a prova testemunhal não é já o único meio de prova do facto, justificando-se a excepção por então, o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento.
Também Mota Pinto [Parecer publicado na C.J., X-3º, 9] esclarecidamente escreveu que Constitui excepção à regra do art. 394º e, por isso, deve ser permitida a prova por testemunhas no caso de o facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito. Também deve ser admitida tal prova testemunhal existindo já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental.
Na jurisprudência vários arestos se têm também pronunciado neste sentido [cfr., entre outros, acs. S.T.J., de 2003/06/17, www..dgsi.pt e R.C., de 2004/09/28, in C.J.,XXIX-4º,14]

A prova testemunhal não será admissível como único elemento probatório para comprovação do acordo simulatório.
Mas já poderá ser utilizada se existir qualquer documento que, só por si, torne verosímil a existência da simulação e com ela se tiver em vista interpretar e/ou completar a prova documental.
A prova testemunhal não é erigida a elemento único e decisivo na demonstração da simulação, apenas com ela se visa complementar o que está documentado, esclarecendo e precisando o conteúdo desse documento.
O documento, interpretado e/ou complementado pela prova testemunhal, é que torna verosímil e, por isso, permite formar a convicção da verificação do acordo simulatório.

Explanados estes princípios, impõe-se agora indagar se a prova documental existente no processo pode servir de meio de prova do negócio simulado.
Na sequência de depoimento de parte da ré, confessou esta, em depoimento reduzido a escrito – fls. 489, que o acordo feito em partilha judicial relativo a determinado bem, que lhe fora integralmente adjudicado a si, não visava efectuar qualquer partilha, mas apenas precaverem-se contra eventuais credores.
Igualmente confessou que já após a separação judicial outorgou uma procuração ao autor conferindo-lhe poderes para movimentar determinada conta, apenas em seu nome individual.
Para além disso, está documentalmente provado que essa fora uma conta conjunta e foram dadas instruções ao banco por autor e ré para passar para conta individual apenas em nome da ré – doc. fls.131.
Também está documentalmente provado que a firma “G......, Lda”, constituída pelo autor e um outro sócio, foi sujeita a acção especial de recuperação de empresa, vindo mais tarde a ser declarada falida - doc. fls. 46.
Após a separação judicial, autor e ré abriram uma conta conjunta numa instituição bancária em Paris, como se alcança dos docs. incorporado a fls. 169 e 170.
Acresce que no dia 29 de Novembro de 1995, Autor e Ré se deslocaram, em conjunto, para a celebração de uma escritura pública de compra e venda da casa de morada de família, tendo a Ré outorgado a mesma na qualidade de compradora, tendo ainda nesse mesmo dia outorgada uma escritura pública de partilha de bens do casal – docs. fls. 121 e 126.
O único filho do casal, em declaração escrita, afirma que me obrigo a partilhar todos os bens que venham a integrar a herança com este (seu pai), em virtude da separação de pessoas e bens, do divórcio e das partilhas de bens terem sido apenas realizados para salvaguardar o património comum do casal e o património próprio do meu pai, por causa das dívidas sobre a sociedade G......, Lda, de que o meu pai era sócio e gerente e avalista, sem que existisse qualquer intenção de divorciarem-se doc. fls. 194.
Da análise da confissão da ré e do teor dos documentos aludidos parece depreender-se uma aparência de prova acerca de um acordo simulatório. É a ré que confessa isso mesmo quanto à partilha judicial efectuada. É a transformação de uma conta conjunta em conta individual em nome da ré para logo de seguida conferir poderes ao autor para poder movimentar essa mesma conta, bem como a abertura de uma conta em nome dos dois após a separação judicial. É finalmente o filho de ambos a obrigar-se a partilhar com o pai, caso a mãe lhe pré-faleça, os bens da sua herança e com o argumento de que a separação e posterior divórcio apenas visaram salvaguardar o património do casal e próprio do pai.
Tendo-se conhecimento documental de que a empresa de que o autor era sócio e avalista acumulou enorme passivo que culminou com a sua falência, aliado aos factos documentais atrás descritos tudo parece inculcar que existiu uma claro intuito simulatório nesta actuação de autor e ré, com o único objectivo de se furtarem ao pagamento das dívidas por que eram responsáveis.
Mas estes documentos não são de todo conclusivos quanto à existência da simulação, já que só por si não demonstram inequivocamente o acordo simulatório.
Existindo uma aparência de prova sobre esse acordo, mas persistindo algumas dúvidas relativamente ao mesmo, então seria possível produzir prova testemunhal complementar para interpretar e completar as ilações que desses documentos se extraem.
Não obstante terem sido inquiridas testemunhas aos pontos controvertidos que retratavam a existência do acordo simulatório, mas uma vez que já existia um começo de prova escrita sobre esse acordo, nada impedia o tribunal de ouvir testemunhas a esses pontos para esclarecer e complementar os ditos documentos.
Concluímos que a prova testemunhal era aqui admissível.

1.2- Entende o apelante/autor que uma interpretação desta natureza constitui um autêntico abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Com o abuso de direito procura-se obviar ao exercício anormal de um direito próprio, sancionando os excessos, em termos reprováveis, do seu exercício.
O abuso de direito tem lugar quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito -artº 334.º do Codigo Civil.
O abuso de direito, pressupondo a existência de um direito subjectivo, existe quando o seu titular exorbita dos fins próprios desse direito ou do contexto em que é exercido. Mas esse excesso há-de ser claro e manifesto, clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, no dizer de Vaz Serra, sem se exigir todavia a consciência de se estarem a exceder os limites do direito, dado ter sido adoptada pelo Código Civil uma concepção objectivista do abuso de direito.
O abuso de direito existe quando o direito é exercido fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e com o fim de causar dano a outrém [É este o ensinamento que se colhe, entre outros dos acs.S.T.J., de 98/11/12 e 00/05/10, in B.M.J., 497º-343 e C.J., VI-3º, 110 (S.T.J.)].
A teoria do abuso de direito, na formulação adoptada pela nossa lei, apresenta-se como um verdadeiro limite intrínseco do exercício dos direitos subjectivos ou, nas palavras de Manuel Andrade [in R.L.J., Ano 87º, pág. 307], serve como válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação das normas legais obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.
Uma das manifestações mais evidentes do abuso de direito é precisamente a proibição do venire contra factum proprium.
É que todas as relações jurídicas entre as pessoas implicam um princípio de confiança e de auto-vinculação, criando expectativas futuras. E é precisamente esta confiança vinculativa que proíbe que alguém exerça o seu direito em manifesta oposição a uma tomada de posição anterior em que a outra parte acreditou e aceitou. Mas esta situação de confiança tem de radicar num comportamento que de facto possa ser entendido como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura [cfr. Baptista Machado, in R.L.J., Ano 117º, pág. 321 e segs].
Ocorrendo uma situação de abuso de direito ou de venire contra factum proprium, ao titular que assim exerceu o seu direito é-lhe negado o efeito pretendido.

Na situação vertente, está em causa a nulidade da separação judicial decretada entre autor e ré e, consequentemente, a nulidade de todos os negócios ou actos jurídicos posteriores daqui emergentes.
Não está demonstrado qualquer facto que permita, com um mínimo de razoabilidade, concluir que jamais seria suscitada a nulidade destes actos jurídicos. Nenhum comportamento do autor existe demonstrado que possa ser entendido como contrário à não arguição destas nulidades.
Depois esta confiança da contra-parte só é merecedora de protecção jurídica se ela tiver agido de boa fé.
Ora, tendo a ré conscientemente outorgado negócios jurídicos simulados, não seria de prever, dentro do que é razoável e normal, que se convencesse que jamais seria invocada a simulação destes negócios.
Daí que, com o devido respeito, se não possa considerar abusiva a actuação do autor.

Apelação do autor

2. nulidade, por simulação, da separação de pessoas e bens

Considerou-se na sentença recorrida que o meio próprio para atacar a sentença, transitada, que decretou a separação de pessoas e bens e sua posterior conversão em divórcio seria o recurso extraordinário de revisão ou de oposição de terceiro.
Entendimento diverso sufraga a apelante, com o argumento de que a sentença é inválida por assentar em pressupostos inexistentes e, como tal, poder ser atacada através da nulidade decorrente da simulação.

Com o devido respeito, não se pode ver no casamento, como pretende a apelante, um normal contrato, um negócio jurídico que produz os seus efeitos por simples declaração de vontade das partes. Em volta da relação matrimonial vai-se criando e alargando uma rede de interesses múltiplos que vai muito para além das relações recíprocas entre os próprios cônjuges.
De igual modo, também se não resolve por efeito puro e simples da vontade dos cônjuges.
Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela [in Código Civil, Anotado, IV, pág.568], o facto do pedido de separação por mútuo consentimento (e do divórcio por mútuo consentimento, acrescentamos nós) não carecer de ser fundamentado não significa que aos cônjuges, por força de uma concepção essencialmente contratualista do casamento, seja reconhecido por lei o poder de disporem arbitrariamente da sorte da relação conjugal. Não quer dizer, mais precisamente, que ao casamento se considere aplicável o princípio geral dos contratos fixado no artigo 406.º, segundo o qual o contrato pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes, nem que a separação amigável seja, por conseguinte, um puro corolário desse princípio comum dos contratos.
A separação judicial de pessoas e bens por mútuo consentimento (do mesmo modo que o divórcio consensual) obedece a um específico formalismo processual, o previsto nos arts. 1419º C.Pr.Civil e segs.
De acordo com estes preceitos legais os cônjuges não têm que invocar nenhum fundamento como causa da separação ou divórcio, tendo apenas que instruir o seu pedido com a relação dos bens comuns, acordo sobre a regulação do poder paternal relativamente aos filhos menores e sobre a prestação de alimentos ao cônjuge deles necessitado e sobre o destino da casa de morada de família - cfr. arts. 1419º C.Pr.Civil e 1775º, nº 2 C.Civil.
De acordo com o art. 1778º C.Civil, o processo terminará com sentença que decretará a separação ou divórcio e que homologará os mencionados acordos. Se, porém, esses acordos não acautelarem os interesses de um dos cônjuges ou dos filhos, este preceito legal impõe que a homologação seja recusada e o pedido de separação ou divórcio indeferido.
O juiz não se limita pacifica e inactivamente a decretar a separação ou divórcio e a homologar os acordos trazidos até si. Aprecia criticamente esses acordos e, se entender que os interesses a proteger não estão devidamente salvaguardados, a pretensão dos cônjuges será desatendida.
Segundo o Pereira Coelho [in Curso de Direito de Família, II, pág. 222/223], a separação por mútuo consentimento é um acto complexo integrado por dois elementos constitutivos: o acordo dos cônjuges – o seu acordo quanto à separação - mais a homologação do juiz. Esta homologação reflectirá o momento público da separação por mútuo consentimento; o seu momento privado traduzir-se-á naquele acordo.
Daqui decorre necessariamente que não se pode configurar a separação e o divórcio por mútuo consentimento como o resultado de uma mera transacção celebrada entre os cônjuges e que apenas vêm a tribunal para obterem formalmente a homologação do acordo previamente alcançado.
Nesta homologação surpreende-se uma intervenção pública activa na constituição do estado de separação ou extinção.
Acresce que os cônjuges não invocaram, nem tinham que invocar qualquer fundamento como causa da separação, manifestando apenas a intenção, real, de se separarem judicialmente de pessoas e bens. E o tribunal não surpreendeu nesta actuação processual das partes a prática de um acto simulado ou a prossecução de um fim proibido por lei, caso contrário teria obstado a esse objectivo anormal – art. 665º C.Pr.Civil.
Acolhida a pretensão dos cônjuges pelo órgão representativo do Estado, só então é decretada a separação ou divórcio e homologados os acordos firmados. Daí que a transacção, o acordo dos cônjuges em vista do fim a alcançar não constitua verdadeiramente um negócio jurídico. Os efeitos jurídicos decorrentes da separação ou divórcio não decorrem automaticamente do simples acordo dos cônjuges em vista da alteração ou extinção da relação matrimonial, mas sim e sobretudo na sequência da intervenção judicial que, essa sim, provoca a constituição de uma nova situação jurídica.

Transitada em julgado a decisão, esta passa a ter existência a se, ganhando uma autonomia própria, para além do acordo que homologou e terá o valor e alcance definidos no art. 671º, nº 1 C.Pr.Civil.
Se for nula ou passível de anulação, devido a vício substancial, a transacção que lhe subjaz, os efeitos decorrentes da sentença homologatória podem ser destruídos se for pedida a sua revisão. Num primeiro momento a parte deve instaurar a respectiva acção anulatória e, depois, a obter êxito nesta pretensão, pedir a revisão da própria sentença.
A assim não proceder a parte interessada e se se limitar a instaurar a respectiva acção anulatória, a sentença mantém a sua eficácia, permanecendo incólume.

Nenhuma censura nos merece, por isso, a decisão recorrida.

3. cancelamento do registo de transmissão de quotas sociais

A simulação pressupõe um acordo ou conluio entre o declarante e o declaratário, no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e no intuito de enganar terceiros – nº 1 do art. 240º C.Civil.
Concorrem na simulação a divergência intencional entre a vontade e a declaração das partes, combinação ou conluio que determine a falsidade dessa declaração e a intenção ou propósito de enganar ou prejudicar terceiros.
Defendeu-se na sentença recorrida, com o apoio do apelante mas desde que se considere não ser admissível a nulidade, por simulação, da separação de pessoas e bens, que o negócio jurídico de partilha extrajudicial de bens do casal outorgada por autor e ré, referenciado sob o nº 28 dos factos assentes, é nulo, por a vontade das partes estar viciada por simulação.
E na verdade está factualmente demonstrado que autor e ré não pretendiam efectuar qualquer partilha e que ao outorgarem esse contrato visavam apenas salvaguardar o património do casal perante eventuais credores.

Só que, e desatendendo o peticionado pelo autor, entendeu-se na sentença não ser admissível o cancelamento do registo comercial da transmissão a favor da apelada das duas quotas da sociedade D......, Ldª.
Dos factos assentes decorre que o capital social desta sociedade D......, Ldª, era de 6.000.000$00, dividido em duas quotas iguais, de 3.000.000$00, pertencendo a cada um dos sócios, autor e ré.
Na sequência da partilha extrajudicial, que foi declarada nula, ambas as quotas ficaram a pertencer à ré/apelada.
Posteriormente, fraccionou ela uma dessas quotas em duas, no valor de 2.400.000$00 e 600.000$00, e destas doou a de 600.000$00 ao filho de ambos.
Mantendo-se ela na titularidade das duas quotas de 3.000.000$00 e 2.400.000$00, correspondentes a € 14.963,94 e 11.971,15, respectivamente.
Não é questionado pelo apelante a inoponibilidade dos efeitos da declaração de nulidade da partilha em relação à quota doada pela apelada ao filho de ambos e consequente não cancelamento do registo comercial dessa doação.
Mas diversamente do decidido na sentença recorrida, já defende que esse cancelamento deve ser decretado em relação às quotas ainda na titularidade da apelada.

De acordo com o disposto no nº 2 do art. 240º C.Civil, o negócio simulado é nulo, nulidade que pode ser arguida, sem prejuízo do disposto no art. 286º pelos próprios simuladores, ainda que a simulação seja fraudulenta – art. 242º, nº 1 C.Civil.
Segundo este preceito legal, declarada a nulidade do negócio simulado, todos os negócios subsequentes e dele emergentes deixariam de ser eficazes devido ao vício que afecta o negócio principal.
Consagrando, todavia, o nº 1 do art. 243º um desvio a este princípio ao determinar que a nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé. Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela [ob. cit., I, em anotação ao art. 243], não interessa que os terceiros sejam prejudicados com a declaração de nulidade ou sejam beneficiados com a manutenção do negócio. Contra eles é sempre vedada a acção por parte dos simuladores.
E a oponibilidade tanto vale para os terceiros adquirentes a título oneroso, como para os adquirentes a título gratuito, segundo ainda os mesmos autores.
Efectivamente, é ineficaz a nulidade emergente do negócio simulado relativamente ao donatário daquela quota social, sendo-lhe inoponível este vício.
Mas já o mesmo não acontece em relação à ré. Ela é uma das partes do negócio simulado. Logo, o vício de que o negócio está afectado pode-lhe ser oposto e mesmo pelo outro simulador.
A declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, na sua impossibilidade, o valor correspondente – nº 1 do art. 289º C.Civil.
Dado que o negócio jurídico da partilha através do qual foram transferidas para a titularidade da ré/apelada aquelas quotas sociais é nulo por simulado, haverá que repor a situação no status quo ante, ainda que respeitando a sua inoponibilidade em relação à doação da quota ao filho da autor e ré.
Logo, a nulidade daquele negócio jurídico apenas afectará a transmissão a favor da ré/apelada das duas quotas de € 14.963,94 e 11.971,15, quotas essas que regressarão à titularidade anterior.
E assim terá que ser cancelado o registo de transmissão dessas quotas, salvaguardando todavia a doação da quota de 2.992,79 € ao filho de ambos.

4. pedido cumulativo subsidiário de reivindicação de bens móveis

Cumulativamente com o pedido subsidiário, o autor pediu expressamente que a ré fosse condenada a reconhecê-lo como e legítimo proprietário dos bens móveis ... supra descritos e condenada a entregar os mesmos ao autor livre de quaisquer ónus e em bom estado de conservação, ou na sua falta os respectivos valores a serem liquidados em execução de sentença.
Este pedido, como se alcança dos próprios termos em que é formulado, foi deduzido cumulativamente com o pedido subsidiário, ou seja, é ele um pedido subsidiário que acresce ao primeiro pedido deduzido a esse título. Significativo neste sentido é o afirmado no art. no art. 120º da petição: Mas a entender-se ... que não se poderia ... declarar a nulidade ... importaria, então, averiguar, subsidiariamente e, nesta subsidiariedade, cumulativamente, o regime jurídico a aplicar e os seus efeitos.
Subsidiário é o pedido formulado ao tribunal para ser considerado somente no caso de não proceder um pedido anterior – cfr. nº 1 do art. 469º C.Pr.Civil.
Desde que o pedido principal, ou antes, desde que se verifique o circunstancialismo necessário para ser julgado procedente o pedido principal, o tribunal já não poderá conhecer do pedido subsidiário. O pedido subsidiário é apresentado ao tribunal só para o caso de não merecer acolhimento o pedido primário.

No caso vertente e na parte atacada pelo apelante, o pedido principal até procedeu na íntegra.
Na verdade, o negócio jurídico da partilha através do qual foram transferidos para a titularidade da ré/apelada os bens móveis foi declarado nulo.
A nulidade, devido ao seu efeito retroactivo, faz reverter as partes à situação anterior, o que implica no caso concreto que esses bens regressem à esfera daquele que era o seu titular antes do negócio agora declarado nulo.
A procedência do pedido principal inviabiliza, desde logo, que este pedido subsidiário possa ser apreciado.

IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se nos seguintes termos:
julgar improcedente a apelação da ré;
julgar parcialmente procedente a apelação do autor e, consequentemente, determina-se o cancelamento do registo da transmissão a favor da ré/apelada das duas quotas da sociedade D......, Ldª, com excepção da quota no valor 2.992,79 €, doada ao filho de ambos, E..........;
confirmar, quanto ao mais, a douta sentença recorrida;
condenar nas custas o apelante autor e a apelante/apelada ré, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente.

Porto, 25 de Outubro de 2005
Alberto de Jesus Sobrinho
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho