Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0322808
Nº Convencional: JTRP00036831
Relator: ALZIRO CARDOSO
Descritores: DIVÓRCIO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
SENTENÇA
HOMOLOGAÇÃO
Nº do Documento: RP200403030322808
Data do Acordão: 03/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: O acordo sobre a atribuição de morada de família, homologado definitivamente na acção de divórcio por mútuo consentimento pode ser modificado se, entretanto, surgirem factos supervenientes que justifiquem a alteração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I - RELATÓRIO

X..... requereu contra o seu ex-marido H..... a atribuição da casa de morada de família, pretendendo que esta lhe seja dada de arrendamento.

Frustrada a tentativa de conciliação o requerido opôs-se á pretensão da requerente.

Solicitou-se a realização de inquérito ao CRSS, procedeu-se à inquirição das testemunhas indicadas pelas partes e a avaliação com vista à determinação do valor locativo da casa de morada de família.

Produzida a prova foram fixados os factos assentes, tendo de seguida sido proferida sentença que julgou a acção procedente, dando de arrendamento à requerente a casa de habitação sita na Rua....., ....., mediante o pagamento ao requerido da renda mensal de € 149,64.

Inconformado o requerido interpôs o presente recurso de apelação, tendo na sua alegação formulado as seguintes conclusões:

1 - O acordo homologado por sentença que transitou em julgado a propósito do destino da casa de morada de família deve ser mantido, salvo se circunstâncias supervenientes alterarem os fundamentos em que tal acordo foi firmado;
2 - As necessidades de habitação de apelante e apelada são iguais e nenhum deles tem o problema resolvido. Atento, porém, que o varão se encontra já reformado por invalidez, com uma pensão que é três vezes menor que a da mulher, que ainda se encontra a trabalhar, que os filhos do casal já são independentes e autónomos e que a atribuição do direito ao arrendamento a um dos membros do casal vai produzir uma desvalorização nos bens que afecta sobretudo o que não ficar a residir na casa, será de decidir que o direito ao arrendamento não deve ser atribuído a nenhum deles (ou no caso, à mulher que o requereu);
3 - A decisão recorrida assenta numa reflexão pouco ponderada dos factos, não seleccionou todos os factos importantes para a decisão da causa e apesar de aludir a preceitos legais apropriados tece sobre os factos um juízo que não é suficientemente critico e ponderado;
4 - A decisão recorrida viola o disposto no artigo 406º do C. Civil, 659º, n.º 2, 663º, 671º e 1409º do CPC.

Deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção improcedente.

Contra-alegou a requerente defendendo a improcedência do recurso.

Corridos os vistos legais cumpre decidir.

II – Fundamentos

1. De facto
Estão assentes os seguintes factos:
1. Requerente e requerido foram casados entre si, encontrando-se actualmente divorciados.
2. Desde o casamento até Agosto de 1999, a requerente e o requerido viveram na casa sita na Rua....., ......
3. É nesse local que, há mais de 20 anos, a requerente pernoita, prepara e come as suas refeições.
4. A partir da data referida no ponto 2, e em virtude de desentendimentos entre a requerida e o requerido, este último passou a habitar no apartamento do seu filho B..... sita na Rua....., ......
5. A casa referida no ponto 2 é composta por três quartos, cozinha, sala e quarto de banho, alpendre com três quartos, cozinha, sala e quarto de banho e anexo com três quartos, uma cozinha, um quarto de banho e sala, com áreas cobertas da casa com 76m2 e alpendre com 44 m2, anexos com 100 m2 e logradouro com 240 m2, sendo o seu valor locativo de € 299,28(174,58+124,70).
6. O anexo e alpendre necessitam de obras.
7. A requerente trabalha como operária na sociedade “J....., Lda”, auferindo o vencimento de cerca de € 568, 63, por mês.
8. O local de trabalho da requerente situa-se em frente da sua habitação.
9. A requerente vive conjuntamente com o seu filho (e do requerido) M..... de 19 anos de idade, o qual trabalha na mesma sociedade, das 19 à 03 horas, auferindo € 448,92.
10. A casa de habitação referida no ponto 2 foi construída por requerente e requerido quando ainda se encontravam casados.
11. O requerido recebe uma pensão de invalidez no valor de € 199,52 e trabalha como porteiro, desconhecendo-se o valor da remuneração.
12. No apartamento referido em 4 vivem, para além do requerido, o seu filho, nora e neto.

Dos elementos constantes dos autos resulta ainda assente o seguinte facto:
13. Na acção de divórcio as partes celebraram acordo sobre a casa de morada de família, que foi homologado por sentença transitada em julgado, do seguinte teor:
“A casa de morada de família é afecta a ambos os cônjuges até à partilha”.

2. De Direito

Defende em primeiro lugar o apelante que o acordo sobre o destino da casa de morada de família, homologado por sentença proferida na acção de divórcio, que transitou em julgado, deve ser mantido, salvo se circunstâncias supervenientes alterarem os fundamentos em que tal acordo foi firmado.
Entendemos que lhe assiste razão.
Vejamos:
A atribuição da casa de morada de família, que vem processualmente regulada como incidente, insere-se sistematicamente nos processos de jurisdição voluntária (cfr. art.º 1413º do CPC).
Com tal, as suas “resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração”(art.º 14111º, n.º 1, do CPC).
Dada a delicadeza e a natureza dos interesses prosseguidos com os processos de jurisdição voluntária, estabeleceu-se, entre outros princípios dos quais sobressai o principio da equidade, o da alteração das suas decisões, diferentemente do que sucede com os processos de jurisdição contenciosa.
Como refere Antunes Varela “as decisões tomadas nos processos de jurisdição voluntária não assumem pela sua própria natureza a força de caso julgado e podem ser por isso alteradas pelo juiz que as proferiu, logo que circunstâncias supervenientes ou ignoradas pelo julgador justifiquem a modificação”(Manual de Processo Civil, 2ª ed. pág. 72).
Neste contexto, estando em presença de um processo de jurisdição voluntária, como é o caso do da atribuição da casa de morada de família, a respectiva decisão é susceptível de alteração, desde que ocorram factos supervenientes que a justifiquem.
Os interesses subjacentes à atribuição da casa de morada de família, já destacados e que são de interesse e ordem pública, assim o exigem. As contingências da vida poderão ser tantas que a sua alteração seja exigível, por elementar principio de justiça e de equidade, de forma a garantir o equilíbrio de interesses que esteve subjacente no momento em que fora fixado.
Assim, tendo as partes acordado na acção de divórcio sobre o destino da casa de morada de família, esse acordo, ainda que homologado judicialmente, pode ser alterado se circunstâncias supervenientes, imprevisíveis no momento da conclusão daquele, o justificarem, de forma a manter o equilíbrio de interesses entre os respectivos outorgantes e a ordem pública da família. A intervenção do juiz, de modo a salvaguardar o interesse de ordem pública no âmbito da sociedade familiar, não retira essência negocial ao mencionado acordo, como refere Antunes Varela (cfr. Direito da Família), 1º vol., 5ª ed., págs. 514 e 515).
Mas para o feito, é indispensável que a alteração das circunstâncias seja anormal, isto é, que não constitua um previsível desenvolvimento de uma situação conhecida à data da celebração do acordo e que a manutenção do acordado afecte claramente os princípios legais que devem presidir à atribuição da casa de morada de família.
Tais critérios, como se sublinhou, são de interesse e ordem pública, porquanto se estabelece o dever, designadamente do juiz, de apreciar o respectivo acordo e convidar os cônjuges a alterá-lo se o mesmo não acautelar suficientemente os interesses de algum deles ou dos filhos – artºs 1776º, n.º 2, do Código Civil.
Nesta perspectiva, não acompanhamos a jurisprudência que vem entendendo não ser admissível a referida alteração do acordo, no caso de ter sido homologado por decisão transitada, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento ( v. Ac. da Rel. do Porto de 2-5-95, CJ Tomo II, p. 197 e Ac. da Rel. de Lisb. de 18-02-93, CJ, Tomo I. p. 149).
O acordo sobre a atribuição de morada de família, homologado definitivamente na acção de divórcio por mútuo consentimento, pode ser modificado se, entretanto, surgirem factos supervenientes que justifiquem a alteração.
O trânsito em julgado da sentença que homologou o acordo das partes relativamente à casa de morada de família cede perante o principio da alteração das decisões que caracteriza os processos de jurisdição voluntária.
Mas ainda que assim se entenda, certo é que no caso dos autos a requerente não alegou quaisquer factos susceptíveis de serem qualificados como supervenientes, atento o conceito fornecido pelo n.º 1 do art.º 1411º do CPC.
Os factos em que baseou o pedido e que vieram a provar-se, configuram uma realidade fáctica idêntica à que existia no momento em que foi celebrado o acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado na acção de divórcio litigioso convertido para mútuo consentimento.
Não resultando dos factos assentes, nem tendo sido invocadas pela requerente quaisquer circunstâncias supervenientes e imprevisíveis no momento da conclusão daquele acordo, não pode antes de ser feita a partilha, ser-lhe dada de arrendamento a casa de morada de família, por tal acarretar uma modificação do acordo homologado na acção divórcio, nos termos do qual, até à partilha, a casa ficava afecta a ambos os cônjuges.
Embora, como decorre do alegado e dos factos assentes o apelante tenha saído da casa de morada de família, permanecendo ali apenas a requerente, ao celebrarem o acordo sobre o destino da casa de morada de família, necessário à conversão do divórcio litigioso para mútuo consentimento, atribuíram a mesma a ambos os cônjuges, relegando para a partilha o destino definitivo da mesma.
Assim, ainda que se entenda que o dito acordo é susceptível de modificação desde que ocorram circunstâncias supervenientes, na falta de alegação e prova de factos que demonstrem terem-se alterado as circunstâncias em que aquele acordo foi concluído (embora o cônjuge marido não habite na casa em causa, decorre dos elementos constantes dos autos que já ali não habitava à data em que foi celebrado na acção de divórcio o acordo sobre a casa de morada de família), mantêm-se as partes vinculados ao mesmo.
O que obsta a que casa seja dada de arrendamento à requerente até a ser feita a partilha, a menos que, entretanto ocorram circunstâncias supervenientes susceptíveis de fundamentar a alteração daquele acordo.
Torna-se assim inútil apreciar as demais questões levantadas nas alegações do apelante, impondo-se a revogação da sentença recorrida.

III – Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e julga-se a acção improcedente, absolvendo-se o requerido do pedido.
Custas pela apelada.
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Porto, 03 de Março de 2004
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves